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Lei delegada 4/62: a quem interessa sua revogação?

31 de janeiro de 2010

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A Câmara dos Deputados aprovou Projeto de Lei de autoria do falecido deputado Ricardo Izar, que tramita na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sob o nº 68/2009, cujo objetivo é revogar a Lei Delegada nº 4, de 1962, que “dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo”.
Por que revogar essa lei? Na verdade, esse projeto de lei é mais um símbolo da atual crise de representatividade, uma vez que a maioria dos integrantes do Parlamento não tem demonstrado interesse em defender aqueles de quem emana todo o poder: o povo (art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal).
Pela fundamentação apresentada pelo autor do projeto, o Estado, na atual Constituição, não deve intervir na ordem econômica, devendo desempenhar apenas o papel de agente normativo e regulador (art.174).
Isso não é correto. O próprio artigo 174 da Constituição diz que “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento”. A redação desse artigo não é excludente da intervenção do Poder Público na economia, apenas aponta uma diretriz.
Tanto é assim que o Estado não está impedido de participar diretamente dos empreendimentos econômicos, desde que relacionados à segurança nacional e ao interesse coletivo (art. 173).
Ora, se o Estado tem a prerrogativa de agir como empreendedor, tem mais ainda o comando constitucional para intervir na economia nos casos de relevante interesse coletivo e preservação da soberania nacional, principalmente nos assuntos relacionados “à livre circulação de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo”, como dispõe o art. 1º da Lei Delegada nº 4/62.
Além disso, cabe à União legislar sobre requisições civis e militares em casos de iminente perigo (art. 22, III, da Constituição). Ou seja, a mencionada lei encontra amparo na atual ordem constitucional porque em situações excepcionais é necessária a intervenção do Poder Público, a fim de evitar qualquer ação tendente à desestabilização da ordem social, política, jurídica e econômica, como tentativas de desabastecimento que possam ser praticadas pela ação de grupos econômicos, o que a Lei Delegada visa coibir.
Com efeito, a Constituição consagra a livre iniciativa (art. 170). Contudo, isso não quer dizer que o Estado não possa intervir na ordem econômica, uma vez que existem princípios fundamentais que devem nortear a sociedade brasileira, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a solidariedade, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (artigos 1º, III e IV, 3º, I e II e 170). Daí a necessidade de se fazer uma interpretação sistemática da Constituição e não de um artigo isoladamente.
Nessas bases, o capital não pode prevalecer a qualquer custo. Principalmente nos períodos de crise, econômica ou social, se faz indispensável para todos (trabalho e produção) a intervenção do Poder Público para pôr fim à convulsão.
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:
“É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.” (ADI 3512-ES, julgada em 15-02-06, sem grifos no original)
Assim, a livre iniciativa não é absoluta, nem estão as empresas acima da sociedade. Daí não ser própria a justificativa de que o Poder Público não deve intervir na economia em situações especiais, como as previstas na Lei Delegada nº 4, de 1962.
Isso porque, por diversas vezes, constatamos a manipulação de preços, a destruição e o desperdício doloso de alimentos, a sonegação combinada de gêneros e produtos etc.
Ora, a Lei sancionada pelo Presidente João Goulart em 1962 permanece extremamente atual e necessária, sob o enfoque humano e solidário, particularmente no que toca à proteção ao trabalho, base de tudo. Como dito, estes princípios fundamentais são consagrados pela Constituição, nada havendo que possa justificar a inconstitucionalidade da lei.
A quem interessa, então, a revogação?  Com a palavra o Presidente João Goulart, em seu último discurso proferido na Central do Brasil, em 13 de março de 1964: “A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicato, antireforma, ou seja, aquela que melhor serve ao grupo que eles servem e representam: a democracia dos monopólios privados nacionais e internacionais.”
E são esses mesmos monopólios que, recentemente, na chamada “crise financeira mundial”, exigiram do Estado o repasse de recursos para salvar seus negócios, utilizando a riqueza originada pelo esforço de milhões de trabalhadores.
A Tribuna da Imprensa de 29/10/2008 foi reveladora ao noticiar na sua página 7: “Ricos querem ajuda dos pobres”. E na página 8: “Mundo já gastou 11% do PIB para salvar bancos.”
Na ocasião, foi informado também que: “os governos já gastaram mais de 11% do PIB mundial para dar liquidez e salvar os bancos desde abril, o equivalente a mais de quatro vezes o tamanho da economia brasileira.” (p. 8). O mais grave de tudo é que para acabar com a fome mundial seria necessário apenas a metade do que foi doado para os bancos ingleses (US$ 30 bilhões).
Então, na hora da crise do capital, o Estado deve atuar na economia; mas na crise de abastecimento, o Estado não pode se apresentar como interventor a fim de assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo?
Desta forma, a tentativa de revogar a Lei Delegada nº 4, de 1962, é mais um atentado à democracia, praticado por uma parcela do Poder Legislativo que, reiteradamente, patrocina interesses contrários aos  dos cidadãos.
Conclui-se que a referida lei não é anacrônica, como consta na justificativa do projeto de sua revogação, nem constitui parte de um “entulho legislativo”, sendo avançada para o seu tempo e permanecendo atual, como garantia dos princípios fundamentais de dignidade da pessoa humana e do trabalho, consagrados no art. 1º da Constituição.