Legado de compromisso e paixão pelo Brasil

14 de junho de 2021

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Orpheu dos Santos Salles completaria 100 anos em 17 de outubro desse ano. A ausência física do saudoso empresário e jornalista, falecido em agosto de 2016, aos 94 anos, não impediu a boa e oportuna iniciativa da Revista Justiça & Cidadania, uma de suas obras, de celebrar sua vida de coragem e de conquistas. E a melhor maneira de prestar esse merecido tributo é por meio de testemunhos dos que tivemos o privilégio de conhecê-lo.

A trajetória do homenageado na vida pública confunde-se com a turbulenta segunda metade do Século XX no Brasil, marcada por abalos institucionais e por forte polarização política e social. As paixões favoráveis e contrárias ao trabalhismo e a seu líder, Getúlio Vargas, dividiram o País já a partir da década de 1930. Nesse ambiente de instabilidade, propício a arbitrariedades e perseguições contra atores políticos que se encontrassem em posição vulnerável, Orpheu Salles sempre se destacou pelo idealismo, pelas posições firmes, pela altivez e, sobretudo, pela convicção que sempre orientou sua atuação, alinhada às ideias do trabalhismo.

Salles conheceu Getúlio Vargas em 1943, em visita ao Presidente na qual foi o orador de uma caravana de estudantes das Arcadas. Foi convidado a trabalhar no gabinete presidencial e, a partir daí, passou a acompanhar de perto a atuação política do líder trabalhista. Nomeado, em 1954, chefe da Delegacia do Trabalho em Santos (SP), logo enfrentou as adversidades decorrentes do suicídio de Vargas. No mesmo ano, foi exonerado do cargo por haver ousado declarar, pela primeira vez no País, a legalidade de uma greve de trabalhadores.

A convite do Vice-Presidente da República João Goulart assumiu, em 1956, a assessoria trabalhista e sindical da Presidência da República. A posterior passagem de Orpheu Salles para a iniciativa privada não o afastou de seu compromisso com o debate público e com as causas do trabalhismo, como a defesa dos direitos sociais. Como diretor de jornalismo da Rádio Marconi, em São Paulo, manteve programa diário que tinha os trabalhadores como público.

A conhecida aliança de Salles com o trabalhismo e sua atuação na comunicação radiofônica em favor da sindicalização e da mobilização em busca de mais direitos para os trabalhadores não passaram despercebidas pelos militares quando esses chegaram ao poder com a deposição do Presidente João Goulart, em 1964.

A Rádio Marconi foi fechada imediatamente após o golpe. Salles ficou detido no DOPS de São Paulo por dois meses e foi, posteriormente, transferido para o navio presídio Raul Soares, onde permaneceu por seis meses. Em seus relatos sobre o episódio, lembra que recusou a oferta do então governador paulista, Ademar de Barros, para trocar de lado na política, juntando-se a seu grupo político e a sua equipe de governo como forma de assegurar a sobrevivência da rádio. Mais uma vez, Salles mostrou que suas convicções e seu compromisso com o Brasil não eram negociáveis. Sua recusa concorreu para sua detenção prolongada – no DOPS e no navio – e para seu exílio no Uruguai e na Argentina.

A volta ao Brasil marcou a retomada de suas atividades como jornalista e empresário, e incluiu a experiência de um mandato como vereador em Maricá (RJ), entre 1988 e 1992. A atuação de Orpheu na iniciativa privada culminou com a criação, em 1999, da Revista Justiça & Cidadania, em parceria com seu filho Tiago Salles, a quem coube, desde 2016, dar continuidade ao projeto. A revista consolidou-se como referência no mundo jurídico e como promotora de reflexões e debates voltados ao fortalecimento do Poder Judiciário e da democracia. A energia que Orpheu Salles dedicou ao projeto vitorioso da revista e a iniciativas como o Troféu Dom Quixote não o impediu, como nonagenário, de continuar a abraçar outras causas públicas, como a participação na gestão da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Orpheu Salles, o sócio então mais antigo da entidade, foi eleito, em 2014, como integrante da chapa Wladimir Herzog, diretor administrativo da ABI, tendo desempenhado suas funções até 2016.

O sonho de Orpheu de chegar aos 100 anos ainda na ativa na ABI e na revista não foi concretizado. Mas seu legado de compromisso e paixão pelo Brasil servem como exemplo para todos os que nos dedicamos ao serviço público e à tarefa cotidiana de manter e renovar as instituições democráticas.