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Guardião da liberdade

31 de maio de 2010

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Discurso proferido pelo Ministro Cezar Peluso em sua posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal

“Seria difícil traduzir em palavras a intensidade com que vivo este instante. Homem comum, avesso, por índole e radical convicção, a notoriedade e a auto-referencia, logo me obrigo a fazer praga da imensa honra de chegar, pela via sempre compensadora do trabalho, ao mais elevado posto que transcende uma carreira, eleita, há mais de quatro décadas, como projeto de toda uma vida. Foram mais de 15 (quinze) mil dias, desde a primeira comarca no interior de São Paulo, até esta cerimônia que se incorpora, em definitivo, à memória de quem hoje assume a presidência do Supremo Tribunal Federal. Mas evocações não me permitem esquecer os agradecimentos.
O primeiro deles ao Exmo. Sr. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja presença, mais que ao empossando, honra esta Corte, e que me nomeou para integrá-la, com o apoio vigoroso e perseverante do então Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, a quem sou não menos grato pelo gesto de confiança na minha independência, predicado que caracteriza, historicamente, todos os ministros desta Casa. Meus respeitos, igualmente, ao Senado Federal pela aprovação da escolha do meu nome.
Agradeço, ao depois, as generosas palavras do nosso decano, Ministro Celso de Mello, que associa, em combinação rara, à sólida cultura jurídica, à impecável correção ética e à inexcedível elegância no convívio colegiado, essa extraordinária segurança intelectual que lhe permite reconhecer e proclamar as virtudes alheias e, não raro, por excesso de fineza, descobri-las até onde não as há.
Agradeço ao senhor Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, que dá continuidade à primorosa atuação do nosso querido Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, a saudação cuja delicadeza não é mais do que o reflexo de sua cativante fidalguia.
Com não menor emoção, agradeço a riqueza da retórica e as demasias da amizade desse advogado exemplar, modelo de um cavalheirismo quase anacrônico, Dr. Pedro Gordilho, que sempre me comove como figura humana.
Agradeço ao Dr. Ophir Filgueiras Cavalcante Junior a homenagem que, em nome da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo Conselho Federal preside com bravura, prestou ao Poder Judiciário.
Saúdo, com apreço e cordialidade, o Ministro Gilmar Mendes, a cuja gestão servi com lealdade e ética retilíneas, e que, deixando a difícil missão de sucedê-lo, emprestou sua intrepidez à defesa do prestígio desta Corte e seu descortino à consolidação do Conselho Nacional de Justiça. As conhecidas e bem sucedidas inovações que, aqui e ali, introduziu de modo marcante e irreversível, explicam a inédita aprovação manifestada em editoriais dos mais importantes jornais do País, as quais já lhe fizeram, de público, a devida justiça. Na sua pessoa, homenageio todos ex-presidentes.
Igualmente, homenageio meus pares, agradecendo-lhes a generosidade com que, reverentes a regra de saber e de experiência feita, nos conferiram, ao Ministro Carlos Aires Britto e a mim, votos que significam promessa de apoio e de solidariedade no exercício do honroso mister de os representar.
E recordo, com saudade inconsolável, o irmão e parceiro, Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que comigo sonhou sonhos de grandeza desta Casa, em cujas paredes ainda ecoam seus sorrisos e suas esperanças.
Envaidece ascender a tão honroso cargo no singular momento histórico em que, por obra de vertiginosas transformações de ordem econômica, social e política, o País se investe numa posição de relevo no cenário internacional, credenciando-se como interlocutor respeitável no diálogo das nações. Em poucos anos, seremos a quinta economia do mundo. Embora ainda inadimplentes da dívida social, já despertamos do sono secular em berço esplêndido. E nossa atual importância geopolítica justifica que o País, em cujo território não se estabeleceu ainda, dentre vários dispersos pelos continentes, nenhum organismo qualificado da Organização das Nações Unidas, reivindique agora sediá-lo, não à conta de ambição tacanha ou de orgulho vão, mas consciente da contribuição que pode oferecer aos esforços da paz no mundo.
Explico-me, Senhor Presidente.
A revelação de métodos apropriados para estabelecer
padrões consistentes de segurança pública já não pode prescindir da contribuição dos meios universitários, cujos estu­dos e pesquisas concorrem para formulação de políticas de fortalecimento dos sistemas jurídicos de prevenção, investigação,
repressão e execução penal, com responsabilidade compartilhada em todos os continentes.
É deste ponto de vista que a Organização das Nações Unidas tem a oportunidade de dar mais um passo histórico decisivo, com a criação, com sede em nosso país, de uma Universidade Internacional de Segurança Pública, concebida como foro produtor de subsídios científicos à busca de soluções inteligentes para as peculiaridades do crime sem fronteiras, que geram instabilidades regionais e ameaçam a paz do mundo.
Nenhum país pode enfrentar sozinho a epidemia universal da violência, mas o grau de cooperação entre governos ainda está muito aquém do nível de cooperação percebida entre as redes do crime organizado. Na reunião do Conselho de Segurança da ONU, em 9 de dezembro de 2009, o Secretário Geral da ONU advertiu, só para exemplificar com um fato óbvio, que “as rotas do tráfico de drogas se tornam uma ameaça cada vez mais grave, atingindo todas as regiões do mundo”.
Os problemas atuais com que se defronta o tratamento das múltiplas expressões da criminalidade têm debilitado a segurança mundial. Nação alguma pode hoje dizer-se totalmente protegida contra os efeitos nocivos da globalização. Visível ou subterrânea, essa criminalidade, favorecida pela Internet, ignora fronteiras, especialmente em operações de tráfico, lavagem de dinheiro, clonagens, fraudes, propagação de vírus e de ofensas à honra das pessoas, em sítios eletrônicos ou páginas de relacionamento. Tal crise contemporânea, que universaliza os sentimentos de medo e insegurança, pede urgente instauração de formas mais estreitas de colaboração entre os países membros da Organização das Nações Unidas.
Atuando, nessa emergência, como instrumento de cooperação institucional, de prevenção e controle da criminalidade, de aplicação das normas internacionais contra o crime organizado e de combate à propagação do terrorismo e da degradação ambiental, a Universidade teria por objetivos básicos fortalecer o intercâmbio, promovendo experiências para compreender essa nova realidade e sugerir soluções mais adequadas em âmbito nacional, transnacional, em zonas de conflitos e em áreas de reconstrução pós-conflitos (a); introduzir, nos sistemas de segurança, mecanismos de aumento da transparência e da confiabilidade das políticas públicas (b); estimular o desenvolvimento científico e tecnológico dos aparatos policiais, no contínuo processo de integração com a comunidade (c); recolher fundos de agências de desenvolvimento para financiar programas, projetos e pianos de ação (d); e definir políticas de cooperação nos termos ditados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas – ECOSOC (e).
A criação, aqui, de uma Universidade Internacional de Segurança Pública das Nações Unidas, estruturada nesses moldes, será valiosa resposta à Cúpula do Milênio, realizada pela ONU, de 6 a 8 de setembro de 2000, em Nova York, visando a metas estratégicas duradouras para os quadros de miséria, exclusão, desordem ambiental, medo e insegurança, que atingem bilhões de pessoas em todo o globo. Atenderia à Declaração de Salvador, que, há poucos dias aprovada ao termo do XII Congresso da ONU sobre Prevenção de Crime e Justiça Criminal, do qual tivemos a honra de participar como presidente do Comitê Latino-Americano de revisão das regras mínimas de tratamento de presos, apela, mais uma vez, para a necessidade da cooperação internacional. E, em nome da humanidade, daria substância ao permanente empenho da ONU na busca de melhores práticas em favor da vida condigna em todos os domínios das relações humanas.
A estabilidade institucional, que, inspirando ao mundo fundada confiança em nossa ordem jurídica, sustenta a ousadia da proposta, é também obra desta Corte.
Entre outros, vem o STF exercendo, ao longo da história republicana, mas sobretudo no período que vem do início de vigência da atual Constituição Federal, dois papéis fundamentais na estabilidade do processo de aprendizado e aprimoramento democráticos.
A democracia, sabemo-lo todos, não é um dado, mas uma construção permanente, na qual a estabilidade, que a cimenta, não significa ausência de crises e, em particular, de crises políticas, cuja superação constitui incumbência primária das demais esferas de poder, até porque são intercorrências inevitáveis, de certo modo periódicas e previsíveis, da congênita imperfeição da convivência humana. Na milenar trajetória de refinamento do Espírito, a harmonia universal e a domesticação das paixões aparecem apenas como horizonte utópico e princípio da ação prática.
Mas a estabilidade, essa transpira a possível certeza do Direito, que, reafirmada e assegurada pelas decisões judiciais na interpretação e aplicação do ordenamento, é capaz, não de extinguir os conflitos intersubjetivos e as turbulências políticas, as que envolvem a polis, mas de lhes pôr termo racional, enquanto condição ineliminável da fidelidade da ação humana a si mesma e da sobrevivência de uma sociedade civilizada.
Concretizá-la tem sido o papel eminente e a grande contribuição desta Corte ao País, sobranceira a injustas acusações de ativismo político, porque consciente do dever jurídico de dar respostas constitucionais necessárias a demandas sociais oriundas da incapacidade de soluções autônomas.
Essa obra, que guarda hoje singularidade histórica, não é fruto de suposta diferença de personalidade, de cultura jurídica e de visão do mundo dos membros atuais da Corte, senão característica do cunho analítico da Constituição em vigor e, em certa medida, aliás muito honrosa, do sentimento público de confiança conquistada pela instituição por mérito das gerações de ilustres ministros que nos precederam.
O segundo papel tem sido o de, atuando as garantias constitucionais, tutelar os direitos individuais e coletivos, que encarnam a concepção normativa dos valores imanentes em que se decompõe a ideia da dignidade humana, vista como fonte, substância e fim último de toda ordem jurídica, e cujo resguardo é já reconhecido como garantia última do desenvolvimento do projeto comum de convivência ética. O direito não é apenas categoria ou conceito, objeto de válidas lucubrações acadêmicas. O direito é, antes de tudo, vida, que se manifesta nas infinitas possibilidades da ação humana na realização histórica de cada projeto pessoal nesta misteriosa experiência da vida em sociedade. E, porque o é, seu menoscabo, provenha da autoridade ou dos súditos, como centros de poder social, degrada sempre a pessoa humana reduzindo-a, de sujeito da sua história, a objeto disponível da ação alheia e, portanto, ao estado de coisa, infravalente por natureza. E, se não restabelece a ordem jurídica lesada, dentro da qual a lesão à liberdade e à autonomia de cada um é lesão à autonomia e à liberdade de todos, retrocedemos aos estágios fluídos da barbárie.
Daí, a perceptível e relevantíssima das tarefas do Supremo de proteger a pessoa humana na dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, ainda quando sua violação se esconda e dissipe no fluxo das situações que, ética e juridicamente censuráveis, despertam a indignação popular, quase sempre obcecada pelas mais primitivas pulsões e não raro incendiada pela voracidade publicitária de alguns veículos de comunicação de massa. E é nesse contexto que avulta a grandeza da intervenção, sempre provocada, do Supremo Tribunal Federal, ao manter-se fiel ao dever funcional de, velando pela integridade da Constituição da República, restaurar o primado dos direitos civis e políticos, ainda quando afronte expectativas irracionais da opinião pública, cujas projeções não refletem, muitas vezes, aquela profunda consciência ética que nos distingue como seres superiores e nos orgulha de pertencer à raça humana.
Os juízes não somos chamados a interpretar nem a reverenciar sentimentos impulsivos e transitórios de grupos ou segmentos sociais. Nosso juramento, formal e solene, que não constitui liturgia, mas promessa dirigida ao povo, é, adaptando-as, quando possível, ao espírito do tempo, aplicar a Constituição e as leis, tais como legitimamente editadas, sob regime de Estado Democrático de Direito, pelos órgãos representativos da soberania popular, aos quais compete a tarefa de, na dialética democrática Judiciário-Parlamento, segundo a precisa expressão de Chaim Perelmann, mudar as leis e a Constituição, quando já não convenha à sociedade o sentido normativo que lhes emprestem os tribunais. O povo confia em que não sejamos perjuros, nem vítimas da tentação de onipotência. Por isso, acima das conjunturas e das peripécias históricas, nossa autoridade não vem do aplauso ditado por coincidências ocasionais de opiniões, nem se inquieta com as críticas mais ensandecidas. Nos temas cuja controvérsia argúi o mais íntimo reduto da subjetividade humana, como o aborto, a eutanásia, as cotas raciais, a união de homossexuais e tantas outras, não pode a sociedade, irredutivelmente dividida nas suas crenças, pedir-nos soluções peregrinas que satisfaçam todas as expectativas e reconciliem todas as consciências. Nosso compromisso, na quase prosaica tarefa cotidiana de decidir as causas segundo nos sugira a inteligência perante os fatos e a lei, é renovar o ato de fé na supremacia da legalidade democrática, na valência de uma ordem jurídica justa e nos grandes ideais humanitários consubstanciados no rol dos direitos fundamentais, preservando e transmitindo, como legado desta às futuras gerações, os valores que tornam a vida humana uma experiência digna de ser vivida e, como tais, definem uma civilização.
Mas o honroso encargo de Presidente desta Corte lhe impõe agora, a quem o assume, a par da grave obrigação de, quando menos, concorrer, nos limites de suas forças, sobretudo para o fiel desempenho de ambos esses papéis, essenciais a consolidação e ao aperfeiçoamento da democracia, no mais longo período de estabilidade constitucional da história republicana, o mister de dirigir o Conselho Nacional de Justiça.
Deste Conselho, que, posto ainda algo hesitante a respeito da sua precípua vocação constitucional de órgão administrativo de planejamento estratégico, predestinado a conceber e a executar políticas nacionais de fortalecimento do Poder Judiciário, já provou o alcance de corajosas iniciativas em múltiplas áreas de deficiências estruturais da máquina judicial, a primeira tarefa, e não por acaso a primeira na ordem textual da Constituição, e velar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura. Sob esta fórmula de aparente simplicidade, palpita o seu mais nobre e complexo ofício orgânico, porque, pautando-lhe o exercício das demais atribuições, voltadas todas aos propósitos de eficiência do serviço devido ao povo, tem por pressuposto a necessidade de reconhecer e guardar a dignidade, a independência e a autoridade dos magistrados e dos órgãos jurisdicionais, as quais são predicados elementares da função judicante, garantia dos cidadãos, e não privilégios corporativos.
É nobre o ofício, porque, sendo nobre por natureza o serviço da Justiça, no exercê-lo nobilita o povo como seu destinatário e cultua a inteireza do ordenamento jurídico democrático como único ambiente em que vicejam a liberdade e a convivência civilizada. E é complexo, porque exige a particular habilidade de, ainda quando, em nome dos seus elevados objetivos, tenha de reprimir, com todo o peso da superioridade hierárquica, erros e desvios que, na estrita seara administrativa, financeira e disciplinar, comprometam as atividades judiciais, fazê-lo sem marear os juízes e os tribunais com excessos que, nada acrescendo em termos de eficácia, de um lado levantem suspeitas generalizadas e injustas, capazes de corroer a credibilidade do Judiciário, e, de outro, conotem intromissões desnecessárias e ilegais, tendentes a castrar a autonomia e a desestimular a imprescindível colaboração de seus órgãos diretivos.
Deixar de observá-lo não seria apenas desconforme com a letra da Constituição, mas o seria mais com seu espírito vivificante, que foi o de, ao instituir o Conselho, prover o sistema judiciário de um cabal e seleto mecanismo de aprimoramento. E a ninguém escapa que eventual hostilidade coletiva, nascida de abusos ou incompreensões do poder controlador, oporia, em surto de indesejáveis reações emocionais e de conflitos contraproducentes, obstáculos intransponíveis à concretização das altas finalidades que a Constituição reservou ao Conselho, para operar, não contra, mas em favor da Magistratura e, por seu intermédio, em benefício do povo.
Se a Magistratura, como todas as demais instituições humanas, não é nem pode ser perfeita, não lhe faltam, como o revela um juízo histórico isento, à luz das restrições políticas que lhe perpetuam a heteronomia orçamentária e de um rígido senso conservador que transcende seus quadros, porque deita raízes na cultura das camadas sociais de que provém a capacidade de reconhecer seus defeitos, de suprir suas deficiências, de purgar seus pecados e de tentar responder, com sinceridade e disposição, aos desafios que lhe proponham diagnósticos precisos e projetos sensatos emanados de um órgão central de planejamento. A descrer dessa capacidade, seria melhor extinguir o Judiciário.
Donde estou plenamente convicto de que, nessa emprei­tada comum, não há outro caminho ao CNJ senão o de convencer a Magistratura, por ações firmes mas respeitosas, de que somos todos, cada qual nas esferas próprias de competência constitucional, aliados e parceiros na urgente tarefa de, corrigindo as graves disfunções que o acometem, repensar e reconstruir o Poder Judiciário, como portador das mais sagradas funções estatais e refúgio extremo da cidadania ameaçada. E, se para o lograr, decerto será preciso agir com rigor e severidade perante desmandos incompatíveis com a moralidade, a austeridade, a compostura e a gravidade exigidas a todos os membros da instituição, o testemunho público de minha dedicação incondicional, por mais de quarenta anos, a Magistratura, não autoriza nenhum magistrado, ainda quando discorde, duvidar de que, na condição de Presidente do STF e do CNJ, vou fazê-lo sem hesitação, como já o fiz quando servi, por dois anos, a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, por amor da Magistratura. Aliás, só quem ama, já tive oportunidade de dizê-lo, deveria ter o poder de punir. E não faz muito, por duas vezes indagaram-me sobre a marca que gostaria de deixar ao cabo da honrosa missão que me conferiram meus pares. E não titubeei em responder que estimaria ser apenas lembrado como alguém que contribuiu, nos extremos de sua capacidade, para recuperar o prestígio e o respeito públicos a que fazem jus os Magistrados e a magistratura do meu país.
Muitos são os desafios para restaurar esse prestígio. Nem é este o lugar curial para recapitular todas suas conhecidas disfunções, das quais a mais ostensiva, conquanto não exclusiva do Judiciário brasileiro, talvez seja a morosidade das respostas jurisdicionais, que denuncia obstinada crise de desempenho e explica crescente perda de credibilidade institucional.
Pesquisas recentes e confiáveis mostram que 43% dos brasileiros, ao sentirem seus direitos desres­peitados, procuram soluções por conta própria. Só 10% vão diretamente à Justiça. Os outros dividem-se na busca de mediação de advogados, no recurso à polícia, na renúncia ao interesse e, pasmem, até no uso da força. É verdade que, entre os que recorrem ao Judiciário, 46% se declaram satisfeitos e, apenas 23%, inconformados. Mas está claro que isso não pode consolar-nos.
Ora, as rápidas transformações por que vem passando, sobretudo nas ultimas décadas, a sociedade brasileira, tem agravado esse quadro lastimável, em virtude da simultânea e natural expansão da conflituosidade de interesses que, desaguando no Poder Judiciário, o confronta com sobrecarga insuportável de processos, em todas as latitudes do seu aparato burocrático. E uma das causas proeminentes desse fenômeno está, como bem acentua o Des. Kazuo Watanabe, na falta de uma política pública menos ortodoxa do Poder Judiciário em relação ao tratamento dos conflitos de interesses.
O mecanismo judicial, hoje disponível para dar-lhes resposta, é a velha solução adjudicada, que se dá mediante produção de sentenças e, em cujo seio, sob influxo de uma arraigada cultura de dilação, proliferam os recursos inúteis e as execuções extremamente morosas e, não raro, ineficazes. É tempo, pois, de, sem prejuízo doutras medidas, incorporar ao sistema os chamados meios alternativos de resolução de conflitos, que, como instrumental próprio, sob rigorosa disciplina, direção e controle do Poder Judiciário, sejam oferecidos aos cidadãos como mecanismos facultativos de exercício da função constitucional de resolver conflitos. Noutras palavras, é preciso institucionalizar, no plano nacional, esses meios como remédios jurisdicionais facultativos, postos alternativamente à disposição dos jurisdicionados, e de cuja adoção o desafogo dos órgãos judicantes e a maior celeridade dos processos, que já serão avanços muito por festejar, representarão mero subproduto de uma transformação social ainda mais importante, a qual está na mudança de mentalidade em decorrência da participação decisiva das próprias partes na construção de resultado que, pacificando, satisfaça seus interesses.
Esta cerimônia, que vai chegando ao fim, é, no seu significado mais profundo, celebração da Justiça. Justiça não se celebra, porém, onde falte a liberdade. Se pudéssemos condensar, num único vocábulo, os trinta artigos da mais completa e representativa carta de solidariedade que conhece o mundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal palavra seria Liberdade, porque nela se concentram todos os valores próprios da inesgotável noção da dignidade da pessoa humana na plenitude e posse dos seus direitos individuais e sociais. Terá sido isto que expressou um memorável democrata, Franklin Delano Roosevelt, quando advertiu: “Os homens necessitados não são homens livres”.
Por isso, a liberdade é o princípio supremo de todas as leis. Por isso, preza-se esta Corte de ser reconhecida como guardiã da liberdade, para cuja definição valho-me de palavras que vão além de qualquer prosa. Palavras de poesia, escritas por uma brasileira cujo nome pronuncio com grande reverência: Cecília Meirelles. E, com não menor gratidão, por me oferecer em seus versos as últimas linhas desta alocução proferida em momento especial da minha vida de juiz:

‘Liberdade
Esta palavra que o sonho humano alimenta
E não há ninguém que a explique
E ninguém que não entenda’.”