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MERCOSUL e ALCA: Complementaridade ou conflito?

5 de abril de 2002

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O tema reveste-se de extrema importância, agonizando a necessidade da sua discussão no âmbito e no contexto da regionalização.

Importa, inicialmente, situar o quadro da evolução do processo que esta na gênese do MERCOSUL, a sua estrutura integracionista, como união aduaneira e como mercado comum, a sua dimensão internacional e política, o seu caráter didático e a sua inquestionável importância na consolidação da economia do Cone Sul.

Após um breve escorço sobre a motivação político-econômica da ALCA, impende ressaltar as divergências entre os EUA , o Brasil e o MERCOSUL para se poder concluir que não haverá conflito se a ALCA tiver como objetivo alcançar uma complementaridade convergente com o MERCOSUL, em ordem a não o inviabilizar na sua identidade própria de bloco econômico aberto, referencial importante para os investidores internacionais.

Neste contexto, cabe referir que já em 1941, o Brasil e a Argentina tentavam a criação de uma união aduaneira, que foi abortada pelas diferenças políticas em relação aos Aliados e aos Países do Eixo.

Em 1948 foi constituída a Organização Internacional do Comercio da qual faria parte o GATT – Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio.

Nessa mesma altura, e criada a CEPAL- Comissão Econômica para a America Latina, da ONU, propondo-se estimular o processo da integração regional, ao mesmo tempo que na Europa e criada a Organização Européia de Cooperação Econômica – a OECE, destinada a administrar a ajuda norte­americana na reconstrução da Europa.

Em dezembro de 1960 , os 18 Estados da Europa Ocidental (Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Países-Baixos, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça e Turquia) converteram a OECE na OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – integrada pelos EUA e Canadá e mais tarde pelo Japão, Austrália e Nova-Zelandia.

Em 18 de abril de 1951, e criada em Paris a Comunidade Européia do Carvão e do Aço-CECA, processo de integração através da administração em conjunto dos recursos carboníferos e siderúrgicos da França e da Alemanha , aberta a adesão de outros países europeus, adotando o modelo inédito do direito comunitário.

Entre 1950-1953 registram-se tentativas de aproximação econômica entre o Brasil, a Argentina e o Chile – O chamado Pacto ABC – , que tiveram a oposição das correntes pró-americanas e anti-peronistas.

Em 1956, a CEPAL defende a constituição de um “mercado regional” sul­americano, mediante a adoção de acordos de tipo multilateral como forma de acelerar o processo de industrialização que foi, todavia, freado pela escassez de divisas.

Em 1957, os seis Países da CECA – ­Alemanha , França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo – criam em Roma a Comunidade Econômica Européia e a Comunidade Européia de Energia Atômica, que teve grande repercussão na America Latina , pela originalidade , verdadeiramente revolucionaria, de criação de entidades supranacionais.

Em 1958-1959 o Brasil lança a “Operação Pan-Americana” com a reaproximação Brasil/Argentina, dando-se início ao processo negociador da integração regional na America do Sul.

Em 1960, e assinado o Tratado de Montevidéu, criando a ALALC- Associação Latino-Americana de Livre Comercio , com o objetivo de criar um mercado comum regional, a partir da conformação de uma Zona de Livre Comercio, segundo as regras do GATT.

Em 1969, a Bolívia, o Chile, a Colômbia, o Equador e o Peru decidem criar um sub-grupo regional andino, através do Acordo de Cartagena, a que aderiu a Venezuela em 1973 e se retirou o Chile, em 1976.

Em 1975-1979 e negociado o Tratado Bilateral Brasil/Paraguai criando ITAIPU BINACIONAL.

Em 1980 e assinado o Tratado de Montevidéu que, no quadro de um amplo programa de redefinição de objetivos, compromissos e modalidades da integração econômica na região com mecanismos mais flexíveis de caráter bilateralista, cria a Associação Latino-Americana de Integração – a ALADI.

Em 1985, com a “Declaração de Iguaçu” os Governos brasileiro e argentino expressam a sua” firme vontade de acelerar o processo de integração bilateral”, criando uma Comissão Mista de Alto Nível, presidida pelos Ministros das Relações Exteriores dos dois países.

Em 1986 e assinada a Ata para a Integração Brasil-Argentina, que institui o Programa de Integração e Cooperação Econômica.

Em 1988 e assinado entre os dois países o “Tratado de Integração ,Cooperação e Desenvolvimento”, com o objetivo de formação de um mercado comum.

Nos EUA, em 1990, o Presidente Bush lança a “Iniciativa para as Américas” em ordem a acompanhar as transforma90es políticas e econômicas em curso na America Latina, com vista a forma9ao de uma Zona de Livre Comercio hemisférica, do Alasca a Terra do Fogo.

Nesse ano, o Brasil e a Argentina decidem conformar ate 31 de dezembro de 1994 o mercado comum bilateral. Na mesma ocasião e firmado o Tratado para o estabelecimento de um Estatuto das Empresas Binacionais Brasileiro-Argentinas.

Em 26 de março de 1991, e assinado o Tratado de Assunção com a finalidade de constituir um mercado comum entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, entrando em vigor em 29 de novembro de 1991.

Em dezembro desse ano, e assinado em Brasília o Protocolo para a Solução de Controvérsias , mecanismo ad hoc de solução arbitral dos conflitos comerciais entre os países membros do MERCOSUL .

Em Janeiro de 1994 entra em vigor o Acordo de Livre Comercio entre os EUA, Canadá e México, NATFA- North America Free Trade Agreement.

Nesse mesmo ano, 09 e 10 de dezembro, tem lugar em Miami a Reunião de Cúpula das Américas, na qual os Chefes de Estado e de Governo dos 34 países (com exceção de Cuba) subscrevem a Declaração de Princípios que visa a criação da ALCA ­- Área de Livre Comercio das Américas, estando prevista a conclusão das negociações ate o ano 2005.

Na mesma altura, 17 de dezembro de 1994, e assinado o Protocolo de Ouro Preto, que da personalidade jurídica internacional ao MERCOSUL e define a sua estrutura institucional.

Em 1995, 01 de janeiro, entra em vigor a união aduaneira do MERCOSUL.

Nesse ano, em dezembro, e assinado com a Comunidade Européia um Acordo­Quadro Inter-regional de Cooperação, para a criação de uma zona de livre comercio entre os dois blocos regionais.

Este é, em síntese apertada, o cenário temporal em que se foram desenvolvendo as iniciativas de integração no contexto da globalização.

A globalização pode ser definida como a interpenetração profunda da produção de mercadorias e de serviços, organizada a escala internacional, baseada em inovações e progressos técnicos designadamente no campo da comunicação e dos transportes, apoiada num mercado financeiro internacional e flanqueada por um desarmamento mundial das barreiras comerciais por organizações de âmbito mundial , como a OMC, e por pactos de âmbito regional – como a Comunidade Européia , o Nafta, o MERCOSUL, determinando uma diversificação internacional da produção de mercadorias e de serviços.

Como referido , o MERCOSUL e uma união aduaneira desde 01.01.1995.

O que e que isto significa exatamente?

O processo de integração segue uma linha evolutiva , consoante o grau de profundidade dos laços criados entre as economias dos países participantes.

O processo mais rudimentar e o da chamada ZONA DE PREFERÊNCIA TARIFARIA, que se resume em assegurar níveis tarifários preferenciais para o conjunto dos países integrantes da Zona, no sentido de que as tarifas praticadas entre esses países sejam inferiores as cobradas de países não participantes.

O 2° modele de integração e o da ZONA DE LIVRE COMERCIO, que consiste na eliminação das barreiras tarifarias, e não tarifarias, incidentes sobre o comercio entre dois ou mais países. De acordo com o GATT, um acordo comercial para ser considerado uma Zona de Livre Comercio deve atingir, pelo menos, 80% dos bens comercializados entre os países integrantes da Zona.

A 3ª modalidade de integração econômica e a UNIÃO ADUANEIRA , que é uma Zona de Livre Comercio, dotada de uma Tarifa Externa Comum -TEC, que consiste na aplicação de uma mesma Tarifa para as importações feitas pelos países integrantes da União Aduaneira de países não pertencentes ao Grupo.

04° tipo de integração e o MERCADO COMUM.

A diferença entre a União Aduaneira e o Mercado Comum é que aquela prevê apenas a livre circulação de bens e o Mercado Comum assenta em 4 liberdades de circulação: de bens, de pessoas, de serviços e de capitais. Alem disso, estabelece normas reguladoras de concorrência entre os Estados participantes, a coordenação das políticas macroeconômicas nas vertentes da política cambial, da política monetária e da política fiscal. Esta coordenação representa uma auto-limitação dos Estados nessas três esferas.

Por fim, a UNIÃO ECONÔMICA E MONETÁRIA, que ocorre quando existe uma moeda única e uma política monetária conduzida por um Banco Central Único.

Enquanto no Mercado Comum, os países participantes coordenam as suas políticas macroeconômicas, na União Econômica e Monetária eles tem a mesma política macroeconômica. No 1° caso, coordenação , no 2° caso, unificação.

O Mercosul foi uma zona de livre comercio, constituindo o chamado “período de transição” , que durou de 31 de junho de 1991 ate 31 de dezembro de 1994 e que forma a arquitrave da estrutura integracionista.

Assim, a partir de 1991, cada pais ia semestralmente reduzindo as tarifas que aplicava aos produtos importados dos outros países do MERCOSUL. O processo desgravação tarifaria terminou em dezembro de 1994, quando a tarifa que cada Estado Parte do Mercosul cobra sobre os produtos dos demais chegou a 0%.

Todos os produtos? Nem todos. Existe um mecanismo de exceções temporárias liberalização comercial intrazona .

Assim, no segundo semestre de 1994, os 4 Países aprovaram um instrumento denominado ‘Regime de Adequação”.

Esse regime permitiu a cada Pais elaborar uma lista de produtos que só teriam tarifa no comercio dentro do MERCOSUL no período fixado de comum acordo. A finalidade do Regime de Adequação é possibilitar determinados setores produtivos, com maior problemas de competitividade, um pré adicional para adaptarem-se ao livre comércio.

Afora o Regime de Adequação, dois outros tipos de produtos estão fora da zona livre comercio: os produtos do setor açucareiro e as mercadorias oriundas das Zonas Francas.

Ainda no âmbito do livre comercio intrazona importa referir as Medidas Nao-Tarifárias e as Restrições Nao-Tarifárias. Destas, as mais comuns são as proibições de importar, as quotas, os requisitos de autorização previa para importar. Aquelas tem por objetivo finalidades outras, como a saúde, a segurança, o meio ambiente. As mais comuns dizem respeito condições sanitárias de produtos de origem vegetal ou animal.

A TEC da a dimensão extra-zona da conformação do MERCOSUL .

Até 31 de dezembro de 1994 Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai tinham cada um a sua própria Tarifa. A partir de 01.01.1995 passaram a ter uma mesma Tarifa – TEC, o que demonstraria o compromisso político dos países com o MERCOSUL, já que sendo comum só de comum acordo poderia ser alterada.

A TEC, além de demonstrar a coragem e a confiança dos Estados – Partes no próprios MERCOSUL, constituiria, ainda, um fator respeitabilidade no cenário internacional porque não e todos os dias que quatro pai adotam uma TEC. Ao apresentar-se à comunidade internacional como um bloco, importando com a mesma tarifa, o MERCOSUL estaria dando prova da seriedade e de solidez do processo, demonstrando maturidade e eficiência negociadora .

Todavia, lamentavelmente, os últimos acontecimentos estão pondo em risco a viabilização do MERCOSUL.

Para enfrentar a crise instalada, e necessário romper com conceitos ultrapassados de soberania, concebida como um poder absoluto, sem limites. É imperativo que se adote um esquema de soberania partilhada, que possibilite a instituição de entidades supranacionais, que atendam aos interesses e as exigência do MERCOSUL, dotado como e de personalidade jurídica de direito internacional.

Mas o Mercosul não se esgota na união aduaneira. Constitui um autentico processo integrador, cujo objetivo maior é o de melhorar as condições e a qualidade de vida, num contexto político que devera caminhar rumo a Comunidade latino-americana de Nações , na dicção constitucional do § único do artigo 4°.

O Mercosul, diferentemente do Tratado de Montevidéu, de 1980, tem dimensão internacional e é como pessoa jurídica de direito internacional que tem de negociar e de firmar acordos regionais , multilaterais ou bilaterais.

A sua importância no cenário internacional pode ser aferida, entre outros indicadores, pelo interesse da União Européia, nos termos do Acordo-Quadro, antecedido por um Acordo Inter-institucional, e do interesse crescente das empresas européias em desenvolver relações de cooperação econômica a longo prazo. Cabe referir que, segundo o Parlamento Europeu , o orçamento comunitário para a America Latina tem vindo a aumentar, ultrapassando a contribuição conjunta dos EUA e de Japão e, conforme relatório da Comissão Européia o aumento de fluxos de investimentos passou de US$ 3,5 bilhões no período de 76/80 para US$ 17 bilhões em 1993.

A conceituada revista inglesa “The Economist” , na sua edição de outubro de 1996, considerou o MERCOSUL “o esquema de integração regional mais ambicioso do mundo, desde o nascimento da Comunidade Econômica Européia em 1957”.

O Mercosul tem, outrossim, dimensão política , na medida em que pode contribuir para a estabilidade do Cone Sul e, portanto, da America do Sul, já que considera obstáculo inaceitável a continuidade do processo de integração toda alteração de ordem democrática.

Por estas razoes, não pode ser diluído numa integração econômica na modalidade de livre comercio , como é o caso da ALCA , sob pena de violação do Tratado de Assunção e do Protocolo de Ouro Preto.

O Brasil tem agido com firmeza e acerto nas negociações para a implementação do projeto ALCA.

E também aqui o aspecto temporal da ALCA é importante para sua melhor compreensão.

Hoje a America deixou de ser o futuro da Europa que se fortalece e se integra num bloco de forte poder político-econômico, razão porque esta fazendo o caminho de volta a casa.

Com efeito, no final da II Guerra Mundial, a que se seguiu a guerra fria, o enfrentamento dos EUA e da Rússia, justificou a ocupação do vazio de poder na Europa, exaurida pelo esforço da guerra e pela perda de milhares de vidas, ficando a parte oriental sob a influencia da União Soviética e a parte ocidental sob a dos EUA. Porem, a partir de 1986, a Perestróica de Gorbachev pôs em causa a presença armada dos EUA na Europa. Caíram as muralhas, caiu o Muro de Berlim , a Europa Ocidental acelera e aprofunda a sua integração , ampliando-a aos países da Europa Central e Oriental. consequentemente, os EUA viram-se forçados a retornar ao próprio continente. E se, ate ali, apenas queriam da America matérias primas baratas e mão de obra, igualmente barata, agora precisam dessa America para garantir um mercado consumidor de grande potencial, como condição mesma do seu próprio desenvolvimento econômico.

Como diz o sociólogo mexicano Leopoldo Zea “A historia em sua marcha obriga os EUA a voltarem para casa e, com isso, ao continente do qual são parte” .

Dai a ALCA.

Isso, porem, implica uma mudança de mentalidade. É preciso que os EUA ponham de lado a sua arrogância quando buscam impor os seus interesses, ao arrepio da dinâmica da integração, que, ao invés de impor, deve procurar conciliar interesses numa relação de solidariedade e de partilha.

A estrutura da ALCA deve repousar sobre os agrupamentos regionais já existentes – os chamados “building blocks” – e o acordo só devera ser assinado quando tudo estiver acordado, segundo o principio do “single undertaking“.

A ALCA é um projeto importante para a America Latina, desde que não se faça dele um jogo de poder e os EUA o aceitem tal como ele é – uma necessidade para eles próprios.

Os EUA necessitam da America Latina como a America Latina necessita dos EUA bem como de outros agrupamentos econômicos , notadamente, a União Européia, com cujos povos tem fortes laços de sangue e de cultura.

A relação com os povos da America tem de ser aquela que vem sendo buscada ao longe da historia da America Latina. Uma relação como a que sonhou Simon Bolívar, impregnada de historia e de um sentimento comum de pertença.