Edição 171
Mentecapta, pagamento da dívida
24 de novembro de 2014
Antonio Carlos Esteves Torres Desembargador do TJERJ
A fórmula tradutora do sentido que se quis emprestar ao artigo “Dívida com a mentecapta”, agora repetida, não alcançou seus objetivos. Dúvidas permaneceram e muito poucos conseguiram perceber a ironia eufemística do texto, “subido” na escala vocabular, justamente para o contraponto da baixeza do comportamento da torcedora gremista, identificado como hábito da sociedade nacional, como um “quase todo”.
Pois bem, anima-nos a republicação, porque o cotidiano brasileiro se ocupou de ilustrar o tema, diante do procedimento crítico destinado a possíveis eleitores da candidata à reeleição, vencedora, em termos de quantitativo pouco confortável, mas jamais com prestígio suficiente para os xingamentos que materializam a principal característica da ofensa racial semiológica, agora com laivos geopolíticos. Ah, destino! Ah, verdade! Um dia sempre aparecem.
O episódio do xingamento (termo cuja origem etimológica se contrapõe às das reprovações de arquibancada) dirigido a um atleta, no Rio Grande do Sul, por uma torcedora gremista descontrolada, com o brado indignado – macaco! – oferece oportunidade de reexame da configuração social brasileira.
A força histérica da cidadã desportista não deve submetê-la à pública execração. Considerável parcela da população brasileira, embora com menos ímpeto e muito disfarce, reproduz o comportamento da mesma forma, sempre. A fórmula é conhecida, dependendo das circunstâncias: nego, neguinho, neguim, negão.
A agressora não tem muito com o que se preocupar: tudo passará, dentro em pouco: as eleições, as mazelas inflacionárias e as minúsculas expectativas quanto ao PIB se ocuparão de diluir o incidente.
As reações dos comuns do povo, quando surpreendidos no uso de expressões “nega do cabelo duro” ou “samba do crioulo doido”, na tardia percepção da presença de afrodescendentes, são as de quem procura reter a trajetória da flecha lançada ou retomar a esperança da oportunidade perdida. Não há volta.
A xingadora (outra vez!), igual a quase toda gente, reedita o ódio remanescente entre a casa grande e a senzala, agora, perceptível entre os desprovidos de educação ou firmeza moral. Lupicínio, Gilberto Gil, Pixinguinha, Mandela, Obama deixam alguma dúvida no ar sobre o acerto da comparação com os símios, embora, como dizem os rasteiros de plantão, “preto, quando não suja na entrada, suja na saída”.
Assim, a hipocrisia nacional dá continuidade ao esforço, ainda bem-sucedido, de manter na categoria dos cidadãos de segunda classe os que não ostentam alguma claridade de pele ou abrandamento da rigidez capilar.
A evolução social no Brasil, na vertente etnológica, ainda carece de encontro com a sua realidade. As divergências científicas não podem esclarecer o fato de os próprios descendentes da africanidade, vizinhos e amigos (amigos, sim, por que não?), como já se noticia, apressarem-se a defendê-la, com argumentos de que a jovem torcedora racista não é.
E talvez não o seja. Repetidora, apenas, de fórmulas batidas, que no seu âmago, no seu interior mais profundo, não configurariam arcabouço doutrinário ou teórico de valor científico, para a estruturar racismo, nem se incluiriam no desenho de ofensa consciente no intuito de atingir a honra subjetiva da vítima, como consagra o tipo penal, introduzido pela Lei no 7.716/1989, alterada pela Lei no 9.459/1997. É, para muitos, apenas um procedimento corriqueiro do cotidiano social do País, sem efeito discriminatório prejudicial. Vejam que tecnicamente, hoje, os estudiosos e sábios já divisam, doutrinária e teoricamente, os crimes de racismo e de injúria racial, com todas as hesitações antropológicas envolvidas.
Foi isso que quisemos dizer, com o artigo “Dívida com a mentecapata”, sem bom sucesso. A fórmula irônica pelo viés da pseudoerudição não atingiu o objetivo, para muita gente. Vieram críticas. Fui obrigado a tentar explicar, com as escusas pela imprecisão do texto original, vestido de linguagem antiga e desusada, para efeito inalcançado. Vai a título de tradução.
Para os do mundo jurídico, fica uma demonstração do quanto é sábio o art. 156 do CPC, ao tornar obrigatório o uso do vernáculo (dificilmente, a xingadora tem ciência de que a origem desse termo remonta ao escravo nascido na casa do amo…), linguagem castiça, correta, livre de estrangeirismos, inteligível, portanto. Daí, a inclusão desse ligeiro comentário, tradutor de um pretensioso arroubo literário, estranho à lisura de decisões judiciais e pleitos advocatícios, recomendado pela generosidade dos puros de alma e divulgado pelos meios mais corajosos e sustentadores da liberdade de expressão, ainda que arrogante, na Página de Estudos Especiais do CEDES/TJRJ.
Perdoem-me a insistência. Mas é justamente a acomodação do silêncio que produz a” meia sola” dos instrumentos legislativos (admissíveis como suplemento e não como fim único) copistas das mecânicas estrangeiras (aliás, já reprovadas em solo norte-americano, por sanar um erro, cometendo outro), reveladores da “quase inutilidade” das tentativas compensatórias das frustradas corrigendas da irreversibilidade histórica. Que se pague melhor aos professores; que se organize o sistema educacional. O ensino superior – se e quando afastado das sendas comercialistas – virá naturalmente, como consequência, para a quem se terá garantido a igualdade das bases pedagógicas.