A liberdade de reunião em espaços públicos, como corretamente ensina André de Carvalho Ramos, constitui um direito-meio, que potencializa o exercício da liberdade de manifestação, ampliando a participação da sociedade civil na vida política[1]. Onde os cidadãos estão impedidos de expressar suas ideias, queixas ou demandas nas ruas e praças públicas não existe democracia plena. Nesse regime, caracterizado por Georges Burdeau como de “poder aberto”, a vontade popular “dita os seus imperativos aos governantes”, considerada “na sua complexidade real”, em que os prós e os contras, ambos “tidos por igualmente válidos”, devem ser tratados “com idêntica consideração”[2].
Essa concepção remonta às próprias origens da democracia no mundo ocidental, como se constata a partir do diálogo, reproduzido por Platão, entre o sofista Protágoras e o filósofo Sócrates, no qual este último replica ao primeiro que a arte da política, ao contrário das demais técnicas (téchnai), “não pode ser ensinada por ninguém, nem transmitida de uma pessoa para outra”, pois quando “a deliberação diz respeito à administração da cidade, qualquer indivíduo pode levantar-se para emitir opinião, quer seja carpinteiro, quer seja ferreiro, sapateiro, mercador ou marinheiro, rico ou pobre, nobre ou vil, indiferentemente, sem que ninguém apresente objeção”[3]. Ou seja, qualquer membro da comunidade política (polis), seja qual for a sua origem ou condição social, tem o direito de participar da gestão da coisa pública, externando suas convicções e sugestões.
O próprio Protágoras admite, no referido colóquio, que essa prerrogativa tem origem na preocupação de Zeus em evitar que as cidades perecessem, vergadas sob o peso da discórdia, motivo pelo qual teria enviado seu mensageiro, Hermes, para repartir entre todos os homens, de forma equitativa, duas virtudes fundamentais, o respeito (aídos) e a justiça (dikè), para que a harmonia prevalecesse entre eles[4]. Isso fez do renomado sofista, conforme Claude Mossé, “um teórico do sistema político que implica a igualdade de todos na tomada de decisões, em outras palavras, a democracia”[5].
O Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre essa temática na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.969/DF, relatada pelo autor deste artigo, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), juntamente com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Por meio da mencionada ação, os autores postularam o reconhecimento da inconstitucionalidade do Decreto distrital nº 20.098/1999, que, a pretexto de regulamentar o inciso XVI do art. 5º da Constituição de 1988[6], vedava a realização de manifestações públicas mediante a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Praça do Buriti, Esplanada dos Ministérios e vias adjacentes.
Acolhendo o voto do relator, o Plenário da Corte reconheceu a alegada inconstitucionalidade, assentando que a liberdade de reunião e de associação para fins lícitos configura uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias, tendo resultado das lutas empreendidas pela humanidade contra o absolutismo monárquico a partir do Século XVIII de nossa Era.
O relator lembrou, em seu voto, que Recasens Siches, estudando o assunto, ressalta que essa liberdade, de caráter instrumental, possui um duplo alcance: de um lado, assegura a expressão duma das mais importantes liberdades individuais; de outro, garante a espontaneidade da atuação dos distintos grupos sociais[7]. Não por outra razão é que Jean Rivero classifica a liberdade de reunião como uma das mais elementares de todas as liberdades coletivas[8].
Tal franquia foi contemplada, pela primeira vez, no âmbito do Direito positivo, na “Declaração de Direitos” de 1776, do recém-criado Estado da Pensilvânia, que, na esteira do movimento de independência das treze colônias britânicas da América do Norte, assegurava ao povo, em seu art. 16, “o direito de se reunir, de deliberar o bem comum, de dar instruções a seus representantes e de solicitar à legislatura, por meio de mensagens, de petições ou de representações, a emenda dos erros que considere por ela praticados”[9].
Logo em seguida, ela foi incorporada à Constituição Francesa de 1791, a qual, em seu Título 1º, § 2º, consignava que: “A Constituição garante, como direitos naturais e civis (…) a liberdade aos cidadãos de se reunirem pacificamente e sem armas, atendidas as leis de polícia”[10]. Desde então, a proteção dessa liberdade essencial passou a constar de praticamente todos os textos constitucionais dos Estados modernos, bem como das declarações e pactos internacionais de proteção dos direitos humanos.
Como documento pioneiro no âmbito do Direito das gentes tem-se a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, de 1948, subscrita sob a égide da Organização das Nações Unidas, que estabelece, em seu art. 20, o seguinte: “Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas”. Inspirado nesse diploma, o art. 21 do “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos”, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966, e ratificado pelo Brasil em 12 de dezembro de 1991[11], é ainda mais explícito:
O direito de reunião pacífica será reconhecido. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a moral pública ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.[12]
Konrad Hesse, a propósito, observa que o direito dos cidadãos de se reunirem pacificamente e sem armas encontra-se intimamente ligado à liberdade de expressão, registrando que a “formação de opinião ou formação preliminar de vontade política, pressupõe uma comunicação que se consuma, em parte essencial, em reuniões”[13].
O Ministro Marco Aurélio, nessa mesma linha, para fundamentar a concessão de medida liminar concedida antes do exame do mérito da demanda, assentou que “o direito de reunião previsto no inciso XVI está associado umbilicalmente a outro da maior importância em sociedades que se digam democráticas: o ligado à manifestação de pensamento”.
De fato, no Brasil, a liberdade de reunião sempre foi contemplada pelas Constituições republicanas, entrevista como liberdade pública de caráter fundamental, encontrando lugar no capítulo relativo aos direitos e garantias individuais.[14] A Constituição de 1891, vale lembrar, em seu art. 72, § 8º, dispunha que: “A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública”. Esse texto, com algumas alterações, foi repetido nas Constituições de 1934[15], 1937[16], 1946[17] e 1967[18].
A chamada Constituição cidadã, promulgada em 1988, na senda aberta pelas Cartas anteriores, ao mesmo tempo em que garante a todos a liberdade de reunião, em seu art. 5º, XVI, estabelece no próprio Texto Magno, com a necessária parcimônia, os limites e condições para o respectivo exercício, quais sejam: “reunir-se pacificamente”, “sem armas”, “desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local” e o “prévio aviso à autoridade competente”.
É bem verdade que liberdade de reunião não é um direito absoluto. Nenhum direito, aliás, o é. Até mesmo os direitos havidos como fundamentais encontram limites explícitos e implícitos no texto das constituições. Canotilho, nesse sentido, ensina que a compreensão da problemática das restrições de direitos e garantias fundamentais exige uma “sistemática de limites”, classificando-as de acordo com a seguinte tipologia: a)restrições constitucionais diretas ou imediatas, que são aquelas traçadas pelas próprias normas constitucionais; b) restrições estabelecidas por lei mediante autorização expressa da constituição; e c) restrições não expressamente autorizadas pela constituição, que decorrem da resolução de conflitos entre direitos contrapostos[19].
Essa última limitação ocorre, por exemplo, no caso de uma manifestação barulhenta nas imediações de um hospital, pois ela, claramente, afeta a tranquilidade que deve imperar nesse tipo de ambiente, porquanto prejudica o restabelecimento dos pacientes internados. Nessa hipótese, tem-se uma evidente colisão entre direitos fundamentais, pois o direito dos doentes à saúde, por óbvio, prevalece sobre o direito de reunião, em que se pretende utilizar carros, aparelhos e objetos sonoros.
O Ministro Nelson Jobim, perfilhando esse entendimento registrou, em voto proferido no julgamento da cautelar, o seguinte:
(…) não vejo nenhum problema em se realizar uma reunião pública, imensa, perante o Hospital de Base, mas, silenciosa. Isso não teria nenhum problema. Agora, seria absolutamente contrário à possibilidade desta reunião ser sonora, porque, aí, é um direito que deve ser assegurado, o direito dos internados (…).
Examinando a questão sob os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o Ministro Gilmar Mendes, em obra doutrinária, assenta que a legitimidade de eventual medida restritiva a direitos fundamentais “há de ser aferida no contexto de uma relação meio-fim (Zweck-Mittel Zusammenhang), só podendo ser pronunciada a inconstitucionalidade que contenha limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (não-razoáveis)”[20].
Nessa senda, a Corte verificou que restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital nº 20.098/1999 mostrava-se também inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), que era – e ainda é – a de permitir que todos os cidadãos possam reunir-se pacificamente para fins lícitos, expressando livremente as suas opiniões.
A questão submetida ao STF, com efeito, não guardava qualquer semelhança com as restrições aos direitos fundamentais contemplados pela doutrina e jurisprudência. Na verdade, o Decreto distrital nº 20.098/1999 inviabilizava, de forma drástica e generalizada, a liberdade de reunião e de manifestação, logo na Capital da República, em especial na emblemática Praça dos Três Poderes, “local aberto ao público” [21], que, na concepção do genial arquiteto Oscar Niemayer, seu idealizador, seria o locus privilegiado onde a soberania do povo brasileiro encontraria a máxima expressão.
A vedação ao emprego “de carros, aparelhos e objetos sonoros” nesse e em outros espaços públicos que o Decreto vergastado impunha, inviabilizaria por completo a livre expressão do pensamento nas reuniões levadas a efeito nesses locais, porque as tornaria emudecidas, ou seja, ineficazes para os propósitos pretendidos por seus participantes
Não por outra razão que o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu pronunciamento inicial, asseverou o quanto segue:
Daí a rombuda inconstitucionalidade – que não tenho cerimônia de proclamar de logo neste juízo liminar – de um decreto que na cidade moderna – e numa das cidades de maiores espaços urbanos do mundo – com vistas a uma praça projetada na esperança de que um dia o povo a enchesse, a reunião fosse permitida, desde, porém, que silenciosa.
Analisando a questão também sob uma ótica pragmática, o relator do feito consignou que as reuniões, segundo a dicção constitucional, haveriam de ser previamente comunicadas às autoridades competentes, que, tão logo informadas, haveriam de organizá-las de modo a não inviabilizar o regular fluxo de pessoas e veículos. Ponderou, ademais, que a utilização aparelhos de som em reuniões desse tipo, por definição limitadas no tempo, a toda a evidência, não causariam maiores prejuízos àqueles que, porventura, se encontrassem nas imediações.
Nessa mesma linha, o Advogado-Geral da União opinou que “a utilização de aparelhos sonoros por um certo período de tempo, bem como a limitação parcial de acesso a determinadas vias, não enseja restrições ao exercício de legítimos direitos públicos subjetivos”.
Perfeito, portanto, o ensinamento do Ministro Celso de Mello, expressado no livro “O direito constitucional de reunião”, em que afirma:
a) O direito de reunião constitui faculdade constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País; b) os agentes públicos não podem, sob pena de responsabilidade criminal, intervir, restringir, cercear ou dissolver reunião pacífica, sem armas, convocada para fim lícito; c) o Estado tem o dever de assegurar aos indivíduos o livre exercício do direito de reunião, protegendo-os, inclusive, contra aqueles que são contrários à assembleia; d) o exercício do direito de reunião independe e prescinde de licença da autoridade policial; e) a interferência do Estado nas reuniões legitimamente convocadas é excepcional, restringindo-se, em casos particularíssimos, à prévia comunicação do ato à autoridade ou à prévia comunicação designação, por ela, do local da assembleia; (…) h) o direito de reunião, permitindo o protesto, a crítica e a manifestação de ideias e pensamento, constitui instrumento de liberdade dentro do Estado Moderno.[22]
O Supremo Tribunal Federal, a vista de todos esses argumentos, concluiu, ao cabo do julgamento, que não havia como considerar hígida, do ponto de vista constitucional, a vedação impostas às manifestações públicas que utilizassem carros, aparelhos ou objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Praça do Buriti, Esplanada dos Ministérios e vias adjacentes, razão pela qual o Decreto distrital nº 20.098, de 15 de março de 1999, foi considerado contrário aos ditames da Carta Magna de 1988.
NOTAS_______________________
[1] RAMOS, André de Carvalho. “Curso de Direitos Humanos”. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p.788.
[2] BURDEAU, Georges. “A democracia”. 2ª ed., s/d, p. 104-106.
[3] Platão, “Protágoras”, 319, b-c.
[4] Idem, 323, c-d.
[5] MOSSÉ, Claude. “Péricles: o inventor da democracia”. São Paulo: Estação Liberdade, 2008, p.175.
[6] “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
[7] SICHES, Luis Recasens. “Tratado general de Filosofia del Derecho”. México: Editorial Porrua, 1978, p. 581.
[8] RIVERO, Jean. “Les libertés publiques”. Paris: Presses Universitaires de France, 1977, p. 356.
[9] “That the people have a right to assemble together, to consult for their common good, to instruct their representatives, and to apply to the legislature for redress of grievances, by address, petition, or remonstrance”.
[10] “La Constitution garantit, comme droits naturels e civils (…) la liberté aux citoyens de s´assembler paisiblement et sans armes, en satisfaisant aux lois de police”.
[11] O Congresso Brasileiro aprovou o Pacto por meio do Decreto-Legislativo 226, de 12/12/1991, depositando a respectiva Carta de Adesão na Secretaria-Geral da ONU em 24/1/1992, tendo entrado em vigor em 24/4/1992.
[12] “Le droit de réunion pacifique est reconnu. L´exercice de ce droit ne peut faire l´objet que des seules restrictions imposées conformément à la loi et qui sont nécessaires dans une societé démocratique, dans l´intérêt de la sécurité nationale, de la sûreté publique, de l´ordre ou pour proteger la santé ou la moratité publiques, ou les droits et les libertes d´autrui.”
[13] HESSE, Konrad. “Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha”. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 313.
[14] A Constituição do Império assegurava, em seu art. 179, § 4o, o direito de comunicar os pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los, mas não mencionou expressamente a liberdade de reunião.
[15] Constituição de 1934, art. 113, § 11: “A todos é licito se reunirem sem armas, não podendo intervir a autoridade senão para assegurar ou restabelecer a ordem pública. Com este fim, poderá designar o local onde a reunião deve se realizar, contanto que isso não impossibilite ou frustre”.
[16] Constituição de 1937, art. 122, § 10: “Todos têm direito de reunir-se pacificamente e sem armas. As reuniões a céu aberto podem ser submetidas à formalidade de declaração, podendo ser interditadas em caso de perigo imediato para a segurança pública”.
[17] Constituição de 1946, art. 141, § 11: “Todos podem reunir-se, sem armas, não intervindo a polícia senão para assegurar a ordem pública. Com esse intuito, poderá a polícia designar o local para a reunião, contanto que, assim procedendo, não a frustre ou impossibilite”.
[18] Constituição de 1967, art. 150, § 27: “Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a ordem. A lei poderá determinar os casos em que será necessária a comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por esta, do local da reunião”.
[19] CANOTILHO, J. J. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1276.
[20] MENDES, Gilmar Ferreira. “Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional”. São Paulo: Celso Bastos, 1998. p. 39.
[21] Expressão conforme o art. 5o, XVI, da Constituição Federal.
[22] MELLO, Celso de. “O direito constitucional de reunião”. RJTJSP, São Paulo: Lex Editora, 1978, p. 23.