“Há muito trabalho a ser feito, com discrição e eficiência”

30 de agosto de 2022

Da Redação

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Entrevista com o novo Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão

Eleito por unanimidade entre seus pares no Superior Tribunal de Justiça (STJ), aprovado por ampla maioria no Plenário do Senado Federal e logo após nomeado pela Presidência da República, o Ministro Luis Felipe Salomão tomou posse como Corregedor Nacional de Justiça no último dia 30 de agosto. Órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Corregedoria é responsável pela orientação, coordenação e execução de políticas públicas voltadas à atividade correcional e ao bom desempenho da atividade judiciária dos tribunais, juízos e serviços extrajudiciais do País.

Dentre as muitas realizações na magistratura, o Ministro Luis Felipe Salomão sempre será lembrado pela competência com que presidiu a Comissão de juristas, reunida pelo Senado, para elaborar os anteprojetos de reforma da Lei de Arbitragem (Lei nº 13.129/2015) e da Lei da Mediação (Lei nº 13.140/2015). O panorama de suas contribuições à Justiça e ao Direito, porém, é muito mais amplo e diversificado.

Integrante do STJ desde 2008, é membro da Corte Especial e presidente da 4ª Turma, na Seção de Direito Privado. Dentre as muitas atribuições institucionais, é Coordenador do Grupo de Trabalho instituído pelo CNJ para modernização e efetividade do Poder Judiciário nos processos de recuperação judicial e de falência. Foi Ministro do Tribunal Superior Eleitoral e Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral. Antes de ser ministro, foi promotor de justiça no Ministério Público de São Paulo, juiz de direito e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Da docência, é professor emérito da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro e da Escola Paulista da Magistratura, doutor honoris causa em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade Cândido Mendes e professor honoris causa da Escola Superior da Advocacia do Rio de Janeiro. É ainda autor de vários livros jurídicos, dentre manuais, análises de impacto legislativo e estudos aprofundados sobre temas diversos como os Juizados Especiais, a recuperação judicial e extrajudicial de empresas, os institutos da arbitragem e da mediação, o Sistema Penal e as eleições brasileiras.

Multitalentoso, coordena o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas, dirige o Centro de Pesquisas Judiciais da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e preside o Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania. Nessa entrevista, concedida poucos dias antes da posse em seu novo cargo, ele deu uma verdadeira aula sobre as origens, o papel e as atribuições das corregedorias e falou sobre os planos para a sua gestão, no biênio 2022-2024.

Revista Justiça & Cidadania – Ministro, a maioria das pessoas associa o trabalho das corregedorias de Justiça apenas ao controle disciplinar da atuação dos magistrados, mas suas atribuições são muito mais amplas. O senhor poderia explicar a origem das corregedorias e toda a amplitude de suas tarefas?
Ministro Luis Felipe Salomão –
As origens das corregedorias estão na Idade Média, quando a administração ainda era uma só e os reis misturavam as funções de julgar e executar. Nas antigas ordenações do reino, das quais herdamos nosso Direito primordial, o corregedor era aquele designado pelo rei para dividir uma das principais tarefas que detinha, que era a de julgar. O corregedor organizava toda a parte dos julgamentos. Daí o nome, correger, reger em conjunto com o rei a Justiça. Desde então existe essa ideia de que o corregedor é o juiz dos juízes. Por isso, nossa responsabilidade sempre foi muito grande, porque é aquela que, desde o início, fez com que tivéssemos a tarefa de organizar o trabalho e, ao mesmo tempo, fiscalizar o funcionamento, contribuir para a administração da Justiça.

Em Portugal, somente quando houve a separação das funções de Estado, com a Revolução Liberal de 1820, é que o corregedor deixou de ter essa função administrativa e passou a atuar exclusivamente no âmbito do Poder Judiciário. No caso do Brasil, só tivemos uma organização a partir do Império, com um regulamento da atuação dos corregedores que data de 1841, seguindo o mesmo modelo português. Mais tarde, em 1851, se traçou o decreto nº 834, que minudescia toda a atividade correcional, mais ou menos como ainda fazemos hoje, inclusive com um calendário de visitas e inspeções. É quase que inacreditável.

Na República, somente com a Lei Orgânica da Magistratura (Loman/ Lei Complementar nº 35/1979) é que tivemos, no art. 105, um regramento sobre o funcionamento das corregedorias, mas, mesmo assim, apenas das corregedorias estaduais. Cada segmento da magistratura passou a ter a sua regência própria, por meio de leis específicas. Foi quando começaram a surgir as corregedorias.

RJC – Esse mesmo modelo se repete em todos os países?

LFS – Esse é o sistema que tem vigência em quase todos os países de civil law, de origem romano-germânica. Nos países de commom law não existe praticamente essa figura, porque como o Judiciário não está estruturado em carreira, não existe fundamentalmente finalidade para o corregedor. Nos casos de commom law, o nome já diz, o Direito comum é aquele que não seguiu o ramo do Direito romano. O que fez a Inglaterra, por exemplo, quando houve a unificação do Reino, foi justamente apostar num Direito novo, no qual nem era preciso ser bacharel em Direito para ser juiz. Eles ainda hoje têm a forte tradição do precedente. É quase como se o precedente criasse a lei e a norma de conduta. Então, não há oportunidade para a figura do corregedor.

Nos casos de civil law, como no Brasil e em tantos outros países, nosso encargo ganha um relevo muito grande, sobretudo nos países latino-americanos, nos quais, em geral, temos uma forte conturbação dentro do Poder Judiciário, motivo pelo qual a corregedoria passou a ter uma força muito grande.

RJC – E na história mais recente, como foi a evolução das corregedorias?

LFS – No mundo inteiro, o Judiciário não é mais o mesmo depois das duas Grandes Guerras. Então, esse papel vem sendo objeto de muita discussão. As mudanças aconteceram no pós-guerra em vários países, por exemplo com a criação das cortes constitucionais na Europa, ou com a criação de um sistema de controle na Espanha, dentre outras modificações. No caso do Brasil, a Constituição de 1988 inovou bastante e depois a Emenda Constitucional nº 45/ 2004 (Reforma do Poder Judiciário) também trouxe inúmeras modificações para o Poder Judiciário.

Muito embora tenhamos um sistema de recrutamento de juízes baseado em concurso público desde a década de 1930, o que fez da magistratura uma carreira estruturada, e tenhamos desde a Constituição do Império de 1824 a fixação das garantias para a magistratura – como a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos, coisa absolutamente inovadora na América Latina  – foi a Constituição de 1988 que trouxe o orçamento próprio, a autonomia administrativa e outras conquistas que qualificam e dão novo rosto ao Judiciário. A Emenda nº 45 complementou essa qualificação com a criação das escolas de magistratura, sobretudo a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), atrelada ao STJ, e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), vinculada ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), além da criação do CNJ.

A Emenda nº 45 trouxe também um papel destacado para a Corregedoria do CNJ, no art. 103-B, parágrafo quinto, no qual estabeleceu toda a sua linha de atuação. Antes do CNJ, não havia previsão legal ou qualquer sistemática para a atuação das corregedorias, que agora têm um paradigma, que é a Corregedoria Nacional, na qual se cuida do planejamento, da gestão financeira, da questão administrativa, da parte disciplinar e do extrajudicial – que é um mundo inteiro para se tratar.

RJC – Qual é o tamanho desse “mundo” sob o olhar da Corregedoria Nacional de Justiça?

LFS – Temos mais de 500 mil servidores no Brasil só nas serventias judiciais, além de outros 13 mil nas serventias extrajudiciais. Temos 15 mil unidades judiciárias, 90 tribunais. Estamos encarregados de acompanhar juízes substitutos, juízes de direito, desembargadores, juízes federais e Tribunais Regionais Federais, juízes do trabalho e Tribunais Regionais do Trabalho, juízes militares e tribunais militares, juízes eleitorais e Tribunais Regionais Eleitorais, ministros do STJ, do TST, do Superior Tribunal Militar e do TSE, à exceção dos ministros do Supremo.

Acresce a isso o fato de estarmos num período extremamente relevante da nossa história republicana recente. Um momento no qual tivemos uma pandemia, na fase quase pós-pandemia, se é que podemos falar assim, com tantos desdobramentos que surgem daí, de natureza jurídica, administrativa, de planejamento. Temos que pensar como ficará esse nosso “mundo” no pós-pandemia. Sem falar que estamos também num momento delicado de realização de eleições. É um período turbulento, não é uma eleição tradicional, mas um pleito conflituoso, na qual nós corregedores teremos um papel importante a desempenhar, não só os corregedores eleitorais, mas os da Justiça como um todo. Teremos que atuar nessa fase. Temos ainda a incumbência de cumprir a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, que é a pauta do mundo nesse momento, que não pode ser deixada de lado.

RJC – Quais são os principais projetos que o senhor pretende desenvolver à frente da Corregedoria Nacional de Justiça?

LFS – São inúmeros projetos, porque a atuação da Corregedoria prevista na Constituição é muito ampla. Ela atua em conjunto com a Presidência do CNJ no sentido de melhorar a qualidade da jurisdição, elaborar políticas públicas para que o Poder Judiciário funcione adequadamente, para que tenhamos agilidade nas respostas à ansiedade de quem traz um problema para ser resolvido pela Justiça. Essa é a principal missão. Além disso, creio que poderemos desenvolver atuação em diversas áreas. No campo extrajudicial temos a regularização fundiária, a questão da desjudicialização, da certificação dos atos notariais, temos muitas atividades para desenvolver.

Na questão disciplinar, vamos acompanhar adequadamente as ferramentas de produtividade. Vamos verificar os deslizes cometidos e apurar adequadamente, com o direito de defesa, mas atuando fortemente para evitar que ocorra. É um percentual muito pequeno se comparado ao todo, mas há ainda muito trabalho a ser feito, com discrição e eficiência. Temos também a parte orçamentária, na qual vamos contribuir para que seja efetivo, ponderado e equilibrado o orçamento do Poder Judiciário. Temos muitas atividades para desenvolver. Espero que possamos elaborar políticas públicas que façam com que o Poder Judiciário atue cada vez melhor.

RJC – Na sabatina no Senado que confirmou sua indicação, o senhor afirmou que pretende enfrentar com “ferramentas adequadas a litigiosidade quase patológica que temos no Brasil”. Quais essas ferramentas?

LFS – Precisamos primeiro agilizar os processos em curso e depois retirar do Poder Judiciário o que não deveria estar lá, seja por meio de portarias da própria Corregedoria e da Presidência do CNJ, seja, naquilo que precisar de projetos de lei, por meio do diálogo permanente com o Parlamento, para que isso possa ser implementado com rapidez.

RJC – Qual é a avaliação que o senhor faz da gestão que ora substitui, comandada pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura?

LFS – A Ministra Maria Thereza é uma juíza completa, que deixa essa função para assumir a Presidência do STJ, um tribunal de grande estatura constitucional. Fez uma gestão íntegra, correta e inovadora e agora tem um novo desafio pela frente, com boa parte de sua equipe, que a acompanhará. Quero agradecer por toda a gentileza com que ela, singelamente, fez uma série de pequenos gestos ao longo desse período para facilitar nossa transição, como a convocação de alguns juízes, a disponibilização de documentos e de todo o acervo, e a total  disponibilidade de todos de sua equipe. Quero não apenas registrar o trabalho dela, de suas equipe e dos servidores que atuaram na Corregedoria no último biênio, mas também agradecer por toda essa gentileza no momento da transição.

RJC – O senhor pretende dar continuidade aos projetos implementados pela Ministra?

LFS – Algumas de nossas metas são de continuação ao trabalho que já vinha sendo bem desenvolvido pela Ministra Maria Thereza e pelos que a precederam, mas também temos algumas propostas a apresentar ao CNJ. Essas metas trazem um conteúdo burocrático muito grande. Quem acompanha o dia a dia do Judiciário nos últimos tempos sabe o quanto dá trabalho produzir informações para que possamos unificar os dados no âmbito da Corregedoria. Sei o quanto isso é trabalhoso para cada tribunal e para cada corregedoria, mas é um ponto importante, a partir do qual poderemos olhar para trás e avaliar se o resultado é bom, se devemos seguir com as mesmas metas ou mudar o rumo.

Temos algumas ideias como, por exemplo, no campo das inspeções e correições. Até já combinei com o Desembargador Fernando Antonio Torres Garcia, Corregedor Geral da Justiça paulista, de verificar quais são os mecanismos de controle da produtividade no dia a dia do juiz que funcionam num estado-país como é São Paulo. A ideia é essa, verificar o que há de bom, reproduzir boas práticas, acompanhar tudo o que vem sendo feito e atuar, quando for necessário, nos casos que demandem nossa energia. Queremos integrar. Nesse ponto das inspeções e correições, essa integração será via DataJud (Base Nacional de Dados do Poder Judiciário), um bom campo de trabalho. Temos a ideia de construir uma atuação nessa área.

RJC – Quais são os desafios da Corregedoria na atividade disciplinar?

LFS – No caso da Corregedoria Nacional, temos um acervo de aproximadamente dois mil processos, boa parte deles já com soluções apontadas. O que dependeu de pauta ainda não foi possível encaminhar, mas vamos conversar com os conselheiros para estabelecer uma rotina. A Ministra Rosa Weber, prestes a assumir a Presidência do Supremo Tribunal Federal, me disse ter a intenção de trabalhar bastante para tentar zerar essa pauta, de modo que não nos assusta esse acervo.

Na atividade disciplinar, o momento requer muita serenidade da nossa parte. Aqueles que já têm mais experiência no Judiciário sabem do que estou falando. É preciso ter muita tranquilidade, serenidade, desenvolver nosso trabalho com correção, sem estardalhaço, para que possamos fazer o correto, que é o que todos que estão numa função como essa desejam. Precisamos fazer o que é certo sem prejudicar ninguém, mas quando alguém se desvia da sua atividade, acaba prejudicando a todos. Temos que atuar nessa hora para o bem de todos. Mas, em regra, penso que devemos seguir com muita tranquilidade.

RJC – De volta à sabatina do Senado, foram feitas críticas à ausência dos juízes nas comarcas, sobretudo nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos. São críticas procedentes? De que forma a Corregedoria pode atuar para resolver o problema?

LFS – Um ponto que seguramente teremos que enfrentar é o retorno ao trabalho presencial. Agora no pós-
pandemia, principalmente nas pequenas comarcas, nas quais temos juízos únicos ou juízos múltiplos, é muito importante garantir que esse retorno ocorra de forma efetiva. Precisamos ter consciência disso, para não cedermos espaços do ponto de vista institucional. Temos que colocar energia nessa questão.

Outro ponto é o equacionamento da força de trabalho entre primeiro e segundo graus. A Resolução nº 219, dos idos de 2016, já tratava disso. No momento em que vamos fazer o esforço para a retomada das atividades presenciais, temos que fazer em paralelo o esforço para que haja equilíbrio da força de trabalho nos graus de jurisdição.

RJC – O senhor avalia propostas para aprimorar os serviços prestados pelos cartórios e outras serventias extrajudiciais?

LFS – Na questão das serventias extrajudiciais, que desafiam um trabalho muito grande da nossa parte, cumpriremos o papel de modernizar a atividade. Não só fiscalizar, mas otimizar as serventias. O papel de impulsionar isso é da Corregedoria. Temos um universo para trabalhar com a atividade extrajudicial ligada à desjudicialização. Eu conversava com o Corregedor-Geral da Justiça na Bahia, Desembargador José Edivaldo Rocha Rotondano sobre as possibilidades relacionadas à regularização fundiária. Ele faz um trabalho interessante nessa temática, que vamos tentar ampliar no âmbito da Corregedoria Nacional. É um mundo a trabalhar, posso agora apenas pinçar alguns pontos que poderei detalhar melhor mais à frente, após discutir de forma pormenorizada nossas metas e nosso plano de trabalho junto aos demais conselheiros do CNJ.

Estamos tomando nota de todas as contribuições que nos têm sido encaminhadas, fazendo uma verdadeira colheita de sugestões junto a todos os atores que operam no Judiciário, com os demais corregedores, com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com associações como a AMB e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), com representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública. Procuramos ouvir a todos para apresentar um plano de trabalho que contemple as preocupações desses atores.