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Fragmentos e reflexões jurídico-políticas sobre o direito e o estado no Brasil

31 de março de 2012

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Hans Kelsen, em seus escritos autobiográficos, reconhece que sua Teoria Pura do Direito haja se originado no fato de que ele “tenha chegado a essa visão porque o Estado que me era mais próximo e que eu conhecia melhor por experiência pessoal, o Estado austríaco, era aparentemente apenas uma unidade jurídica”[1]. Esse verdadeiro romance sobre a vida do grande jurista do século XX, “aquele Estado multinacional e multiétnico, que por tantos séculos prestou grande serviço à Europa, contendo conflitos e sustentando a diversidade de seus povos, era também o modelo real para a identificação entre Estado e direito, mas não porque o primeiro se sobreporia ao último, e sim porque o último daria substância ao primeiro”.[2]

Essa perspectiva é extremamente útil à compreensão do Brasil e de suas instituições jurídico-políticas. A ideia de que o Direito – e não o Poder –, o ordenamento jurídico – e não a Força –, e a norma – e não a Vontade do Soberano – conformam e modelam o Estado brasileiro há de ser compreendida sob esse signo histórico. A despeito de diversos momentos de ruptura da ordem jurídica no País, é possível compreender a diferenciação específica do Brasil em relação a outras nações de idêntica colonização, e a grandeza de seus fundamentos políticos. Mais ainda, evita-se o recurso retórico a explicações simplistas e a apelos em favor do abandono das linhas que sempre definiram a construção de nosso Estado de Direito.

Considero fundamental partir de algumas premissas cujo desenvolvimento teórico não pode ser dilatado aqui, dadas as limitações deste pequeno ensaio, mas que são importantes para a justificação teorética ora levada a efeito.

A primeira premissa está na função protetiva da ordem jurídica pelo aparato burocrático.

É muito vulgar a condenação, em textos especializados, do chamado bacharelismo e da importação da burocracia lusitana para o Brasil. Evidentemente, não se desconhece a perspectiva weberiana do elemento simbólico do poder burocrático, além de sua redução ao infinito, no que se refere à irracionalidade, sob a óptica kafkiana. Os berloques de linguagem e o pedantismo intelectual, elementos tão associados à chamada cultura bacharelesca, são geralmente opostos ao caráter dinâmico e progressista das denominadas Ciências Duras (Matemática, Física). Esses argumentos revelam preconceitos e mistificações.

O aparato burocrático permitiu o controle do Poder pelo Direito. A existência de rituais, procedimentos e o apego às formas jurídicas, não se desconhecendo os problemas de sua aplicação desvirtuada, foram elementos de extrema importância para a afirmação simbólica do Direito como delimitador de condutas e, passando-se para o fenômeno estatal, como alicerce da soberania e do reconhecimento social do Estado brasileiro. Como já tivemos a oportunidade de salientar, “uma das heranças mais significativas da tradição portuguesa em nossa cultura político-jurídica está no aparato burocrático, que dá sustentação à máquina administrativa do Estado brasileiro. (…) Historiadores insuspeitos como Charles R. Boxer reconhecem a qualidade da estrutura burocrática que Portugal legou aos componentes de seu antigo Império de Ultramar”.  Como nota visível dessa utilidade simbólica e funcional da burocracia a serviço da ordem jurídica, tem-se o desenvolvimento das chamadas carreiras jurídicas de Estado no País, cujas raízes deitam sua estirpe nas antigas corporações de procuradores dos feitos da Coroa e Fazenda Nacional, nos juízes de paz e nos juízes de fora, nos provedores, corregedores e desembargadores. Há, por assim dizer, “uma linha permanente de tradição, no sentido próprio do termo, a saber, da sucessão por entrega de um plexo de valores, estruturas e procedimentos de geração a geração. É esse savoir faire que se revela no quotidiano de nossas relações político-administrativas, enaltecendo a marca positiva desse passado que se faz presente”.[3]

Dado o caráter fragmentário destas reflexões, não é possível avançar muito nesse ponto, tão susceptível de desdobramentos dos mais ricos. Fique-se, contudo, com a anotação de que o fortalecimento ou enfraquecimento dessa estrutura burocrática, em larga medida, pode ser enxergado sob o pano de fundo de lutas entre agentes econômicos, poderes não-estatais ou núcleos burocráticos regionais (ilhas burocráticas, se assim se lhes pode chamar) contra uma certa noção de “estatalidade jurídica não-patrimonial”. Haveria, por conseguinte, um dilema existencial no Brasil, desde suas origens e que até hoje se conserva: a luta entre localistas e unionistas (com o paralelo histórico evidente com os textos de Hamilton, em The federalist papers) e o conflito entre estatalistas e patrimonialistas.

Nesses embates, em diversas ocasiões, o elemento político-simbólico (o Poder Monárquico, com sua face mais notória, o Poder Moderador) e o político-militar (os regimes de força, que empolgaram o antigo Poder Moderador) atuaram como forças de intervenção permanente.  Hoje, parece ser uma verdade pouco contestada que o poder simbólico se radicou no Judiciário, a semelhança do que se deu na Alemanha Federal, no pós-guerra.

Antes de se passar para a próxima premissa, que já se esboçou no parágrafo anterior, cumpre destacar um último ponto: o discurso de menoscabo ao poder de proteção (muita vez simbólica) da burocracia sobre o Estado de Direito é grandemente semelhante ao usado pelos regimes totalitários dos anos 1930, em face de seus antípodas democráticos. Em A invenção das tradições, obra coletiva organizada pelo historiador comunista Eric Hobsbawn, descreve-se o uso das alegorias e dos elementos cenográficos pelo fascismo, o nacional-socialismo e o stalinismo em contraponto à (re)construção dos mitos régios na Grã-Bretanha, que reelaborou cerimônias de bodas e exéquias reais.[4] A (re)construção de antigas formas (em larga medida, “imaginadas” ou “inventadas”) pela democracia britânica era a metáfora de uma tradição (e de uma estabilidade) do Estado de Direito contra a energia moderna de regimes autoritários. Hitler invadira a Polônia, sob o prestígio de uma fraude, por meio de ardis e ataques sem aviso prévio. Um arauto, com roupas medievais, proclamaria, em nome do rei, o estado de guerra contra a Alemanha, na entrada do Parlamento, seguindo as normas internacionais. Ao receber essa notícia, Hitler teria dito “essa será a última vez em que um país fará uma declaração formal de guerra”. Os agentes totalitários abominam as formas e os elementos simbólicos, que dissuadem a Força e que se prestam a uma teologia dos tempos modernos, na qual o Direito e o Estado ocupam posições centrais.

A segunda premissa está na existência de um conflito permanente de forças horizontais e verticais pelo controle do Estado e sua produção nomogenética (algo que, modernamente, parece se transferir para a função nomointerpretativa).

Como realçado anteriormente, é nítida a conflagração entre forças patrimonialistas e estatalistas. De partida, é imperativo afastar algumas tentações do reducionismo categorial, quando se usa dessas ferramentas terminológicas. Não se põem em causa aqui conceitos como livre iniciativa, modo capitalista de produção ou apropriação da força de trabalho pelo capital. A dinâmica marxiana e seus modelos, que, em muitos casos, simplesmente dão explicações novas a respeito de fenômenos antigos, como o uso da força pelo mais poderoso como mecanismo de supremacia de classe, não precisa ser invocada para o modelo aqui exposto. Ela tem sua valia e não se podem esquecer algumas de suas lições, sob pena de se cair em platitudes e obviedades. O certo é que sempre existiu, desde antes do nascimento  político do Brasil, a noção de que o Estado deveria ser pilhado e apropriado por determinadas forças sociais.  Poderíamos chamar esse fenômeno de conflito vertical, ou de “grande” conflito, porque ele se opera tanto no que se conhece por Estado-União, como no Estado-Unidades-federativas. Há símbolos desse “patrimonialismo”, alguns dos quais expressamente combatidos pela Constituição de 1988, como a nova ordenação jurídica dos serviços registrais e notariais (artigo 236, § 3o, CF/1988), com a imperatividade do concurso público e o não-reconhecimento judicial dos atos jurídicos contrários à nova ordem constitucional. Destaque-se, ainda, situações como: a) o reconhecimento da impossibilidade da usucapião de bens públicos (artigo 183, § 3o, CF/1988); b) a universalidade da investidura por concurso público (artigo 37, CF/1988). Em muitos casos, coube ao Poder Judiciário tomar parte nesses conflitos, como outrora já fizeram o imperador (por meio do Poder Moderador) e os presidentes da República (em momentos de crise institucional) e dar enforcement ao antipatrimonialismo. A noção do Estado como uma “viúva”, desvalida e sem protetores, é muito antiga e simboliza essa predatória relação de certos grupos sociais (em larga medida assimétricos) com o domínio do Governo. A apropriação do Estado, inclusive por processos democráticos, serviu, em muitos momentos, para legitimar práticas patrimonialistas.

Esse patrimonialismo, ressalte-se, não se limitava à dicotomia público-privado. As forças patrimonialistas, em diversas circuns­tâncias, apropriaram-se de partes do Estado para se imunizar contra a intervenção do próprio Estado. É esse o ponto de ligação entre os conflitos verticais, acima expostos, e os horizontais. A instalação de grupos hegemônicos setoriais ou regionais no Estado-Unidade-federativa era uma forma de patrimonialismo contra o Estado-União. Nesse sentido, muitos dos conflitos entre forças localistas e unionistas são meras projeções dos embates entre os que compreendem o Estado como um instrumento patrimonial e os que o desejam voltado para a construção interna de seus deveres constitucionais e para a afirmação (externa) de sua soberania.

Chega-se, assim, ao conflito horizontal. É esse o mais perceptível e historicamente evidenciado. Os pais fundadores do Estado brasileiro, quando da construção da independência em 1822, optaram por um modelo monárquico e centralizador. A experiência das vizinhas e recém-libertadas repúblicas da América espanhola foi deveras negativa. A ausência do poder simbólico da Monarquia, sustentáculo de um Império multiétnico, como o austro-húngaro[5], e a sucumbência aos apetites das forças localistas – as chamadas elites regionais – foram causas preponderantes do fracasso do projeto de uma “Grande América”, sonhado por Simon Bolívar. Por outro lado, a construção da unidade territorial norte-americana não poderia servir de modelo para o Brasil. Poucos percebem que os Estados Unidos nasceram como treze colônias – uma pequena faixa oriental  da América do Norte – e não como um imenso gigante territorial, como era o Brasil em 1822, um Império! Além disso, a chamada Guerra de Independência de 1776 (na verdade, 2 guerras, pois outra se daria em 1812) não passou de uma grande conflagração civil entre os colonos lealistas (ao rei Jorge III) e os favoráveis à autonomia em face de Londres. Tanto é verdade que houve, após a Primeira Guerra de Independência, uma migração em massa dos lealistas (derrotados) para o território do Canadá. E, em 1812, a Segunda Guerra de Independência  não passou de uma tentativa de impedir que o Canadá fosse incorporado aos Estados Unidos. Como cenário desses embates, os conflitos entre federalistas e republicanos, uma espécie de transposição para a realidade norte-americana dos que se chama aqui de conflitos horizontais.

A opção de 1822 é em tudo semelhante ao modelo habsburgo de um império centralizado, com fundamento na figura de um monarca, líder das forças armadas e sustentado numa ordem jurídica burocrática, de grande eficiência. A tentativa de cotejar o modelo republicano dos Estados Unidos de 1776 (uma nação minúscula, se comparada ao Brasil de 1822) com as escolhas feitas por ocasião de nossa Independência soam artificiais, para se dizer o menos. Em 1824, deu-se o complemento jurídico ao processo político de 1822. A Constituição Imperial de 1824 é um texto de elevada qualidade técnica e serviu com grande eficiência à estruturação do país como uma gigantesca unidade territorial. O conturbado processo constituinte, interrompido bruscamente pelo imperador D. Pedro I, produziu material de relevo para o anteprojeto de Constituição outorgada, cuja elaboração coube precipuamente ao Marquês de Nazaré, ao Marquês de Caravelas e ao desembargador Francisco Carneiro de Campos. De Caravelas, o marquês, participou ativamente nos debates da Assembleia Constituinte, como demonstram as atas, tomando posições em favor do centralismo e de muitos pontos normativos que até hoje influenciam o constitucionalismo brasileiro. Leituras históricas apressadas – e pouco afeitas ao Direito – tentam desmerecer a Constituição Imperial, como sendo um documento autocrático, mas esquecem que ela foi a alternativa possível em um conflito horizontal, cujo resultado está na vitória dos unionistas.

A participação popular, outro ponto negligenciado, deu-se com a votação da Constituição pelas câmaras de vereadores do Império, o que não deixa de ser curioso sob todos os aspectos.

Os reflexos desses conflitos horizontais até hoje se manifestam no Brasil. No Império, as forças unionistas, tendo o imperador, a burocracia e o Exército (em tudo semelhante ao que se dava no Império Austro-Húngaro) como seus principais símbolos, desenvolveram mecanismos de permanente defesa do projeto de 1822-1824. A nomeação dos presidentes de províncias era uma valsa política. Pernambucanos governando o Rio Grande do Sul.[6] Desembargadores mineiros em Tribunais sergipanos. Oficiais militares percorriam todo o país, misturando-se em quartéis e navios, unificando a nação recém-libertada. A troca de experiências, a construção idealizada de uma “comunidade nacional”, por meio de valores comuns, era o saldo desse processo de transferência de membros das elites políticas, jurídicas e militares pelas diversas regiões do Império.

Na sequência a esse período de consolidação da monarquia continental, deu-se a abdicação do imperador D. Pedro I, em larga medida pelo fracasso na campanha da Cisplatina, que esgarçaria os sonhos autonomistas da província de São Pedro do Rio Grande, e pelos problemas de composição dos quadros dirigentes do Império. Havia, ainda, o problema da transferência efetiva de poder dos elementos lusitanos para os genuinamente brasileiros, o que alimentava constantes dissídios entre as forças de sustentação do poder pessoal do imperador.

Os conflitos horizontais, contudo, permaneciam em tensão contínua. As quedas de sucessivos gabinetes imperiais eram um exemplo da necessidade de acomodação de forças e um imperativo político para que esses embates permanecessem no campo não-bélico. O exemplo das revoltas do período da Regência era permanentemente recordado: as divergências entre o modelo unionista e localista conduziram o país ao estado de guerra civil.

Esse processo ultrapassará o século XIX e, com a crise do modelo monárquico, cujo ápice (em uma perspectiva muito simplificada, reconheça-se) esteve na quebra da lealdade militar ao imperador, será reconvertido na República. Do poder moderador, passa-se ao estado de sítio, na Primeira República. Os militares, com o discurso unionista, ditado pela maneira como suas carreiras são constituídas, sob  o signo da “comunidade nacional”, assumem os mecanismos de equilíbrio de forças na federação.[7]

A redemocratização e o processo constituinte de 1987-1988 abriu espaço para o surgimento de novos atores no cenário dos conflitos horizontais e verticais, como jovens carreiras jurídicas de Estado (advocacia pública, v.g.) e para a ampliação expressiva do papel interventivo do Poder Judiciário, no que se refere ao patrimonialismo e ao sequestro do Estado-Unidade-Federativa por forças locais. A conflituosidade bélica, que nunca foi bem aceita pelo espírito brasileiro, desde sua formação nacional, e mesmo antes dela, aparentemente foi abandonada de todo e ao Judiciário é que se cometeu o antigo papel de moderação simbólica, em cuja base, está a crença no mito, pois, como bem sustentou Francisco Campos, sua força decorre “da crença no seu valor teórico, pois um mito que se sabe não ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira”.[8] O enfraquecimento da força parlamentar – fenômeno universal nos dias de hoje – tornou mais visível esse novo mister político-jurídico do Poder Judicial, especialmente do Supremo Tribunal Federal, como já tive a oportunidade de salientar em voto proferido no MS no 30.260.[9]

Recentes julgamentos do STF, como a ADI no 4.638 (Caso CNJ), dão a oportunidade para se identificar os elementos que historicamente têm pautado esses conflitos horizontais e verticais, destacados na segunda premissa desse ensaio. Veja-se o que tivemos a oportunidade de salientar em nosso voto, por ocasião do referido julgamento:

Contudo, ao longo da Primeira Regência, verificou-se uma absoluta falta de uniformidade na disciplina do Judiciário brasileiro, do Judiciário nacional, surgindo a necessidade de se promover o assim denominado regresso. Foi, então, editada a Lei de Interpretação do Ato Adicional, de 12 de maio de 1840, capitaneada pelo Visconde de Uruguai, Paulino José de Sousa, lei essa que estabeleceu uma hermenêutica restritiva da autonomia das assembleias provinciais, cujo cerne era exatamente o Judiciário. Naquela época, já se indagava: Quem deve disciplinar o Judiciário? As assembleias locais ou a nação? Deve-se ter uma disciplina uniforme ou uma disciplina disforme, respeitando as vontades locais? Na época, o rótulo do debate era “conservadores versus liberais”. Os conservadores defendiam uma maior autonomia da nação, do poder central perante as províncias; enquanto os liberais defendiam, ao argumento de que isso seria mais democrático, que, por estarem mais próximas do povo, às assembleias locais deveria caber disciplinar o autogoverno da respectiva província, a sua auto-organização, inclusive quanto ao Judiciário.

Com a República, esses rótulos mudaram de liberais e conservadores para federalistas – aqueles que defendem um maior poder das assembleias estaduais – e republicanos – aqueles que defendem o maior poder da Nação.

Como se vê, esse debate perpassa a história brasileira até os dias atuais e a criação do Conselho Nacional de Justiça é resultado desse processo histórico. Os embates entre os defensores dessa nova forma de controle do Poder Judiciário e seus adversários foram marcados por uma diferenciada visão das atividades de correição, planejamento e organização da magistratura. De um lado, aqueles que acreditavam na suficiência do modelo então em vigor.

De outro, os que percebiam o esgotamento das estruturas constitucionais e legais, cuja mantença implicaria a contestação do Poder Judiciário como instituição apta a corresponder às expectativas do povo brasileiro.[10]

 

Convém apresentar um sumário das ideias expostas nesse ensaio, que é uma peça literária sem grandes ambições, como disse Ortega y Gasset, “a ciência sem prova explícita”.

O Brasil contemporâneo convive com os benéficos resultados de um aparato burocrático de origens quinhentistas, ainda pautado por uma ideologia simbólica e pelo sentido de dever. Ibsen Noronha anota, com base em sólida pesquisa de fontes históricas, que “a cultura jurídica no Brasil começou a manifestar-se logo quando da chegada da primeira missão jesuítica enviada pelo rei D. João III”.[11]

A posse de um conjunto orgânico de servidores  é um dos grandes méritos do Brasil e permite distingui-lo de outras nações, cujos processos históricos e econômicos contemporâneos são muito similares. A segurança jurídica, por exemplo, seria um mero enunciado retórico, lastreado em documentos normativos sem conteúdo, acaso não existissem as carreiras de Estado, unidas pelo consenso em torno de uma “comunidade nacional imaginada”, como diria Benedict Anderson.[12]

O “grande” conflito – estatalistas e patrimonialistas – e o “pequeno” conflito – localistas e unionistas – são duas manifestações sócio-jurídico-políticas que deitam raízes na formação do Brasil. E, não é possível compreender a realidade atual do Poder Judiciário e de sua (aparente) crise sem que esses dados sejam colocados em mesa. Sob esse aspecto, cabe um chamado aos responsáveis pela investigação científica em Direito, História e Ciências Sociais, a fim de que se abandonem certas premissas e que se busquem novos horizontes para um Brasil que parece ter finalmente se reencontrado com sua vocação continental. A centralidade do Direito é um reflexo desse novo momento vivenciado no país. A solução de controvérsias por meios não-bélicos – um dos grandes avanços do constitucionalismo da Nova República – é a retomada da antiga tradição imperial brasileira nesse campo. Cabe agora compreender que o Brasil precisa se libertar de amarras a seu desenvolvimento social, por meio da liberação de energias do Estado, para a realização de uma política maciça de expansão do status civitatis.[13]



 

1 KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Introdução de Mathias Jestaedt. Estudo introdutório de José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior. 3. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2012. p. 72.

2 DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estudo introdutório à terceira edição brasileira. In. KELSEN, Hans. Op. cit.  p. XXXV.

3 DIAS TOFFOLI, José Antonio. Apresentação. In.  GUEDES, Jefferson Carús; HAUSCHILD, Mauro Luciano; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Coords).  Conclusões do II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado. Brasília: IP, 2011. p. 11.

4 HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Orgs). A Invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

5 Não se deve esquecer que a imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro I e mãe do futuro imperador Pedro II, era uma Habsburgo. Sua participação no processo de independência é destacada por muitos historiadores. Mais do que um vínculo puramente genealógico, não deixa de ser interessante essa ligação do Império do Brasil com o Império Austro-Húngaro.

6 Como já assinalamos em manifestação de voto: “(…) foi a grandeza, principalmente, do José Bonifácio em pensar, nosso patriarca, o estado unitário, que a solução do estado unitário manteria a unidade das várias elites regionais, e, com isso, a única solução seria a Monarquia e o Império, sob pena de acontecer com a nação brasileira o que ocorreu com as colônias espanholas. E o Imperador nomeava para presidir as províncias autoridades nascidas em outra localidade, portanto alienígena àquela dada elite local” (MS 30260, Relatora  Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2011, DJe-166 30-8-2011).

7 E desenvolvem uma nova mitologia em torno desse exercício do poder do Estado, como bem aponta José Murilo de Carvalho (Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.  p. 167): “(…) desde a Guerra do Paraguai e, sobretudo, desde a República, os militares se sentem donos absolutos do patriotismo e credores da gratidão da pátria”.

8 CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. Brasília: Senado Federal, 2001. p. 16.

9 “Não há uma elite, um liame único nacional, ideológico, por conta da Federação e da complexidade; Federação essa que deu origem à criação deste Tribunal como poder moderador da Federação, que é a competência nossa prevista no artigo 102 da Constituição” (MS 30260, Relatora  Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2011, DJe-166 30-8-2011).

10 Manifestação de voto na ADI 4638, Relator Min. MARCO AURÉLIO,  2.2.2012, acórdão pendente de publicação.

11 NORONHA, Ibsen. Aspectos do Direito no Brasil Quinhentista: Consonâncias do espiritual e do temporal. Coimbra: Almedina, 2008. p. 85

12 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.

13 “Reduzindo-se o âmbito do exame desse processo histórico ao campo correicional, é evidente que a missão do CNJ era romper com a inércia, a falta de estrutura e as limitações de ordem sociológica das Corregedorias dos Tribunais.  Essa viragem foi uma das marcas mais significativas do novo regime jurídico-disciplinar inaugurado pelo CNJ. Na realidade, ele subtraiu o controle da moralidade administrativa da magistratura dos órgãos e das elites judiciárias locais, para colocá-lo em poder de um elemento externo, nacional, descomprometido com as particularidades regionais. É o avanço do elemento republicano sobre o federalista, naquilo que se concerta com a eficiência na solução de desequilíbrios de poder e de uso do Direito por grupos específicos. Mas, como disse Victor Hugo, em Os Miseráveis, a marcha da História é inexorável. Quando muito se consegue retardá-la, mas, quando as energias do tempo irrompem, os efeitos dessa retomada são muito mais drásticos. Se, como disse o autor francês, a reação deteve a mudança nos campos de batalha de Waterloo,  em 1815,  e no Congresso de Viena, a revolução fez-se duplamente implacável em 1848.” (Decisão,  MS 29187 MC / DF – Relator Min. DIAS TOFFOLI, 15/12/2010).