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Estado e Governo

15 de dezembro de 2013

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Aurelio Wander BastosA função corrosiva do Fator Previdenciário

Hans Kelsen, consagrado jurista austríaco, não chegou a desenvolver o conceito de Estado Democrático de Direito, mas, ao identificar a ordem jurídica com o Estado de Direito, entendeu, que, nas democracias, a legalidade obedece a uma rígida estrutura hierárquica entre as normas. Esta estrutura é permeada pela Norma Fundamental que não integra o ordenamento jurídico, mas é o referencial indicador de sua coerência, identificável, senão apenas através de específicos princípios também como a essência ontológica da Constituição, dos quais derivam e se inspiram as leis gerais e o conjunto normativo subsidiário da ordem jurídica.

A leis gerais, no contexto desta concepção, são as normas básicas do Estado de Direito, que se fundamentam e derivam da Constituição, promulgada por uma Constituinte, na leitura, também de tantos pensadores que se lhe antecederam e sucederam, como E. J. Seiyès, criador da teoria constituinte. Por isto, estas leis gerais são funcionalmente reconhecidas como o corpo jurídico-legislativo do Estado democrático, que, pela sua força hierárquica, se sobrepõem às normas inferiores (regras e/ou normas subsidiárias) de governo, tais como portarias, resoluções, ordens de serviço, notas técnicas, memorandos, pareceres editados por órgãos de administração para alcançar os fins de governo. Estas regras ou normas subsidiárias e intermediárias, mesmo os decretos regulamentares das leis gerais, não podem, entre si, divergirem material ou formalmente e, por isto mesmo, nem modificá-las ou derrogá-las. Ao se distanciarem da essência fundamental da ordem, estas normas subsidiárias desprendem-se da imprescindível conexão entre elas próprias e as leis superiores, evitando que prevaleça a absoluta preponderância da Constituição e das leis gerais.

Modernamente têm sido frequentes os desencontros de inspiração entre as leis gerais e as normas subsidiárias, muitas vezes devido a emendas constitucionais, que, não exatamente, expressam as expectativas principiológicas da Constituição, com o objetivo de viabilizar políticas de governo. Estas práticas normativas que mais visam reverter resistências institucionais para corrigir situações financeiras, atuariais, tributárias e previdenciárias outras tantas vezes mesmo por normas ou portarias ministeriais, que, ancorando-se em decretos de natureza extensiva ou restritiva em relação à lei geral, ou mesmo inspirando-se em emendas diversionistas, dos princípios e da essência ontológica da Constituição, desviam-se da exata linha de coerência interna da ordem jurídica.

Nos governos de regime parlamentarista estas situações são presumíveis, mas bloqueadas devido à necessária sintonia entre as ações do Chefe de Estado (Presidente) e do Chefe de Governo (Primeiro Ministro), mas, inesperadas, no regime presidencialista, onde o Presidente funciona como Chefe de Estado e de Governo, condicionado, por conseguinte, ao absoluto cumprimento das leis gerais devido à indispensável coerência entre as normas e a hierarquia entre as leis, decretos, regras e normas subsidiárias. É injustificável, por conseguinte, no regime presidencialista, onde o Chefe do governo não é Chefe de governo parlamentarista, mas Chefe de Estado e de Governo, que políticas internas de governo questionem as leis gerais sancionadas pelo Presidente da República, não apenas como Chefe de governo, não importa em que época ou ocasião, exceto na edição de nova lei sobre o assunto, mas também como Chefe de Estado. Isto significa que a hierarquia de governo não pode evoluir além do conteúdo de leis gerais sancionadas pelo presidente como Chefe de Estado e de governo, respeitando, desta forma, as regras do Estado Democrático de Direito, cuja essência antológica e princípios estão constitucionalmente grafados.

Neste quadro, apesar do fenômeno estar se manifes­tando em outras áreas de governo, a sua incidência mais aguda tem ocorrido no setor previdenciário, exatamente pelos seus altos índices orçamentários, por um lado, e, por outro, porque se beneficiam dos efeitos previdenciários (aposentadorias e pensões) um grande volume de servidores públicos, aposentados e pensionistas, cujos direitos estão classificados no Regime Único do Servidor Público, e os empregados de entidades privadas cujos direitos estão regulados diferentemente pelo Regime Geral da Previdência Social. Ocorre, todavia, que normas subsidiárias de governo, e mesmo leis ordinárias, passaram a indicar administrativamente uma leitura hermenêutica comparada entre o Regime Único do Servidor Público pelo Regime Geral da Previdência Social e suas normas subsidiárias, sistemas de origem e estruturação diferenciada. Os mais visíveis exemplos desta esdrúxula situação são a Emenda Constitucional no 41/2003, a Lei no 9.717/1998 e a Portaria no 479, de 14 de agosto de 2013, conhecida como uma das destoantes e diversionistas portarias ministeriais que produzem o Fator Previdenciário, seguidos de uma das portarias ministeriais subsidiárias de conteúdo diversionista.

O Fator Previdenciário, no fundo, é uma construção técnica destinada a viabilizar a equiparação entre os direitos e benefícios do servidor público e os direitos dos empregados celetistas, através de arranjos ”lógicos” presumíveis. A sua contextura nos permite afirmar que é uma das mais controversas fórmulas que foram implementadas como efeito da Emenda no 41/2003, que viabilizou como princípio constitucional, por itens, perdulária leitura comparada de direitos e deveres do servidor público com direitos e deveres do empregado celetista, sobrepondo ainda flutuações nos cálculos de aposentadoria e pensão. A fórmula do resultado do fator previdenciário (f) ocorre devido a uma combinação igual à combinação de “tempo de contribuição do trabalhador (Tc); alíquota de contribuição (a); expectativa de sobrevida do trabalhador na data da aposentadoria (ES) e idade do trabalhador na data da aposentadoria”, com variantes aplicáveis a mulher e professores.

O resultado dos cálculos é uma verdadeira tragédia: em primeiro lugar, servidores públicos, aposentados e pensionistas, titulares de direito adquirido, perdem o seu direito e funcionários públicos e servidores celetistas sofrem sucessivas reduções salariais no exato momento que envelhecem. Por outro lado, estas proposições mais se classificam como técnicas de políticas destinadas a alcançar o equilíbrio financeiro atuarial da previdência, comprimindo os direitos do servidor público, que nor­ma­tivamente são amparados com o esdrúxulo efeito do artigo 5o da Lei no 9.717/1998, e da Portaria no 479/2013, que em muitas circunstâncias, alcança o próprio empregado celetista.

No seu conjunto, os direitos do servidor foram constitucionalmente consagrados na fórmula originária da Constituição, mas os efeitos da leitura provocada por estas normas tem resultado em efetivo desrespeito ao princípio do direito adquirido, da preservação da integridade do caráter alimentar, da anterioridade e da garantia hierárquica das leis. A fórmula do fator previdenciário têm uma especial aparência lógica de “alta matemática”, mas, na verdade, a sua essência é uma reversão ideológica que viola princípios jurídicos tradicionalmente consagrados em leis gerais e, até, na Constituição. Assim, por exemplo, perdem o seu direito adquirido, ou são constrangidas em seus benefícios, com a simples aplicação da fórmula, aqueles que teriam (tem) direito à pensão vitalícia da pessoa designada (dependente maior de 60 anos) sucessiva à morte do servidor; menor sob guarda judicial do servidor; menor sob guarda ou tutela até 21 anos e outros.

É injustificável, neste sentido, que atos ministeriais, que nem sempre traduzem políticas de governo, divergentes das leis gerais, muitas vezes fora do alcance administrativo dos próprios decretos presidenciais apoiados em leis dissonantes dos princípios fundamentais do Estado, em visível confronto com a hermenêutica jurídica, suspendam ou derroguem direitos adquiridos, muitas vezes levando servidores a situações parasitárias, suscetíveis aos efeitos das políticas de reequilíbrio financeiro impostos pela Emenda Constitucional
no 41/2003, fonte das políticas de ajuste financeiro e atuarial. Esta Emenda estabelece (art. 40) que o regime de previdência tem um “caráter contributivo e solidário, observados os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial” diferentemente do texto originário anterior que dispunha que “é assegurado o regime de previdência em caráter contributivo (não estando indicada a palavra solidário), observados os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial” e, na mais absoluta diferença do texto original da Constituição que nem ao menos faz qualquer referência e finalidade do recebimento previdenciário com vistas ao equilíbrio financeiro-atuarial. Efetivamente, houve uma profunda mudança na política previdenciária que evoluiu de seu caráter de proteção individual, incorporando ao texto o velado princípio da solidariedade, que, na verdade, não está exatamente sintonizado com o princípio da dignidade humana e o respeito às técnicas de interpretação tradicionais.

A Constituição brasileira de 1988 está permeada, como na proposição da teoria Kelseniana, por uma lei fundamental ou, na sua inspiração, o que Kant denominava de imperativo categórico, está comprometida, politicamente, com a proteção do cidadão e com o princípio da dignidade humana e, do ponto de vista econômico, com o princípio da lei orçamentária geral, exatamente para se evitar que práticas de administração financeira e atuarial, regras impostergáveis de governo, transvistam-se em dimensão constitucional, com os seus sempre reconhecidos efeitos corrosivos do Estado. Neste sentido, permear os princípios políticos gerais por políticas de tratamento diferenciado entre cidadãos, servidores públicos e aposentados e pensionistas, é uma violação ao princípio da dignidade humana, explicitado pela imprescindível igualdade e, no caso, o princípio do orçamento geral impositivo, votado pelo Congresso que aplicados fora da itemização orçamentária podem desviar o “quantum” orçamentário de seu destino específico. Esta situação ganhou dimensão exponencial com a Emenda Constitucional nº 41/11.

Todavia, nos Estados Democráticos, juridicamente organizados, as normas de governo, mesmo nos casos de reversão de finalidades políticas não podem derrogar ou corroer o conteúdo das leis gerais, através de iniciativas que fujam dos princípios constitutivos do Estado, de leis que divirjam dos princípios hermenêuticos ou de normas subsidiárias, editadas por escalões intermediários do poder porque podem comprometer as hierarquias superiores do governo com modelos autocráticos (ou demagógicos) de administração, a fórmula apócrifa do Estado de “Direito” desprezada por Kelsen. Nestes casos, para se alcançar resultados modificativos ou confronta-se subsidiariamente com o Direito constitucionalmente prescrito ou implementa-se (parlamentarmente) políticas de modificação da ordem e seus princípios fundamentais, o que poderia representar uma ruptura constitucional.

Finalmente, esta linha de orientação tem predominado (liminarmente), inclusive, no Supremo Tribunal Federal – STF, como está em recente decisão proferida no Mandato de Segurança (Medida Cautelar) no 32.085, que assim entende em resumo: a Portaria no 479, de 14 de agosto de 2013 (DOU de 15.8.13) não poderia ser editada, pois o acórdão no 7.484/12 do TCU, que a fundamenta, já estava com sua eficácia suspensa pelo STF por decisão publicada em 19.6.13 (MS 32085). Nesta mesma decisão releva-se que entre o interesse da administração pública (traduzindo em norma de governo) e a necessidade social (no caso, o caráter alimentar, como norma de Estado) deve-se preservar os valores essenciais à própria subsistência, em situação de grave risco (MS no 32085 MC/DF).