Invisíveis? Para quem?

3 de agosto de 2020

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Não raro a humanidade, ao longo de sua história, se deparou – e foi obrigada a enfrentar – inúmeras moléstias que trouxeram mortes e sofrimento para milhões e milhões de pessoas, mas, que ao mesmo tempo, obrigaram as nações a se reinventarem e, dessa forma, ultrapassarem não apenas o colapso na saúde, como também os graves problemas econômicos e financeiros que as assolaram.

Cada uma dessas doenças gerou, em razão de sua gravidade e alcance, diversas epidemias – doença local com potencialidade para se espalhar para outras localidades, caso não seja controlada – e pandemias – doença com proporção global, devido à evolução de uma epidemia – devastando no Brasil, até final de junho, mais de 50 mil famílias de pessoas que não resistiram à covid-19.

Exemplos não nos faltam: a peste bubônica, que atingiu a Europa por volta de 1350 matando cerca de um terço da população, ajudou, segundo historiadores, no desenvolvimento da região, fazendo desmoronar o sistema feudal – por força do qual o trabalho na terra servia, exclusivamente, para o pagamento de um aluguel – passando a Europa, a partir daquele momento a se modernizar tecnologicamente, fazendo com que os empresários passassem a pagar salários, em dinheiro, aos seus trabalhadores.

Outro momento importante, mas não menos traumático em razão de sua mortalidade extraordinária, se deu em razão da varíola, a qual teria mudado a colonização das Américas, no final do Século XV. Concluíram os estudiosos que, após a passagem dessa doença, a população da Europa – cerca de 60 milhões de pessoas, aproximadamente 10% da população de todo o globo terrestre – foi reduzida a pouco mais de cinco milhões de vidas. O resultado prático: menos pessoas ocupando terras, maior crescimento de florestas naturais, queda nos níveis de dióxido de carbono (CO2), diminuição da temperatura da terra, quebra nas safras e fome em todo o Continente Europeu.

A febre amarela, por sua vez, foi determinante na revolta do Haiti contra a França, pois seu efeito foi devastador. Acredita-se que aproximadamente 50 mil soldados, oficiais, médicos e marinheiros tenham morrido e apenas cerca de três mil homens retornaram à França. É o surgimento de uma nova potência mundial, o ainda jovem país Estados Unidos da América incorporou 2,1 milhões de quilômetros quadrados que lhe foram vendidos pelo líder da França.

Uma doença mortal que afetou os animais foi a conhecida peste bovina ocorrida entre os anos de 1888 e 1897. O vírus responsável por essa moléstia matou 90% do gado africano, com comunidades devastadas no Sudeste da África, na África Ocidental e no Sudoeste do continente, conduzindo a população à fome e, em razão do colapso social, à migração de refugiados que deixaram as áreas que tinham sido afetadas, o que possibilitou maior facilidade para que os países europeus colonizassem grandes áreas da África no final do Século XIX. O efeito prático foi que na década de 1870 apenas 10% da África estava sob o controle Europeu, tendo esse percentual subido para aproximadamente 90% no ano de 1900.

A história se repetiu muitas e muitas vezes, sempre trazendo dor e revoluções: peste negra (1333 a 1351, 50 milhões de mortos); cólera (1817 a 1824, centenas de milhares de mortos); gripe espanhola (1918 a 1919, 20 milhões de mortos); tifo, sarampo, malária, aids, h1n1, dentre tantas outras.

O mundo se depara mais uma vez com uma pandemia. Estamos diante do novo coronavírus, responsável pela propagação de uma doença que aterroriza a humanidade denominada covid-19. Trata-se de um vírus traiçoeiro, devastador, novo de qualquer conhecimento, não atacável por medicamentos específicos, inexistindo, até o presente momento, vacina específica capaz de prevenir sua propagação.

No Brasil, caminha-se a passos largos em direção ao primeiro lugar no ranking mundial no número de contaminados, podendo atingir a mesma colocação no número de mortes decorrente dessa nova doença.

Como sairemos dessa pandemia? De que forma retomaremos os empregos perdidos e reabriremos as portas de empresas que encerraram suas atividades? Quais serão as consequências para a saúde, para a economia, para as relações pessoais, para a política e para a justiça?

Ao refletirmos sobre notícias e dados que nos são trazidos ao conhecimento diuturnamente, quer pelos órgãos oficiais, quer pelos veículos de imprensa, chegamos à conclusão, sem qualquer esforço, de que o País levará muito tempo para se recuperar, quer na esfera privada – e para isso se faz necessário o incentivo estatal para o ressurgimento de empresas e a criação de novos postos de trabalho – quer na esfera pública, através de um novo olhar que precisa ser lançado em direção à população brasileira.

Dentre os tantos dados e matérias, podemos citar os dados publicados pelo Ministério da Economia, que trouxe ao conhecimento de todos nós que os “pedidos de seguro-desemprego aumentaram 12,4% de janeiro a maio de 2020”. Todavia, nenhuma informação chamou mais atenção do que a matéria publicada no jornal O Globo e pelo site G1, em 26/4 do ano em curso, que estampava: “Auxílio emergencial de R$ 600 revela 46 milhões de brasileiros invisíveis aos olhos do governo”.

Invisíveis? Para quem?

Pessoas sem CPF, sem acesso à Internet e sem conta em banco podem ser taxadas de invisíveis? Por onde andamos diariamente nos deparamos com brasileiros e brasileiras de todas as idades, distribuídas em esquinas e sob marquises e viadutos, ora dormindo para esquecer a fome, ora mendigando parcas moedas com o objetivo de saciar um pouco da fome que corrói seu organismo, fazendo reduzir os anos de vida.

É necessário que alguém que se depare com uma cena do cotidiano das grandes, médias e pequenas cidades do Brasil precise perguntar a um desses brasileiros se ele possui CPF? Ao entregar um lanche ou uma moeda a uma criança que faz malabarismos com limões nos sinais de trânsito, alguém a questiona sobre sua frequência na escola e acesso à Internet? Para uma família banhando-se e lavando suas roupas nas águas de um chafariz, faz-se necessário indagar se possui conta em banco?

Todos vêem essas pessoas diariamente, poucos as enxergam, mas chamá-las de invisíveis é assumir que não existem, que não precisam de atenção, que o Estado não tem obrigação para com elas. Muitas desses brasileiros, fazem parte de um universo que não consegue qualquer fonte de renda, mínima que seja, que lhe garanta o mínimo existencial; outros tantos foram absorvidos pelas promessas feitas e não cumpridas pelas drogas; inúmeras e incontáveis crianças são vítimas de violência doméstica e sexual, no seio de suas famílias e, depois, sob a escuridão da noite, nas vielas e nos becos das cidades deste País; outros, milhares, centenas de milhares, são desempregados, trabalhadores que perderam seus empregos, ou mesmo seu trabalho informal e nenhuma outra oportunidade lhe foi concedida.

Invisíveis? Para quem?

Sem qualquer conotação político partidária, posto não ser esse o objeto desse modesto ensaio, mas fazendo justiça aos governos que lutam contra essa desigualdade, mesmo que de forma incompleta, trago comigo uma certeza: essas pessoas não são invisíveis para o Poder Judiciário, não passam despercebidas pelo olhar do Estado Juiz, são atendidas e lhes é dado lutar por dignidade em todas as esferas do Judiciário brasileiro.

Ao Poder Judiciário Trabalhista o meu agradecimento. Sou grato porque os juízes e juízas do Trabalho lutam contra todas as formas de discriminação no trabalho; porque a Justiça do Trabalho tem programas exitosos que visam à erradicação do trabalho infantil, de estimulo à aprendizagem, e para exterminar todas as formas de trabalho escravo em nosso País. Sou grato, por fim, porque a Justiça Laboral traz esperança de justiça àqueles que não tiveram garantidos seus direitos.

Invisíveis? Não para a Justiça, não para a Justiça do Trabalho. Com vistas a comprovar essa afirmação reportando-me a Themis (Têmis), divindade grega por meio da qual a Justiça é definida, em seu sentido moral, como o sentimento de verdade, equidade e da humanidade. A venda em seus olhos não a impede de enxergar a todos e a todas, mas, ao contrário, em uma visão mais moderna, significa a justiça social. Os pratos iguais de cada lado da balança nos ensinam que não há diferenças entre os homens e as mulheres quando seus erros e seus acertos necessitam de julgamento. Por fim, a espada é o símbolo do poder, através do qual, o Poder Judiciário faz cumprir as decisões por ele proferidas.

Em sendo assim, encerro minhas considerações rogando para que o Brasil saia dessa pandemia da covid-19 com mais empregos, com mais oportunidades aos empreendedores, com mais saúde, com mais CPF, com mais acesso à informação, mas, principalmente, com menos invisíveis.

Que todos possam ser vistos e enxergados em sua humanidade, respeitada seja a dignidade individual e coletiva dessa incansável nação chamada Brasil. Invisíveis, nunca mais.

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