
Claudio Lamachia, presidente nacional da OAB
Quando assumiu a presidência do Conselho Federal da OAB, em fevereiro de 2016, Claudio Lamachia não imaginou que em menos de um ano e meio de gestão enfrentaria a maior crise política vivida pelo país, levando a entidade a protocolar dois pedidos de impeachment em curto período — pouco mais de um ano —, assim como o pedido de afastamento de um presidente da Câmara dos Deputados, além de colocar a entidade em rota de colisão contra instâncias de poder.
O tom de forte contrariedade com o ambiente político presente em Brasília pôde ser constatado logo em sua posse, quando levou o Conselho Federal da OAB a recomendar o pronto afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, o então todo-poderoso Eduardo Cunha.
Menos de dois meses depois de sua posse, Lamachia protocolava na Câmara dos Deputados o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Ao mesmo tempo em que posiciona a maior e mais importante entidade de classe brasileira na linha de frente do combate à corrupção e à impunidade, Lamachia vem administrando com maestria as pautas da advocacia, como o amplo direito de defesa e o respeito às prerrogativas profissionais.
Ele é taxativo ao falar sobre a crise política e os abusos que têm sido verificados no desenrolar dos fatos: “Fora da lei não há solução”, dispara. Também chama a atenção para os perigos de soluções mágicas e superficiais que possam ser vendidas como panaceia para uma crise que classifica como antes de tudo moral, com graves reflexos políticos, econômicos e sociais. “O Brasil só escapará a essa tragédia, que as pessoas sensatas têm o dever de evitar, se não descuidar do único antídoto capaz de debelá-la: a Justiça”, recomenda.
Confira a entrevista de Claudio Lamachia:
Justiça e Cidadania – Como o senhor enxerga esse momento político que vive o Brasil?
Claudio Lamachia – O Brasil passa por mudanças e tem a oportunidade de estabelecer em seus sistemas democrático, político e eleitoral e do ponto de vista ético um novo patamar. A grave crise é reflexo da ruína de um sistema eleitoral permeado pela corrupção endêmica. A corrupção é a chaga de maior gravidade no Brasil; suga recursos fundamentais para saúde, educação, segurança, justiça e desenvolvimento social. Os fatos demonstram o péssimo nível de setores da classe política, mas é preciso celebrar a chance de defender nossa democracia, valorizando a importância dos bons políticos.
Justiça e Cidadania – A OAB está em posição de destaque, o que, claro, a coloca também como alvo. Um dos exemplos é a constante tentativa de classificar toda manifestação da OAB como um ato vinculado a ideologias políticas. Como o senhor percebe essas tentativas?
Claudio Lamachia – A Ordem dos Advogados do Brasil não se movimenta de acordo com paixões políticas ou partidárias. Aliás, tenho afirmado que o partido da OAB é o Brasil e sua ideologia deve ser a Constituição Federal. Desqualificar a outra parte é uma estratégia antiga e normalmente acaba revelando mais sobre quem se utiliza dessa prática, expondo a falta de argumentos robustos para uma defesa mais efetiva. Quando assumi a OAB, a entidade era considerada de esquerda. Quando protocolamos o impeachment da presidente Dilma, fomos chamados de “golpistas” e de “reacionários”. Quando pedimos o impeachment de Temer, voltamos a ser chamados de petistas e comunistas. Essa é uma tese sem lastro moral, de fundo meramente utilitário, que, levado ao extremo, revoga o artigo 5º da Constituição, segundo o qual “todos são iguais perante a lei”. A crise que já há alguns anos sacode o país, antes de ser política, econômica e social, é moral. A profusão de agentes públicos envolvidos em ilícitos, como jamais se viu em qualquer tempo, distanciou a sociedade daqueles cuja missão institucional é representá-la. Quando isso acontece, tem-se a desordem, e o descrédito das instituições leva à anomia e, por essa via, à desobediência civil, ao caos. O Brasil só escapará a essa tragédia, que as pessoas sensatas têm o dever de evitar, se não descuidar do único antídoto capaz de debelá-la: a Justiça, e isso deve ser feito sem messianismos de qualquer espécie, respeitando princípios constitucionais muito caros para todos nós, como o devido processo legal, a ampla defesa e o direito ao contraditório. Sem isso, não haverá justiça, mas justiçamento. A tentativa de dar cunho ideológico, partidário ou corporativo a esse processo de saneamento moral não faz sentido, venha de onde vier. Moral não tem lado, nem ideologia — tem princípios. Justiça não é de direita, nem de esquerda; simplesmente é, nos termos da lei. Ela está acima do conflito das partes, do duelo dos partidos e das ideias, exatamente por ter a missão de garanti-los mediante regras claras e universais — ou as regras valem para todos, ou não valem para ninguém —, e é isso que queremos, que elas sejam para todos, independentemente da sua posição no cenário atual.
Justiça e Cidadania – O senhor recebeu críticas por uma suposta pressa no trâmite do pedido de impeachment do presidente Temer. A OAB se precipitou?
Claudio Lamachia – Não nos precipitamos em momento algum.
A celeridade dada ao caso, que é muito grave e envolve a mais alta autoridade do país, é a mesma dada na situação semelhante, ocorrida em 2016, quando a OAB discutiu o pedido de impeachment de Dilma Rousseff. No caso da ex-presidente Dilma, o ministro Teori Zavascki, do STF, retirou sigilo da delação de Delcídio do Amaral em 15/3/2016. No dia 17/3/2016, a OAB convocou a reunião extraordinária para o dia 18/3/2016. Também no dia 17, as seccionais se reuniram para debater o impeachment. Os pedidos de impeachment da presidente Dilma Rousseff e do presidente Michel Temer possuem muita similitude no processo interno da instituição. Para analisar ambos, a OAB requereu ao STF o levantamento do sigilo das ações em curso. Nos dois casos, as seccionais da OAB nos estados consultaram seus conselhos sobre o posicionamento a ser tomado e reunião extraordinária foi convocada para que o Conselho Federal analisasse os pedidos de impeachment. As votações foram semelhantes. No caso de Dilma, 26 das 27 bancadas (cada bancada representa um estado) aprovaram o pedido de impeachment. Com Temer, por 25 votos e uma ausência (do Acre), ocorrida por falta de voo. Abrimos espaço para que defensores dos presidentes fizessem uso da palavra. Demos o mesmo espaço de defesa para ambos, mas temos de lembrar que o devido processo legal e o contraditório pleno vão se realizar no Congresso Nacional.

Presidente da OAB Nacional, Claudio Lamachia, entra com pedido de impeachment do Presidente Temer
Justiça e Cidadania – O Brasil enfrenta hoje uma crise de representatividade das instituições democráticas?
Claudio Lamachia – O Brasil tem uma democracia consolidada, com instituições sólidas. A crise, antes de ser política ou econômica, é ética e moral. As turbulências que enfrentamos podem estar mais fortes neste momento em razão de uma conduta nada elogiável de setores do Poder Legislativo. Lamentavelmente, o presidente da Câmara dos Deputados se recusa a analisar os pedidos de impeachment, atrasando a vida do país e agravando a crise, que prejudica a sociedade. As instituições precisam ser rigorosas, e a aplicação da lei, seja pela Câmara ou por qualquer outra instituição, não pode ter cores ou paixões partidárias. Quem exerce mandato eletivo precisa ter compromisso com a sociedade. Do contrário, se o compromisso maior for com alianças políticas ou grupos de amizade, é preciso pedir para sair e deixar a vaga para quem está comprometido com o trabalho em favor da causa pública.
Justiça e Cidadania – O senhor diria que estamos vivendo o fim da era da impunidade?
Claudio Lamachia – Vivemos, sem dúvida nenhuma, um período de depuração, com exemplos claros de que uma mudança salutar está ocorrendo. No entanto, precisamos de uma mudança urgente no número de cargos com proteção de foro. Como bem lembrou o ministro Luís Roberto Barroso, da maneira atual o foro de prerrogativa redunda na impunidade. Tornou-se ao longo dos anos um mero privilégio, um escudo que cria uma casta de cidadãos privilegiados perante a Justiça à custa da sobrecarga dos tribunais e em detrimento dos interesses da sociedade. Fato incontroverso dessa realidade é a constante preocupação dos governos em proteger seus aliados com o intuito de preservação não apenas destes, mas em inúmeras vezes de si. Não se trata aqui de expor os tribunais superiores ou desqualificá-los; trata-se apenas de uma constatação óbvia de que o tamanho da demanda é muitas vezes superior à capacidade de efetivar os julgamentos em tempo hábil, o que gera algo extremamente perigoso: a impunidade. Uma alternativa à farra atual é que seja estabelecido um mecanismo de proteção às instituições democráticas que confira prerrogativa de foro às poucas pessoas que realmente necessitem dela. A proteção deve ser ao cargo, não a seus ocupantes temporários. É preciso que as deformações causadas pelo atual modelo, que incentiva a impunidade, sejam corrigidas.
Justiça e Cidadania – O senhor acredita que a democracia brasileira está em risco?
Claudio Lamachia – O momento é delicado por inúmeros fatores. O colapso dos sistemas partidário e eleitoral brasileiros precisa ser analisado e tratado com enorme cuidado por todos nós. A ameaça mais evidente ao Estado Democrático de Direito que percebo é a possibilidade de ocupantes momentâneos do poder usarem as instituições para se proteger das denúncias de que são alvo e fazer alterações perenes no arranjo institucional com o único objetivo de resolver problemas pessoais e do presente. Outra grave ameaça à democracia decorre indiretamente das falhas no sistema representativo e está atrelada à sensação de impunidade predominante na sociedade. É preciso refletir e atuar contra o impulso de algumas autoridades públicas que caem na tentação de agir à margem da lei durante a mais grave crise institucional vivida pelo país desde o fim da ditadura militar. Não existe fim nobre capaz de justificar a tomada de decisões contrárias à legislação, como é o descumprimento de regras estabelecidas para a persecução penal. A lei existe para todos e assim deve ser aplicada. Qualquer proposta divergente desse valor republicano apenas contribui para jogar o Brasil no mais do mesmo da lama que nos trouxe até aqui. O Brasil é um país profundamente agredido pela corrupção e pelos desvios cometidos por parte dos detentores do poder e de funções públicas.
Justiça e Cidadania – A Operação Lava-Jato tem cometido abusos? A advocacia, de maneira geral, tem sido alvo de abusos?
Claudio Lamachia – Em mais de uma oportunidade, a OAB foi a público e aos tribunais manifestar de forma veemente contrariedade ao desrespeito às prerrogativas da advocacia, por exemplo. Por isso é pauta prioritária da OAB aprovar lei que penalize o desrespeito das prerrogativas constantes na Lei 8.906, de 1994. Além de uma pauta corporativa, a defesa irrestrita ao devido processo legal, ao direito de defesa e à presunção de inocência são princípios imperativos e inegociáveis para a advocacia e o Estado Democrático de Direito. Mais do que uma convicção, é nosso papel constitucional fazer essa defesa com clareza. Por esse motivo, a OAB apresentou ao STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o uso indiscriminado das conduções coercitivas sem que antes haja sequer uma intimação. Nenhum cidadão pode ser submetido a medidas ilegais e de tamanho constrangimento sem que haja rigoroso cumprimento da lei. Qual o sentimento de um cidadão de bem frente a seu círculo social quando retirado de sua casa na madrugada e conduzido coercitivamente a uma delegacia para prestar depoimento? O que pensarão aqueles que assistiram a esse ato? É evidente o sentimento de condenação em relação à opinião pública! Não se combate um crime cometendo outro crime. Ninguém, inclusive as autoridades do estado, pode agir contra a lei. São inúmeras, também, as ocorrências de constrangimentos impostos aos advogados com o objetivo de enfraquecer a representação de seus clientes — grampos telefônicos em conversas sigilosas entre advogados e clientes são recorrentes. É preciso que as autoridades dos mais altos escalões deem o exemplo para que esse tipo de situação pare de acontecer no cotidiano do país. Do mesmo modo como deve ser combatido o assalto aos cofres públicos, é preciso também combater a corrupção dos que promovem um ataque ao Estado Democrático de Direito se colocando em posição de criar e aplicar as próprias leis, à margem da Constituição e do arcabouço legal oficial. Todos nós queremos combater a corrupção e a impunidade, mas o futuro de nossa sociedade depende da preservação das instituições e do sistema de direitos e garantias. Do contrário, quando a crise acabar, estarão em escombros as instituições que servem de pilar para o desenvolvimento do Brasil. Nesse caso, a imprevisibilidade será perene, e não apenas momentânea, como é hoje. Fora da lei não há solução!