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Livro aberto

15 de julho de 2015

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Liberdade e honra estiveram em debate na manhã de 10 de junho, no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). De um lado da balança, os defensores da publicação de biografias não autorizadas, contrários a “censura prévia”, entre os quais a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel). Do outro, os que defendiam a privacidade dos biografados e sentiam-se atingidos pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, como a entidade Procure Saber e o Instituto Amigo, do cantor e compositor Roberto Carlos. 

Casos como a obra “Estrela Solitária” (Companhia das Letras, 1996), escrita por Ruy Castro, envolvida em longo imbróglio com a família do falecido ex-jogador do Botafogo e da seleção brasileira de futebol Garrincha, tiveram bastante repercussão nos últimos anos. Outro exemplo é “Roberto Carlos em Detalhes” (Editora Planeta, 2007), de Paulo Cesar de Araújo, recolhido das livrarias poucos dias após o seu lançamento.

Antes de os nove ministros do Supremo se manifestarem, o advogado do Instituto Amigo, Antonio Carlos de Almeida Castro – defendendo os interesses de seu cliente e, segundo ele, “a dignidade da pessoa humana” – citou passagem clássica do livro “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes. “Poderia parafrasear aqui um verso imortalizado por Dom Quixote sobre a liberdade. ‘A liberdade, Sancho [Pança], é um dos dons mais preciosos que os homens deram aos céus. Pela liberdade, e também pela honra, se deve arriscar a própria vida.’” Enfatizando, em seguida, as palavras “liberdade” e “honra”, Antonio Carlos defendeu a autonomia da imprensa, a livre expressão, o direito à informação e, sobretudo, a liberdade de se manter a dignidade da pessoa humana. Ele acredita, portanto, que, em última análise, não existe direito absoluto, mas a necessidade de se ponderar entre o direito à liberdade e à informação.

Porém, todos os membros da Suprema Corte designados a participar do julgamento acabaram por acompanhar o voto da ministra Cármen Lúcia. Primeira a votar, a relatora da ação condenou a censura prévia sobre esse tipo de obra. “Pela biografia, não se escreve apenas a vida de uma pessoa, mas o relato de um povo, os caminhos de uma sociedade. Tentar calar o outro é uma constante, mas na vida aprendi que quem por direito não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito”, afirmou a juíza.

Ainda durante o debate, mesmo deixando clara a defesa da liberdade de expressão e do direito à informação, os magistrados ressaltaram que eventuais abusos cometidos pelos biógrafos, como fatos inverídicos ou ofensas à honra ou à imagem dos biografados, poderão levar a indenizações, a serem definidas pelo Judiciário. O ministro Gilmar Mendes disse, em seu voto, que além do pagamento à parte que se sentir lesada, outros meios poderão ser buscados para reparar danos, como uma nova versão da obra, publicada com a devida correção ou mesmo com direito de resposta. O jurista também falou da possibilidade de uma decisão judicial que “suste uma publicação”. Após a fala de Gilmar Mendes, a ministra Cármen Lúcia decidiu retirar o trecho de seu voto onde a reparação se limitava à indenização financeira. Com isso, será possível, em situações extremas, apreender uma obra já publicada, por exemplo.

Encerrando a sessão, o ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo, salientou que “uma tese cara ao Tribunal” estava sendo reafirmada naquele momento, “a absoluta liberdade de expressão sem qualquer censura prévia, nos estritos termos do pedido da inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815”. Lewandowski proclamou então o resultado: por decisão unânime, a Corte julgou procedente a ADI para dar interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil:

[…] sem redução de texto para, em consonância com os direitos fundamentais, a liberdade de pensamento e de sua expressão de criação artística e produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada, relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária a autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de seus familiares em caso de pessoas falecidas.

Um dos artigos do Código Civil citados pelo ministro Lewandowski – e que serviram de base para a análise do STF – permite à pessoa proibir publicações com fins comerciais ou que atinjam sua “honra, boa fama ou respeitabilidade”. O outro diz que a vida privada é “inviolável” e que cabe ao juiz, a pedido da pessoa interessada, adotar medidas para impedir algum ato que contrarie esse preceito. A histórica decisão de 10 de junho não anulou essas regras, mas afastou a possibilidade de interpretá-las de modo a proibir publicações não autorizadas.

Após o julgamento, Roberto Feith, representante da Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), disse ver a decisão da Suprema Corte com muita alegria. “É uma conclusão bem-sucedida de três anos de luta dos editores. E não destes, mas de todos os brasileiros que reconquistaram o direito à plena liberdade de expressão e ao livre acesso ao conhecimento sobre a nossa história. O Supremo deixou absolutamente claro que todo e qualquer cerceamento prévio à publicação de biografias é inconstitucional e esse era o nosso grande objetivo”, afirmou.

Quem também comemorou a “vitória retumbante” da liberdade de expressão foi o advogado da Anel, Gustavo Binenbojm, ainda que, “nos casos extremos teratológicos – e sempre a posteriori –, o Poder Judiciário pode tomar medidas para reparar eventuais danos causados em situações de atuação ilícita. Mas isso, a meu ver, é exceção e o que deve ser celebrado é esse passo largo dado no caminho da plena liberdade de expressão”. Gustavo ressaltou que o resultado significa uma vitória não só dos editores e autores, mas de todos que amam a literatura, a cultura e acreditam que as palavras e as ideias podem mudar o mundo.

O escritor Paulo César de Araújo, autor da famosa – e polêmica – biografia não autorizada sobre a vida de Roberto Carlos, viu a decisão como um marco contra a censura no País. “Ela eliminou, talvez, o último entulho autoritário que tínhamos na nossa legislação e permitiu adequar o Brasil agora, definitivamente, no campo da biografia, no Estado Democrático de Direito”, afirmou.

O contundente recado passado pelos nove ministros do Supremo encorajou editoras a tirarem antigos projetos da gaveta. É o caso da Sextante. Tomás da Veiga Pereira, sócio da editora, acredita que algumas ideias perseguidas há anos e que antes esbarravam no interesse ou na disponibilidade do biografado poderão agora ser pensadas e realizadas. No entanto, Tomás prefere não revelar quais projetos a Sextante tem em mente, “por questões de concorrência”, mas garante que em algumas semanas novidades serão anunciadas. A Companhia das Letras também estuda lançar uma biografia sobre o comunicador Silvio Santos e os falecidos empresários Roberto Civita (ex-presidente do Grupo Abril) e Roberto Marinho (ex-proprietário do Grupo Globo), previstas para 2016 e 2017. Uma biografia de Renato Russo também está na mira da editora.

O “biógrafo-desafeto” de Roberto Carlos prepara agora “O Réu e o Rei” (Editora Record), cujos detalhes seguem em sigilo, ainda que, pelo título, deixa transparecer as motivações de Paulo César. Mas apesar das novas possibilidades abertas, o escritor não pensa em relançar “Roberto Carlos em Detalhes”, ao menos por enquanto. Ainda assim, Paulo César Araújo sabe que “daqui pra frente tudo vai ser diferente”.