Leves, soltos e ricos, bem ricos

5 de março de 2004

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A democracia já foi definida como o sistema da desconfiança institucional. A fiscalização dos agentes privados e públicos ocorre na forma demarcada pela lei. Afinal, são muitos os perigos dessa vida. O controle se faz a posteriori para evitar atos danosos — tal como a censura — e qualquer outra interferência, formal ou informal, estranha à rotina do trabalho.

O ápice desse processo é a eleição que, de quatro em quatro anos, submete todos os mandatos políticos ao controle dos cidadãos. As administrações públicas, além dos mecanismos internos que criam, ficam também sob o crivo de fiscalização externa — como os tribunais de contas — além das ações do Poder Legislativo e do Ministério Público.

Ai de nós, no Rio de Janeiro, se não fossem os agentes externos. Foi graças a um punhado de deputados estaduais em coordenação com o Ministério Público que aqueles fiscais, apanhados com mais de US$ 35 milhões depositados na Suíça, foram dormir no xadrez. Caso contrário, estariam gozando as perversas delícias da impunidade. Devidamente fiscalizados, descobriu-se apenas uma parte da forma com que usaram, abusaram e se lambuzaram com o dinheiro público. Tudo sob as barbas do governo do Estado que os homenageava com cargos, prerrogativas e privilégios funcionais. Agiam leves, soltos e, naturalmente, ricos. Bem ricos.

Onde e como estavam as linhas de controle e fiscalização internas enquanto aqueles indivíduos levaram para a Suíça o dinheiro dos contribuintes? Em estado de letargia, ou alguém duvida?

Casos menos momentosos também reforçam a existência de problema nos mecanismos de controle. Vejam, por exemplo, o episódio de 800 carros de polícia, comprados com o suor do rosto dos contribuintes e abandonados nos pátios das delegacias e dos batalhões da PM, da mesma maneira que outros 400 veículos que viraram sucata por falta de manutenção. Estes dados estão chancelados pelo secretário de Segurança do estado que responde de maneira direta pela política de segurança pública já por nada menos de 1.500 dias, considerando o período que era o governador de direito e não de fato.

Do bolso do contribuinte — e, mais uma vez, por falha dos controles internos— saíram os “frutos” dos inquéritos administrativos instaurados para apurar crimes cometidos por policiais. Quem não se lembra dos 750 maus policiais — ainda segundo dados fornecidos pelo secretário de Segurança — que foram beneficiados com o retorno às suas atividades normais, depois de afastados por fortes indícios de corrupção apontados pelo ex-coordenador de Segurança Luiz Eduardo Soares? O governo do estado não usou a autoridade para exigir eficiência na apuração. Trocou a autoridade pela oportunidade de faturar popularidade momentânea com a publicação quase diária de listas de demissões ilegais. O Executivo estadual garroteou o Judiciário, obrigando-o, no estrito cumprimento da lei, a determinar o retorno dos policiais afastados às suas atividades profissionais. Vai ver que havia injustiça em alguns casos, mas o que se espalhou pelos ares foi o sentimento de impunidade.

Ao final das contas os contribuintes foram chamados a pagar o prejuízo produzido pela pirotecnia burocrática que criou uma montanha de processos e papéis que poderiam ter sido evitados.

E o sistema de fiscalização nos presídios de segurança máxima do estado? O Complexo Penitenciário de Bangu, como foi mostrado pelo “Fantástico” há poucos dias, transformou-se em um mercado livre de drogas. Sob as barbas dos agentes penitenciários. Por lá já houve de tudo. Só não se tem notícia da identificação real e da punição dos assassinos dos administradores que não atenderam ao canto do crime.

Seria demorado, mas não difícil, listar os exemplos de prejuízos de toda sorte causados à sociedade pela inépcia, omissão ou cumplicidade dos governos. Para encerrar convém não esquecer a história envolvendo o relatório da Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa do Estado do Rio, que terminou por sugerir a abertura de um processo para apurar o envolvimento do secretário estadual de Esportes e Lazer com o crime no Morro da Mangueira. O Plenário arquivou o pedido, jogando uma pedra sobre o assunto. Esse foi o resultado da trama política sustentada pela maioria. Temos de tirar o chapéu para eles. Juntos, formam um bando capaz. Capaz de tudo, diante da falta de autoridade. Este é mais um convite à reflexão, com as coisas nos seus devidos lugares.