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Getúlio Vargas: Um Depoimento Pessoal

5 de agosto de 2004

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O ponto de partida fora realmente a usina de Volta Redonda, com a necessidade de solucionar o problema da utilização do ferro, como uma espécie de patamar, em que assentar o desenvolvimento econômico de todo o país. Depois de realçar as dificuldades que havíamos encontrado, não obstante as imensas jazidas de minério existentes no território brasileiro, continuávamos obrigados a importar produtos elementares, que nos vinham do estrangeiro, observava Getúlio Vargas, acrescentando que “trabalhando com pequenos altos-fornos a carvão de madeira, a nossa atual siderurgia, além de ser, naturalmente, reduzida, é antieconômica e nociva. É nociva porque devasta as nossas reservas de  madeira de lei sem nenhuma garantia de que venham a ser substituídas, quando, ao réves, o interesse nacional aconselha a defende-las e melhorá-las”. E antieconômicas pelos preços altos que exigia, dadas as distâncias que ficavam de permeio, entre a produção e o consumo. “A solução do problema está, portanto, concluía Getúlio Vargas, na grande siderurgia – grande para nós, porque não podemos ter, é claro, a grande siderurgia alemã ou norte-americana”. Como assinala Osny Soares Pereira, um livro realmente precioso, “a Usina de Volta Redonda representa a mais importante marca de nossa industrialização, desde a Independência. A Petrobrás fixará a segunda etapa”. (Ferro e Independência, 52).

Mas como alcançar essa segunda etapa? Getúlio Vargas voltou a pensar no capital estrangeiro. Não será sempre assim, nos países que não acreditam em si mesmos? Quem sabe se a United Steel não viria em socorro do Brasil? Sobretudo depois que ela enviou técnicos ao nosso país, e eles foram unânimes no entender que seria de todo viável um plano, para a construção de uma usina siderúrgica. Não faltaram palavras, insinuações, promessas, para que a United Steel viesse em socorro do Brasil. Mas tudo tempo perdido. Não podia convir à siderurgia dos Estados Unidos promover a criação de um novo concorrente, na disputa do comércio internacional. Então Getúlio Vargas procurou contornar as dificuldades. Se a United Steel não queria vir, quem sabe se não seria possível conseguir, nos Estados Unidos, um empréstimo suficiente para financiar a construção da usina brasileira? Mas a influência da United Steel é muito grande, também nos Estados Unidos. O empréstimo não seria possível. É claro que Getúlio não gostou, mas havia outros meios de agir, e ele teve a coragem de os utilizar.

A Segunda Guerra Mundial já havia começado. As Forças Armadas de nosso país não escondiam sua simpatia pela Alemanha de Hitler, pelo menos numa grande parte de sua oficialidade. E como havia uma comemoração de data gloriosa, num dos navios de nossa esquadra, o nosso Presidente não deixou passar a oportunidade, e levou escrito um discurso em que ficava transparente a sua boa vontade, em prol de novos regimes, que soubessem arredar concepções antiquadas, a caminho de um declínio inevitável. Não precisou falar na Alemanha, mas foi o suficiente para que o Presidente Roosevelt decidisse ajudar, energicamente, o empreendimento com que sonhava o Governante brasileiro. Nem se precisava senão do empréstimo, com que adquirir, no estrangeiro, o material que nos faltava. No mais, bastava abrir a subscrição do capital da empresa em nosso país, e contar com os recursos do Governo, que não faltariam para a realização que nos parecia essencial. E aí está a Companhia Siderúrgica de Volta Redonda, em pleno funcionamento, com uma capacidade que vai crescendo com as necessidades do consumo nacional. Vale a pena invocar a opinião de John Wirth, que nos diz que “como programa industrial bem concebido, Volta Redonda exerceu um impacto imediato sobre a economia brasileira. As indústrias de carvão e de transportes foram modernizadas, e novas indústrias estabelecidas no Vale do Paraíba. Tal como planejado, a usina antes estimulou do que prejudicou os produtores de aço já estabelecidos”. (A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, 106). Warren Dean reconhece que, a partir dessa fase, os empréstimos feitos à indústria, como os que se fizeram à agricultura, parece terem sido orientados no sentido de aumentarem a auto-suficiência do Brasil. (A Industrialização de São Paulo, 229).

O que permitia a Getúlio Vargas proclamar que “a grande tarefa do momento é a mobilização dos capitais nacionais, para que tomem um caráter dinâmico, na conquista da região atrasada. O imperialismo do Brasil, continuava ele, consistia em ampliar suas fronteiras econômicas, e integrar um sistema coerente, em que a circulação da riqueza se faça livre, e rapidamente, baseada em meios de transporte eficientes, para aniquilar as forças desintegradoras da nacionalidade.  (A Nova Política do Brasil, V, 164-166). Que era tudo isso senão arvorar a bandeira nacionalista? A respeito desta dizia Getúlio: “era a bandeira que venho desfraldando em toda a minha vida pública, e ninguém logrará arrebatá-la de minhas mãos”.

E não havia como contestar afirmação tão decidida. Na verdade, com a criação de fundos com que arrecadou uma poupança compulsória, Getúlio Vargas soube fincar, na economia brasileira, marcos definitivos, em Volta Redonda, na Companhia Vale do Rio Doce, no Código de Minas de 1940, na Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco e, mais tarde, na Petrobrás. Sem falar nas mensagens para a criação da Eletrobrás. Por sinal que essas mensagens foram combatidas no Poder Legislativo, por meio de forças que atendiam a comandos provavelmente situados fora de nossas fronteiras, mas contando com prestimosos servidores, que eu sempre preferi denominar, não brasileiros, mas nativos. A mensagem criando o Fundo de Eletrificação foi aprovada sem demora, pois que iria produzir recursos que não faltava quem os quisesse destinar a empresas estrangeiras sediadas no Brasil.

A criação da Eletrobrás foi retida intencionalmente, não sei se na Câmara, ou no Senado – mais provavelmente no Senado – e ficou mofando sete anos, até se converter na Lei nº. 3.890 A, que foi, afinal, sancionada no governo de Jânio Quadros. E a Empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A. -Eletrobrás- só veio a ser realmente instalada pelo Presidente João Goulart. Nem há necessidade de recordar seus benefícios. Basta dizer que a sua presença afastou do Brasil tanto as subsidiárias da Bond and Share, como a Light, a poderosa Light, em cujo escritórios passavam os caminhos do poder público, na frase tão feliz do mestre João Mangabeira.

Pois que seria possível encontrar, dentro deles, de seus escritórios as principais auto-ridades da República. Até mesmo ex-Presidentes, descendentes de Presidentes, uma fauna imensa de gente muito bem apessoada e distinta. Alzira Vargas nos relata que também ela foi convidada para advogada da Light, quando acabava de se formar, e teve o bom senso de recusar, o que poucos fizeram, na longa permanência da empresa canadense em território brasileiro.

A Petrobrás, como sabemos, é a maior empresa da América Latina e uma das mais importantes do mundo. Não lhe faltam detratores e, sobretudo, pretendentes ao que se denomina privatização de empresas públicas. E confesso que até hoje não consegui entender a campanha que se faz teimosamente contra as estatais. Quando se trata de empreendimentos que exigem grandes capitais, só há possibilidade para duas soluções: ou com o Estado, ou com as multinacionais estrangeiras. Que nome devemos dar aos que optam pelas multinacionais estrangeiras? Discute-se muito se Getúlio Vargas foi, ou não, favorável ao monopólio estatal da exploração do petróleo. Decerto que o projeto, que ele enviou ao Congresso, em dezembro de 1951, não chegava ao monopólio, não obstante preparado por dois técnicos acima de qualquer suspeita, como eram Jesus Soares Pereira e Rômulo de Almeida. Também acredito que Getúlio, pessoalmente, não ocultava sua preferência pelo monopólio, como, pois, entender o projeto que enviou ao Congresso?

A resposta não seria difícil, embora não esteja apoiada em algumas deduções. Não tenho dúvida que se ele houvesse defendido a tese do monopólio, os partidos de oposição, sobretudo a UDN, que não o poupava, quebrariam lanças contra o monopólio. Excelente político, Getúlio sabia que a linha reta nem sempre é o caminho mais curto entre dois pontos. Muitas vezes, convém optar pelas linhas sinuosas, preferindo atalhos que possam conduzir aos fins desejados. Como a causa do monopólio era imensamente popular, depois da campanha do Petróleo é nosso!  o projeto apresentado abria margem para que a oposição procurasse aproximar-se das tendências populares. Daí o substitutivo Bilac Pinto. Mas antes dele, Euzébio Rocha já havia apresentado outro substitutivo, adotando também a tese do monopólio, e merecera a aprovação do próprio Getúlio Vargas. Por que negar a Getúlio Vargas a preferência pelo monopólio, que ele sempre propagara, e admiti-la na UDN, que nunca a defendera? E que estava certa a idéia do monopólio, é o que se pode concluir dos 30 anos decorridos desde a sua implantação. Basta considerar que os contratos de risco até agora não conseguiram encontrar uma gota de petróleo, e acabou também num imenso desastre a aventura da Paulipetro. Na defesa de teses nacionalistas, Getúlio sempre esteve atento e vigilante. Pode-se dizer que viveu, e morreu, por um Brasil grande, um Brasil confiante nas suas forças, um Brasil de olhos fitos no futuro.

O político Getúlio Vargas

Não posso terminar sem me deter no Getúlio Vargas político. Ao longo de minha vida encontrei muita gente fazendo política, mas quase todos me davam a impressão de diletantes. Suponho que só tem direito a essa classificação quem dedica, à política, todas as vinte e quatro horas de cada dia. E que, se vier a sonhar, será sempre sobre os temas que o fascinam. E que sabe colocar, acima de todos os sentimentos, o êxito de sua carreira. Não há pai, filho, esposa, amigo que o detenha. E que até foge de aventuras femininas, pelos feitiços que elas destilam. E Getúlio era assim, e nem sei explicar os motivos que o arrastavam, pois que não sentia a vaidade dos cargos que exercia, nem gostava do fausto, da ostentação, dos prazeres do luxo. Era sóbrio por natureza. Não sei qual a força que o arrastava para o poder. Creio antes num instinto, a que não sabia resistir. Pois que não queria saber de jóias, de riquezas, de bordados, de galões, de comendas e medalhas. Acredito que os aplausos o deixavam indiferente. Os aduladores não chegavam a ser ouvidos. Qual a força que o levou a demorar tanto tempo no poder? Quando muitos até se alegraram com o término de seu governo, pensando nas responsabilidades de que se libertaram.

Testemunha de fatos que acom-panhei de perto, não acuso Getúlio Vargas de haver promovido o Estado Novo. Creio que ele foi antes o beneficiário, de conspirações que outros promoviam. Mas Getúlio estava a par de tudo, e não fez nada para acabar com as conspirações. Permitiu que elas marchassem, facilitando até o jogo de forças contrárias, que soube estimular com inteligência e excepcional habilidade. O Plano Cohen não foi idéia dele, mas não contrariou os que o aproveitaram como argumento de intimidação. Talvez não fosse ele o criador de fantasmas, mas permitia que eles transitassem livremente, com um salvo-conduto especial. Limitava-se a sorrir e abrir a porteira para o seu aprisco, em que todos poderiam encontrar segurança e tranqüilidade. Tinha, para tudo isso, excelentes colaboradores, contando também com a discrição que afugentava palavras imprudentes, com que incompatibilidades se aprofundam, afastando amigos, e multiplicando inimizades irredutíveis. Não ignorava que o Estado Novo seria um período de transição, uma espécie de proteção contra a tempestade que iria desabar, num confronto inevitável. Esse é outro enigma. Se se deixasse levar pelas suas preferências pessoais, talvez optasse pela vida campestre, com uma cuia do chimarrão, numa casa humilde, como a em que residiu, no momento em que o foram buscar para a campanha eleitoral, em que venceu, sozinho, partidos arregimentados, e que pareciam donos do eleitorado.

Tinha-se a impressão de que, diante dele, os homens viravam bonecos, para que ele os manejasse como num teatro de marionetes. Mas aí estava o seu grande segredo, o de ocultar os cordéis com que movia os bonecos. O que nos levaria a pensar que estávamos diante de um mágico, ou de um feiticeiro. Talvez que a sua maior força fosse a tolerância, ou talvez a incapacidade de odiar a quem quer que fosse. Veja-se, por exemplo, o episódio da revolução paulista de 1932, que não tinha outro propósito do que afastá-lo do poder.

Vencido o movimento, a anistia veio fácil e espontânea, dois anos depois. Nem se criava qualquer obstáculo, quando a Assembléia Constituinte de São Paulo elegia Armando Sales para o governo do Estado, tendo sido ele um dos mais influentes revolucionários de 1932.

O autodomínio de Getúlio Vargas podia dar a impressão de indiferença ou de frieza, pois que não havia, mesmo na roda de sua intimidade, quem lhe percebesse os sentimentos. Não gesticulava. Não tinha explosões verbais. Possuía couraças contra os ataques mais veementes. Certa vez, em seu Município de São Borja, injuriado rudemente por um adversário, que não poupava doestos, Getúlio Vargas se limitava a responder com uma frase realmente lapidado, dizendo que só o ofendia quem recebesse, dele, o direito ou a faculdade de ofendê-lo. O que dava também a medida exata de seu desprezo, ou de seu desdém.

Por isso causou tanta surpresa o ato final de sua existência, com aquele suicídio que ninguém acreditava que fosse possível, numa natureza tão fechada, e que havia atravessado toda a vida sem uma demonstração de fraqueza, impenetrável e ao mesmo tempo impassível. O suicídio veio como um complemento de uma personalidade que amava o poder pelo que ele significava, pelo que ele traduzia em força e superioridade. Nunca se deixaria humilhar o poder que ele encarnava.

A mim, fascinado pela sua psicologia, o gesto me pareceu natural. Era a nota de sinceridade que até então lhe havia faltado, para o confronto com os heróis de Carlyle. E era, ao mesmo tempo, uma decisão política, com que ele oferecia a própria vida para salvar o programa que defendia, as idéias que vinha pregando. O certo é que, de um momento para o outro, os ódios desatados contra ele se encolheram. Os impropérios se calaram. As fúrias correram espavoridas. A revolta se transformava em apoteose. Todas as cabeças se curvavam, reverentes, diante daquele esquife que o próprio povo fazia questão de conduzir. Aquele tiro no coração restituíra o respeito de que ele nunca abdicara. E o seu epitáfio não precisou do mármore de um túmulo distante, pois que se gravou no coração do povo brasileiro. Não querem que o trabalhador seja livre? Pois ele se sacrificou para que fosse conquistada essa liberdade. Não querem que o povo seja independente? Pois ele morreu para que fosse possível essa independência.

E se estou aqui, para um depoimento arrancado do fundo de minha alma, e vejo o meu país sofrendo talvez a maior crise de toda a sua história, não sei concluir senão dizendo que, infelizmente, não merecemos, sim, não merecemos o sacrifício de Getúlio Vargas.