Escrevo sobre o “apagão”, promissor de tantos sortilégios, que bem poderia ser anunciado com aqueles versos de Camões, no episódio do Adamastor: “Tão temerosa vinha, e carregada/ que pôs nos corações um grande medo”. Chamo de “apagão”, aqui, o conjunto de medidas anunciadas para minorar a crise do suprimento de energia eletrica.
Ouvi falar de um sujeito que chegou a um hotel do Quenia e recebeu da recepcionista a noticia de que nao havia quartos. Ele, entao, exigiu o gerente e exibiu-lhe triunfante a confirmação da sua reserva. “O senhor, de fato, tem uma reserva. Nós, entretanto, nao temos quartos”, replicou desconsolado o gerente.
Cunhou-se, na Idade Media, o aforismo “ad impossibilia memo tenetur“, ainda hoje circulante na família forense, chegada a um latinzinho, para descrever aquelas situações de absoluta impossibilidade, nao importa para o que. “Ninguem é obrigado a fazer o impossivel”, diz o ditado, proclamando um truísmo.
Tome-se como verdadeira a escassez das fontes de energia eletrica, verossimil o anuncio do governo, que nao se sujeitaria ao desgaste decorrente das medidas necessarias a enfrentar a escassez, se houvesse, senão abundancia, ao menos energia para atender regularmente o consumo.
Se a escassez e verdadeira, impõe-se a adoção de providencias práticas para enfrentar a crise. Nas circunstancias, o “apagao” parece a medida inevitavel porque e a maneira mais propicia a dividir o problema entre os usuarios, cada um deles abdicando de parte do seu conforto, das suas comodidades e ate da satisfaçao plena das suas necessidades, em beneficio de todos.
Fala-se em liminares judiciais, impeditivas do “apagao”. Nao sei se é o caso de se perguntar – verdadeira a noticia da exausmo das fontes – como serao atendidas essas liminares, no momento em que nao houver meios de cumpri-las, de todo, ou senao pelo sacrificio de atividades essenciais.
O direito nao protege soluções simplistas. Nao ha decisao judicial que possa obrigar ao impossivel, se, verdadeiramente, nao se puder fornecer energia para todos. Mentiroso o anuncio, a conversa, obviamente, seria outra.
E legal o “apagao”, se ele for adotado para evitar o colapso caótico, decorrente da efetiva escassez de energia. Sao legais as multas, sanções destinadas a desestimular o consumo. Entretanto, como nenhuma lesão de direito pode escapar da apreciação do Judiciario, conforrne a garantia do art. 5°, XXXV, da Constituição Federal, os juizes porão cobro ao que ocorrer de ilegal e abusivo na aplicação das medidas preventivas da calamidade. Nao se pode, contudo, esperar que o Judiciario substitua o Executivo, decidindo sobre a conveniencia da soluçao adotada. Haveria, ai, uma usurpação de funções, incompativel com a independencia e harmonia dos poderes, estabelecida no art. 2° da Constituição.
Não duvido de que a crise da energia possa decorrer da incompetência dos órgãos incumbidos de fornecê-la, aos quais nao faltaram meios de antever o problema e de solucioná-lo, antes que ele se convertesse em catástrofe. Sejam as autoridades, então, julgadas pelos meios que a Constituição e as leis põem ao alcance dos cidadãos, principalmente o voto, nas eleições do ano próximo. Entrementes, e conviver com a realidade; a revoltante realidade a impedir que, mesmo com o indiscutível direito a energia, nós não possamos dispor dela, ficando na deploravel situação daquele hóspede, com reserva no hotel, mas sem quarto.