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Impunidade desafia combate à violência contra mulher no Brasil

19 de dezembro de 2012

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Milhares de mulheres no Brasil sofrem com a violência doméstica e de 2010 para cá 4.450 foram assassinadas. Nos últimos dois anos, de todas as mulheres agredidas no País, 25,9% foram vítimas de seus cônjuges ou ex-cônjuges. Alem disso, 66% dos filhos presenciaram a violência e 20% sofreram violência junto com a mãe.

É uma das violações dos direitos humanos mais praticadas e menos reconhecidas no mundo, sendo um fenômeno que não distingue classe, etnia, religião, idade e grau de escolaridade. Acima de tudo, é um problema de cunho social e público, na medida em que os cofres governamentais são onerados com aposentadorias precoces, pensões por morte, auxílios-doença, afastamento do trabalho, consultas e internações. Essa violência também reflete nos índices de deliquência juvenil e repetência escolar.

O serviço Ligue 180, criado em 2006, na mesma época da promulgação da Lei Maria da Penha, recebeu quase três milhões de ligações nos últimos seis anos, sendo 330 mil denúncias de violência, o que, segundo especialistas, é um sinal de que cada vez mais mulheres vêm utilizando este canal na busca por justiça.

Mas, enquanto cresce a legislação e o cerco oficial aos agressores, crescem na mesma dimensão os crimes. Levantamento recente realizado pelo Instituto Sangari, baseado em dados obtidos de certidões de óbito e da Organização Mundial de Saúde (OMS, ligada à ONU), registra o acúmulo no Brasil de mais de 90 mil mortes de mulheres vítimas de agressão nos últimos 30 anos. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, em 1980 foram assassinadas 1.353 mulheres no País, enquanto nos últimos dois anos foram 4.450.

Os dados são preocupantes. Nossa posição no ranking mundial da violência contra a mulher é decepcionante, perdemos apenas para El Salvador, Trinidad Tobago, Guatemala, Rússia, Colômbia e Belize. Os estados mais violentos são Espírito Santo, Alagoas, Paraná, Paraíba e Rio Grande do Sul. Quanto às capitais, as mais violentas são Vitória, João Pessoa, Maceió, Rio de Janeiro e São Paulo (Fonte: Instituto Sangari).

A juíza titular do I Juizado da Violência Doméstica Contra a Mulher, Adriana Ramos de Mello, lida diariamente com o problema e afirma que a violência no Brasil é um fenômeno cultural: “A questão é que temos uma mentalidade machista, vinda lá desde a colonização portuguesa, de que o homem é proprietário da mulher, é o seu dono. Esse é um conceito arcaico. A mulher mudou, hoje ela é dona do seu nariz, trabalha e tem seu dinheiro, ou seja, pode decidir sobre sua liberdade e não se sente propriedade de ninguém. Tem como sobreviver, sem precisar se humilhar diante do poder masculino, que, diga-se de passagem, vem diminuindo a cada dia. Em vista disso, a mulher não deve mais submissão e obediência a ele e aí começam os problemas”.

A juíza Adriana Ramos inclui ainda outros fatores como causadores da violência doméstica: “É claro que a presença da Igreja é muito forte, tanto a católica quanto a evangélica, por pregarem que a mulher é proveniente da costela do homem e, por isso, tratada pela religião como ser inferior. Houve um tempo, em nossa colonização recente, que ela era tratada abaixo de um cachorro, de um cavalo, do que o gado – este, por ser importante para a agricultura e uma fonte de renda. As próprias mulheres foram educadas para se conformarem com isso e se submeterem a esse status quo sem reclamar”.

Segundo ela, a morosidade dos processos deve-se apenas à falta de estrutura física do Judiciário e não ao trabalho dos juízes: “Nosso trabalho é estafante, temos oito juizados no Município do Rio, dois na Baixada Fluminense (Nova Iguaçu e Caxias), um em Niterói e outro em São Gonçalo. Esse ano foram quase 21 mil processos somente no Município do Rio de Janeiro, mas sempre parece pouco e isso cria uma sensação de impunidade. É necessário que a sociedade saiba (e o trabalho da imprensa é fundamental para isso acontecer) que, mesmo com pouca gente, nós produzimos muito. Mas a falta de material físico e humano acaba provocando a morosidade nos processos e essa morosidade é que gera a impunidade”.

Os crimes continuam ocorrendo, embora tenhamos uma das legislações mais modernas do mundo nessa área, explica Adriana Ramos: “A violência contra a mulher no Brasil é um fenômeno que ainda precisa ser melhor explicado à luz da antropologia, da sociologia, da filosofia, porque temos uma das melhores legislações do mundo nessa área e, mesmo assim, acontece uma agressão à mulher a cada cinco minutos no País. A faixa de mulheres mais agredidas está entre os 18 e os 45 anos. E os crimes são cometidos, na maioria das vezes, pelos seus companheiros, mas entram também nessa estatística os maridos, namorados e noivos”.

Adriana Mello ressalta que a recente aprovação da Ação Penal Incondicionada veio alargar e dar mais abrangência à condenação aos agressores: “Com a promulgação dessa lei nós podemos abrir um processo contra um agressor sem necessidade da vítima apresentar queixa. Ou seja, para que o Ministério Público possa propor uma ação penal ele independe da vontade da vítima. E, por que isso é bom? Porque a mulher, na maioria das vezes, tem medo de procurar uma delegacia para denunciar seu agressor. Ela fica calada, sofre em silêncio, unicamente por medo, e acaba não denunciando os crimes. Essa lei veio mudar esse panorama”.

Para terminar, ela faz um alerta: “Esse problema da agressão à mulher passa pela questão cultural. Enquanto o povo não tiver acesso à educação, às escolas, à informação, ao saber, ele continuará existindo. E quando me refiro à educação, me refiro a qualquer classe social. Porque os mesmos crimes contra a mulher que acontecem na Rocinha, no Complexo do Alemão, acontecem no Leblon, na Barra. E somente a educação modificará esse deprimente quadro cultural”.