Interceptações telefônicas: sigilo e eficácia

5 de abril de 2004

Cármine Antônio Savino Filho Desembargador do TJERJ

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As interceptações telefônicas tornaram-se um fato rotineiro do quotidiano nos noticiários de jornais e das redes de televisões, que freqüentemente transcrevem literalmente trechos inteiros de gravações.

A banalização da escuta telefônica obscureceu a própria essência da finalidade das interceptações, seus métodos e processos, que hoje pedem considerações mais consistentes sobre a sua legitimidade.

O artigo 5º da Constituição Federal, que assegura os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, em seu inciso XII inclui a inviolabilidade das comunicações:

“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses de investigação criminal ou instrução processual penal”.

A inviolabilidade é a regra. A interceptação é a exceção.

Esta cláusula pétrea da Constituição de 1988 foi, um tanto tardiamente, regulamentada pela Lei Complementar 9.296, de 24 de julho de 1996. Por ela, é necessário haver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal, cuja apuração exija a interceptação telefônica. Os fatos, objeto da investigação, devem ser descritos com clareza e a interceptação dependerá de ordem do juiz competente da ação principal e deve transcorrer sob segredo de justiça.

Por isto, segundo a lei, a interceptação não será admitida: quando não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; quando a prova puder ser obtida por outros meios e, finalmente, quando o fato investigado constituir infração penal punida no máximo com pena de detenção.

Dois pontos merecem destaque. Primeiro, a eficácia da interceptação está condicionada à existência de “indícios razoáveis”. Segundo, o sigilo que deve resguardar as diligências, as gravações e as transcrições.

Como caracterizar o que a lei chama de “indícios razoáveis”? Diz o artigo 239 do Código de Processo Penal:

“Considera-se indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

Os dicionaristas conceituam indício de forma análoga ao CPP:

“Indício – (Do lat. Incidiu) – S.m.

1. Sinal, vestígio, indicação. 2 (Jur.)Circunstância conhecida e provada que, relacionando-se com determinado fato, autoriza, por indução concluir-se a existência de outra(s), prova circunstancial (Cf. indiciar e presunção).”

O Código e os dicionários são acordes em apontar a indução como a única via através da qual se pode chegar a uma nova circunstância ou a um conjunto delas, que juntas propiciaram uma prova acessória.

A indução é uma operação mental que consiste em estabelecer uma verdade universal ou uma proposição geral com base no conhecimento de um certo número de dados singulares ou de proposições de menor generalidade. Esta indução, segundo Aristóteles, é a “atribuição a uma classe ou a um conjunto de objetos, de uma propriedade já antes afirmada de cada um dos termos da classe ou dos elementos do conjunto”.

Ora, se somente pela indução se alcança a razoabilidade do indício, certamente indícios isolados, que permitam mais de uma interpretação dos fatos, não são suficientes para fundamentar uma decisão condenatória. Indícios permenecem nos limites da mera presunção, que é um tipo de prova indireta insuficiente para uma decisão condenatória.

Por outro lado, de acordo com o princípio da livre convicção do juiz, se as circunstâncias proporcionadas por via da indução, mostram um conjunto de indícios múltiplos, estruturados, harmônicos, podem servir de base a uma condenação, principalmente se os indícios permaneceram sem o oferecimento de contra-indícios. A jurisprudência tem admitido a validade da prova indiciária, se, somada a outras provas, apresentar elementos positivos de credibilidade. “Os indícios, por mais veemente que sejam, não bastam, por si só,um juízo condenatório”.

Diálogos interceptados costumam não refletir inteiramente a verdade, porque as pessoas ao telefone podem dizer coisas irreais e estão sujeitas a interpretações várias, que poderiam modificar o contexto de sua conversa. Ademais, os pretensos indícios podem configurar apenas uma cogitação, mas o cogitacio não configura crime, pois é ainda a fase subjetiva do caminho a ser percorrido até a sua execução (iter criminis). Daí cresce a necessidade de, no caso da concessão de interceptação telefônica, bem apreciar preliminarmente a ocorrência de um destes dois requisitos doutrinários, os milenares preceitos do fumus boni iuris e do periculum in mora.

A questão do segredo de justiça é o segundo ponto a ser examinado. O artigo 8 da citada Lei Complementar, estabelece:

A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”.

O artigo 10 da mesma lei prossegue e adverte que constitui crime, punido com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa, a interceptação ou a quebra de segredo de justiça sem autorização judicial. E, subsidiariamente, o Código de Processo Penal, estabelece em seu artigo 20 que a autoridade assegurará no inquérito, pelo interesse da sociedade, o sigilo necessário à elucidação do ato.

Contudo a norma jurídica que exige o sigilo da interceptação telefônica é seguidamente desrespeitada, às vezes com prejuízos irrecuperáveis para uma das partes. As páginas dos jornais e as telas das televisões são pródigas em informar a seus leitores e espectadores as transcrições de interceptações, muitas vezes até ilegais.

Enfim, não só a avaliação dos indícios deve levar em conta todas as circunstâncias envolvidas no conjunto de induções, como também há que se preservar o sigilo imposto pela legislação. Do contrário, a inobservância deste preceito legal, tanto quanto uma afronta a lei, é um desserviço que contribui para o descrédito da interceptação telefônica, um instrumento útil, se bem usado, para a reconstituição da verdade.

Destaque-se que o ônus da prova pertence a quem alega. Como a interceptação telefônica está no universo das investigações, o Ministério Público deve apresentar provas e sustentá-las, confirmando ou não os indícios das interceptações telefônicas. Compromisso do julgador é com a verdade formal revelada pela prova no processo, para a efetivação da segurança do justo.

A decisão condenatória que se baseia tão somente nas interceptações telefônicas, mais do que injusta, consagra um erro judiciário.