Edição 75
Furto e fraude de energia elétrica
31 de outubro de 2006
Braz Pesce Russo Diretor Jurídico da ABRADEE
Fatos que mobilizam há décadas os esforços das distribuidoras de energia elétrica são aqueles que dizem respeito às ocorrências de furto de energia elétrica e de fraudes perpetradas para o recebimento irregular dessa mesma energia. Costuma-se conceituar, nas exposições sobre o tema, que o furto da energia é o ilícito penal cometido por quem, não sendo consumidor, usa clandestinamente coisa alheia móvel. Já a fraude, seria a ação de locupletamento por quem, sendo consumidor, viola o sistema de medição para a obtenção de um registro menor que a quantidade de energia consumida. É o próprio Código Penal Brasileiro que equipara, no capítulo de Furto, que “equipara-se à coisa alheia móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.” Diz mais, que a pena de reclusão é de 2 a 8 anos além da multa se o crime ocorrer mediante “abuso de confiança ou mediante fraude”. Ora, raros são os casos de furto de energia elétrica cometidos sem que se rompa a confiança que o concessionário concede ao consumidor, quando lhe dá a guarda do equipamento de medição e, mais raros ainda, são as violações não serem perpetradas, a não ser mediante fraude aos lacres e fios condutores. Portanto, a par de se constituir numa prática delituosa específica, há ainda, nessa prática, contornos de capitulação nos crimes de periclitação da vida e da saúde, ao expor a vida de terceiros a perigo direto e iminente de uma descarga elétrica fatal.
Mas o ilícito não é só no campo criminal, o que seria punível e reprovável em todos os aspectos. À falta de punibilidade em razão da dificuldade de se apontar, com segurança, o autor do delito, torna a prática do furto e da fraude um ato incentivador de atos iguais. Ao lado da questão criminal e do risco de vida que essa prática acarreta, há a questão econômica que disso deriva e que, ao final, coloca em risco a preservação do equilíbrio dos contratos de concessão. A suspensão do fornecimento de energia elétrica nos casos de fraude ou de furto de energia elétrica vem se mostrando cada vez mais presente no dia-a-dia do Judiciário, tal o sucesso que os fraudadores vêm obtendo, com facilidade, na conquista de liminares diante da “fragilidade” da regulamentação que autoriza o “corte da energia”. Recentemente, a Agência Reguladora do Setor Elétrico (ANEEL) divulgou “que o furto de energia elétrica nas favelas do país alcança o índice de 70%”; vale dizer que apenas 30% das unidades consumidoras localizadas nas favelas são regulares.
Segundo dados levantados pela ABRADEE (Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica), as perdas comerciais, decorrentes do furto e fraude de energia elétrica, totalizam aproximadamente 15.000 GWh/ano, representando cerca de 5% de toda a energia gerada no país. Para se ter uma idéia de grandeza, esse montante de fraude e furto apurado equivale ao consumo anual do estado de Santa Catarina e corresponde a um valor próximo de R$ 4,5 bilhões/ano.
Traduza-se isso no quanto representa em evasão de tributos, notadamente o ICMS e o PIS/COFINS que deixa de ser recolhido aos cofres do governo. Verifica-se que os prejuízos experimentados pelas concessionárias distribuidoras de energia elétrica estão a cada dia maiores e que a fragilidade da regulamentação atualmente existente termina por tornar a situação ainda mais delicada frente ao poder judiciário, que não reconhece a concessionária como legitimada para a constatação da fraude e nem mesmo reconhece o poder impositivo da regulamentação disciplinada pelo órgão regulador ao consumidor. A questão é que a Resolução Normativa 456, da ANEEL, prevê, em seu artigo 72 que, constatada a irregularidade, seja lavrado um TOI (Termo de Ocorrência de Irregularidade) pela concessionária. Prevê, ainda, que deverá ocorrer perícia técnica a ser realizada por terceiro habilitado, caso o consumidor assim o queira, e, no resguardo do contraditório, determina a abertura de um prazo de 10 dias para apresentação de defesa do consumidor (artigo 78). Pois bem. Em cumprimento às normas editadas pelo órgão regulador, as concessionárias, ao constatar a fraude, têm colhido uma “concordância” do consumidor-fraudador no momento da inspeção, e logo em seguida, elabora o cálculo e encaminha a notificação ao consumidor que pode efetuar o pagamento ou apresentar sua defesa. Se indeferida a defesa, é notificado para pagamento sob pena de “corte”. E, é nesse momento que o consumidor vai a juízo, para obter liminar que suspenda o “corte”, alegando que a constatação é ato unilateral e que a concordância no TOI foi dada sem conhecimento das conseqüências. Por fim, negam a autoria da fraude, alegam que jamais poderiam ter feito o “gato”, uma vez que somente a concessionária tem acesso ao medidor e, diante disso, se socorrem do Judiciário que, sem nenhuma oitiva da outra parte, dá-lhe a cautela que, em muitos casos, transforma-se num verdadeiro “salvo-conduto” para o não pagamento de todas as contas futuras. E o restabelecimento da energia (ou a proibição de suspender seu fornecimento), sem nem mesmo delimitar esta continuidade às faturas postas em discussão, faz com que a concessionária preste seus serviços gratuitamente, mesmo que o consumidor continue a não efetuar o pagamento de contas regulares. O argumento invocado, equivocadamente, é da hipossuficiência, do ato unilateral da concessionária, da legislação anacrônica etc.. Bem, se vê que a questão é muito complexa. Na tentativa de encaminhar uma solução, algumas empresas passaram a utilizar o IPEM (Instituto de Pesos e Medidas), órgão oficial e especializado para fazer as constatações; e os resultados desta experiência vêm se mostrando positivos. Entretanto, é uma experiência insuficiente e insatisfatória, na medida em que órgãos dessa natureza não têm estrutura suficiente e necessária para acompanhar a enorme quantidade de fraudes e furtos que ocorrem diariamente. Mas, a semente de que a constatação da fraude é realizada por um órgão “isento”, já vem sendo aceito, por muitos juízes que entendem que, neste caso, a perícia não é unilateral e que, portanto, não há comprometimento do Termo de Ocorrência de Irregularidade apresentado. É um grande passo que se dá, mas, como se disse, ainda é insuficiente para a solução da questão.
Contudo, ainda é entendimento majoritário que “apesar do entendimento já firmado na primeira seção, no sentido da possibilidade de concessionária de energia elétrica suspender o fornecimento de seus serviços em razão de inadimplência de usuários, após prévio aviso, no caso em exame, essa jurisprudência não se aplica. Isso porque a concessionária apurou unilateralmente suposta fraude no medidor de energia elétrica sem o conhecimento do consumidor e passou a cobrar a diferença entre o real consumo apurado e o valor pago, culminando na interrupção do fornecimento de energia elétrica”. (AgRg no Ag 697.680-SP, Rel. min. Castro Meira, julgado em 18.10.05). Temos, portanto, nítidas, as dificuldades de solução deste conflito. Se por um lado o poder Judiciário entende frágil a norma regulatória que disciplina a apuração das fraudes, por outro, estão as concessionárias a elas adstritas e não podendo refugá-las. Assim, enquanto uma solução satisfatória, via legislativa, não ocorra, é preciso meios de estancar essa “sangria” que ocorre no setor. Ficar como está torna a situação altamente incentivadora à crescente prática ilícita. Hoje já existem “escritórios especializados em pedidos de danos morais” que, inclusive, já se tornaram “investidores”: “compram” as contas de consumo e pleiteam ressarcimentos em juízo. Prudente, ao nosso ver, seria o Judiciário tomar algumas medidas desestimuladoras dos abusos (como alguns magistrados vêm fazendo), obrigando a realização de caução do valor questionado, ou mesmo promover uma audiência prévia à concessão da liminar para oitiva das razões da concessionária, ou mesmo de tentativa de conciliação. Certamente, isso aliviaria, e muito, a pauta dos processos judiciais porque eliminaria 90% dos conflitos (somente restariam os que realmente estão sendo objeto de equívocos da concessionária), desestimularia a prática da fraude/furto, mitigaria o prejuízo imposto às concessionárias, elevaria a arrecadação tributária que hoje foge do Estado, mas, acima de tudo, estaria preservando o direito dos bons consumidores não estarem pagando pela conduta irregular dos maus consumidores.