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Leis Especiais no Brasil: Algumas Ponderações

31 de julho de 2008

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Os segmentos econômicos têm discutido a necessidade de leis específicas para regular suas atividades, invocando a argumentação de que as leis existentes nem sempre dão conta da complexidade e das peculiaridades de determinados setores. Nesse momento, por exemplo, o mercado de seguros discute essa questão.
Em que pese o fato de ser o Brasil um criador de legislação especial com boa-técnica e eficiência – como ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto do Idoso –, é preciso considerar as dificuldades que decorrerão da consecução de um novo texto de lei para a área de seguros privados.
Há nos contratos de seguro especificidades e características que poderiam sustentar o reclamo por uma lei especial, mas, o risco decorrente da fúria legiferante que se abate sobre o Estado, aliado ao desafio de tentar realizar um traçado mais completo que siga uma hermenêutica aguda e consolidada, propõe ponderar sobre a viabilidade de proteger os participantes da relação de seguro – contratantes, consumidores e seguradores – a partir dos textos jurídicos existentes.

“Hoje o que se busca é a coordenação, a harmonia entre as normas do ordenamento como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo, e, não a exclusão desta ou daquela lei. Ao lado da solução tradicional portanto, convive uma segunda solução: o diálogo das fontes, uma coordenação flexível e útil das normas, dando-lhes coerência, permitindo-se influências recíprocas, visando à sua aplicação conjunta.
Por meio desse diálogo das fontes, verificam-se quais os objetivos que são almejados e que devem estar em harmonia, considerada a pluralidade de fontes. Assim, a regulação da matéria securitária no campo das normas gerais do contrato como se propõe, não parece dissociada dos objetivos da proteção do segurado que se extraem do Código de Defesa do Consumidor, ou dos objetivos da proteção da parte vulnerável trazidos pelo Código Civil de 2002. O Projeto de Lei nº 3.555/04 traz avanços nesse sentido e coloca a disciplina em coerência com esses objetivos, modernizando o modelo atual.
Entretanto, talvez ganhasse em coerência se esses avanços fossem incorporados ao próprio Código Civil, ao invés de ficarem longe dele numa lei geral sobre o contrato de seguro, numa lei especial em relação ao Código Civil, à medida que esta dialoga com alguma solidez, no tocante à disciplina dos contratos em geral, com o Código de Defesa do Consumidor.” (VASCONCELLOS, Antonio Hermann Benjamim e. Contrato de Seguro: Uma Lei para Todos, São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, 2006, p. 447)

A reflexão do ministro do Superior Tribunal de Justiça, manifestada durante o IV Fórum de Direito do Seguro, José Solero Filho, em 2004, dá a medida da dificuldade que se impõe para a discussão do tema, ou seja: conceber uma lei especial de seguros ou incorporar ao Código Civil aspectos que não tenham sido adequadamente tratados em relação a esses contratos?
A principiologia do Código Civil de 2002 em relação ao contrato está em consonância com a Constituição Federal e com o Código de Defesa do Consumidor. Essa principiologia se alicerça no pensamento culturalista de Miguel Reale, que concebe o Direito como ciência cultural que sofre a interferência do homem na busca incessante da realização de seus fins.
Reale concebeu um Código Civil marcado pelo culturalismo e sustentado em três princípios fundamentais: socialidade, eticidade e operabilidade. São esses princípios que vão garantir que o Código se adeque à Constituição Federal para respeitar a dignidade da pessoa humana.
O Código Civil brasileiro não é uma amálgama de artigos aleatoriamente alocados, é um sistema coerente orientado por uma principiologia própria que o norteia, garantindo coerência e unidade.
O mesmo se dá com o Código de Defesa do Consumidor de 1990, que busca o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores de produtos e serviços.
Esse equilíbrio está proposto na Constituição Federal que determina a necessidade de relacionar ordem econômica, proteção ao trabalhador e proteção ao consumidor como princípios fundamentais para o desenvolvimento e a justiça social.
Assim, não há dúvida de que o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil podem dar conta do equilíbrio das relações entre segurados e seguradoras, cujos conflitos se alicerçam mais na dificuldade de compreensão que os contratos de seguro inspiram, do que propriamente na ausência de uma legislação especial.
É preciso ponderar sobre a força dos princípios como fio condutor da hermenêutica a ser aplicada aos contratos de seguro ou, sobre a redescoberta dos princípios como essência da interpretação do Direito.
Cabe ressaltar que a consolidação hermenêutica e jurisprudencial do Código Civil de 2002 ainda não ocorreu, porque sequer houve tempo para que o texto civil pudesse demonstrar sua força e alcance. O tempo transcorrido ainda não permitiu a produção de julgados em quantidade necessária para garantir a correta compreensão das cláusulas gerais que norteiam os contratos.
Uma lei especial produzida neste momento histórico, antes da consolidação da interpretação da lei civil e durante o processo de amadurecimento da compreensão e aplicação do Código de Defesa do Consumidor, poderá ser fonte de mais problemas do que soluções.
Uma lei especial, gestada na fase em que a sociedade brasileira consolida a compreensão das cláusulas gerais de boa-fé e função social do contrato, poderá causar o efeito inverso ao desejado. Poderá atrasar a compreensão dos aspectos específicos dos contratos de seguro, prestando-se para afastá-los de sua razão precípua de existir, que é facilitar a vida das pessoas garantindo segurança no âmbito pessoal e econômico.
Estudo de julgados proferidos pelos diferentes tribunais estaduais brasileiros e pelo Superior Tribunal de Justiça, não identifica reclamos da magistratura contra a falta de uma lei específica para os contratos de seguro. Os magistrados encontram na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, o arcabouço jurídico que necessitam para dirimir as lides postas sob sua responsabilidade.
Esse indicativo, daqueles que aplicam o Direito e não apenas o interpretam, em tese, talvez seja significativo para concluir que neste momento histórico, uma lei especial de seguros possa não ser uma forma efetiva de proteção para este setor econômico e seus consumidores.