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Fim do conto de fadas

20 de dezembro de 2012

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Em meados de janeiro de 2009 (o original é de novembro de 2008), o Presidente eleito da nação mais poderosa do planeta (ainda) toma posse. Os adivinhos e futurólogos de sempre passam a definir o que será a Era Obama e, como já se tem admitido em amplo conceito, é conveniente retomar o raciocínio de que a história serve para transitar entre o passado e o futuro, com as ponderações do presente. O tempo é um só. É o tempo. As teses fervilham a respeito do fenômeno político mundial.

Em lugar do mergulho na irresistível maré do achismo, tantas são as vertentes a serem levadas em consideração para este episódio inédito no mundo ocidental, que a eleição de um presidente norte-americano negro estimula raciocínios e justifica previsões. Nesta altura, deve-se perceber que o melhor é recolher a média das opiniões abalizadas, para que se possa concluir a viagem em direção à esperança. Vejamos alguns pontos cuja aparência surrealista servirá para uma breve conclusão final.

“Future is no longer unpredictable”.

Eu lera em criança um romance de Julio Verne, vinte mil léguas submarinas … aquele gabinete misterioso logo me evocou várias gravuras representando aposentos reservados do Capitão Nemo.

Neste momento, por alguma razão especial, os tradutores do futuro, cujas obras do passado vieram realizar sonhos, devem ser revisitados.

Não se há de esquecer que, para o uso desse mecanismo, em regra, a mente humana se distancia dos fatos quando lhe são adversos ou de difícil compreensão:

History … is indeed little more than the register of the crimes, follies, and misfortune of mankind (Gibbon).

O homem é um bípede incompreensivo, alimenta-se de idéias feitas e desnorteia diante do novo. A história é o mais belo romance anedótico. Mas que tem o passado com a história? Toma dele fatos e personagens e os vai estilizando ao sabor da imaginação artística dos historiadores. Só isso.

E se assim é, para a análise de todo este grande romance em que se transforma a eleição do senador Barack Obama, é bom voltar ao passado dos Estados Unidos da América do Norte para a confirmação de que não se pode simplesmente pensar em conciliação étnica daqui por diante, sem os comemorativos das fórmulas eugênicas de “melhoria” da raça, até porque a predominância branca persiste na manutenção do seu status quo.

Do branco era pois esmagadora e de molde a não arrastar o americano a ver no negro um perigo sério. Mas com o proibicionismo coincidiu o surto das idéias eugênicas … deu-se a ruptura da balança. Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiam em avultar a quantidade. Foi a maré montante do pigmento. Para este modo de conduzir a antropologia, não faltaram sequer restrições que melhoravam a qualidade do homem para eliminar malformações físicas ao estilo espartano.

Este procedimento separatista e expulsivo não está totalmente extirpado da moderna ciência norteamericana. Ainda há pouco tempo, todos leram sobre reivindicações de comunidades negras que denunciaram experiências biomédicas realizadas com seus integrantes.

É o país, afinal de contas, do Jim Jones e das metralhas escolares, desferidas por alunos enfadados com tanto progresso. Era também uma solução frequentadora de sérios e longos estudos, o que não está também longe da memória,

“Final solution” (by Hitler)

(…) Que a solução branca era expatriar o negro …. Queriam os brancos a expatriação dos negros para o … Vale do amazonas … exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas.

É neste ambiente de perspectivas projetadas no futuro que surge

“Guess who is coming to dinner” ( Stanley Kramer – 1967)

(…) Na cena americana um vulto de excepcional envergadura: … o negro de gênio. Tinha a figura atlética do senegalês dos nossos tempos, apesar da modificação craniana sofrida por influência do meio… era esse, aliás, o tipo predominante no país inteiro, e cada vez mais acentuado, depois que a interrupção da corrente migratória permitiu o evoluir étnico, não perturbado por injeções estranhas. Até na tez levemente acobreada começava a transparecer nos americanos a misteriosa influência do ambiente geográfico.

Estava assim a nascer o país de larga escala mestiça, de que Jefferson foi um dos mais ativos protagonistas e o senhor Barack Obama, certamente, não está longe deste aspecto degradé. A própria cena política da grande potência americana, de uma certa forma, assimilava a realidade:

Os velhos partidos democrático e republicano haviam se fundido num forte bloco … mesmo assim, não se via seguro da vitória, porque o partido contrário, o feminino, dispunha de maior número de vozes.

A mulher também passou a ter a sua vez, em concomitância com a ascensão negra.

Quem era essa bicha? … uma chefa que insistia na sua candidatura e agora com mais probabilidade de vitória visto como era possível que o grande líder negro se deixasse levar pela sedução de seus argumentos.

Oh, hillary! Oh, palin! Mas a eleição, que se aproximava, (…) dependeria, pois, exclusivamente da atitude do grande negro.

O que passou a ocorrer nessa projeção é que:

“The chance is now”.

O eleitorado branco está cindido, e agora, mais que nunca vai funcionar a massa negra como fiel da balança dos destinos da América.

Nesta altura, o futuro se materializava num sistema de informação em que os

(…) Jornais nada relembrativos dos de hoje eram impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as casas. A conseqüência lógica foi uma grande transformação da vida. O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem.

Que houvesse tela plana de gigantescas medidas a compor paredes de home theater.

Urgia tomar providências quanto ao problema étnico.

A permanência no mesmo território de duas raças díspares e infusíveis perturbava a felicidade nacional. A idéia do expatriamento para o Vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a cidadania americana por outra qualquer.

Alguma coisa precisava ser feita diante desta inclinação de tomada do poder. Não faltou quem pensasse em desfazer a parcela mais visível do desgosto:

O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar.

O que só se dizia (e ainda se diz) em reunião familiar restrita era:

A mim chega a me repugnar o aspecto desses negros de pele branquicenta e cabelos carapinha. Dão-me a idéia de descascados.

Como se vê, o passado sangrento não se esfumava, o assalto, a chacina, os incêndios no Mississipi continuavam a engolir casas, igrejas e esperanças. Havia a longa viagem que fizeram os homens e mulheres válidos, algemados e postos em canga que não sairá jamais da lembrança. É o relho nas costas, o látego no lombo.

Com estas lembranças, o candidato da raça negra se apresentou.

Chegara, afinal, a crise prevista há séculos e de maneira surpreendente. A hipótese que acaba de realizar-se creio que jamais passou pelo espírito de um americano branco ou preto … o fato está consumado. É um desafio; uma luva lançada ao rosto da raça branca, a qual nos cumpre dar o troco.

Permanece entre os partícipes deste cenário bicolor o ressentimento que não se apaga.

Houve um pleito e as urnas libérrimas conferiram a vitória a um cidadão elegível… não um feliz aventureiro político, mas uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos.

Ainda nas reuniões familiares ficava o ar perplexo de quem é surpreendido pelo rumo do destino. Mas com a persistente noção interna de que

“Evil above all”.

Acima da América está o sangue.

As mentes continuaram a planejar a fórmula de suplantar o impasse e, numa espetacular configuração consoladora, sob o mote

“There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy”. (Shakespeare – Hamlet) Como há razões de estado, também há razões de raça que nos cumpre ouvir e atender.

Nesse espaço de tempo, os integrantes do conselho suprapartidário já haviam incrementado a fórmula do embranquecimento. O português, aqui para os nossos lados, usava o seu próprio arsenal físico com a miscigenação que multiplicava escravos. Lá, apesar de Jefferson, que usou da metodologia lusitana, a que se dedicou longa e reconhecidamente Sua Majestade, enviado de Deus, defensor perpétuo do Brasil, por aclamação dos povos, D. Pedro I, amicíssimo do Chalaça e conquistador vitalício de Domitila, outros planos foram desenvolvidos, sendo que, um deles, adotado em larga escala pelos precursores de Michael Jackson, levaram um cientista aos extremos das reações químicas com o ômega:

Ao estudo do cabelo do negro, esperançado em descobrir meio de alisá-lo e torná-lo sedoso e absolutamente igual ao do da raça branca. Os raios ômega, de sua descoberta, tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com três aplicações apenas, o mais rebelde pixaim tornava-se não só liso como ainda fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco.

Nem se pense que a sistemática ficasse apenas para os idos de séculos passados. Ainda de acordo com o oportuno periódico espanhol El País, “quando os Estados Unidos enfrentam o repto histórico de eleger presidente o negro Barack Obama contra o branco John McCain, sai à luz uma parte da história mais obscura desta nação, uma história que representa a perfeita metáfora de todo esse debate. O passado escravista dos antepassados de McCain narra, como poucos episódios, a magnitude do que está em jogo (…) Entre dezenas e milhares de mulheres e homens negros, que com seus trabalhos fizeram ricos os Estados Unidos, encontra-se uma família que até hoje usa o sobrenome McCain, sem excluir a possibilidade de mescla, como revela Lillie McCain. ‘Conociendo como trataban los amos a los esclavos me resultaria cuando menos poco común que no la hubiera habido”. O que fica subjacente é a invencibilidade da hipocrisia. Isto nenhum Obama pode contornar.

Estava, pois, resolvido o problema. Não havia, ao menos em aparência, o desprazer da presença negra a ameaçar o poder.

Cabeleireiros novos surgiam em todos os cantos… não davam conta do recado. As negras, sobretudo, viviam num perpétuo sorrir a si próprias, metidas dentro de um céu aberto. Passavam os dias ao espelho, muito derretidas, penteando-se e despenteando-se, gozosamente. O seu enlevo ao correrem as mãos pelas mechas macias com as omegadas levava-as a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha.

A técnica do branqueamento chegara ao auge da sua eficiência e a fórmula “igualativa” resolvera o inconveniente estético.

Como pode perceber — se neste quartel alguém estiver a ler o artigo — há um desencontro entre as frases e períodos postos em destaque.

Até aqui, o texto foi mera repetição comentada do que já está escrito há quase oitenta anos!

Daí uma certa desconjunção do movimento verbal, com a manutenção intacta das palavras do gênio. Monteiro Lobato, no final da década de 20, do século passado, imaginou a eleição de um presidente negro norte-americano e de suas vicissitudes, usando na obra os pensamentos destacados nos excertos reproduzidos. Não deixou de incluir, com visão de Julio Verne, em suas conjecturas futuristas, aspectos inimagináveis então como o feminismo e a informática. Competia-lhe, também, mesmo com o risco de má-compreensão quanto à sua tendência hoje tida como racista, advertir que este dia da vitória teria, em suas perspectivas antecipadoras, um determinado final.

É hora de recordar que o senhor Barack Obama, hoje, 10 de novembro de 2008, ainda não tomou posse. É preciso ressaltar, como se colhe de momentosa apreciação lançada por Francisco Basterra, no El País de 8/11, próximo passado, que “o novo presidente norteamericano se defronta com problemas imensos, senão irresolúveis, maiores ainda do que a sua grande vitória”. O fabuloso conto de fadas terminou e Obama já não tem sapatos de cristal nem vara de condão. O articulista, com poder de síntese encantador, relembra as prioridades governamentais de gata borralheira, a começar pela reconstrução da América, através da recuperação da confiança no sistema econômico.

Invocando Franklin Roosevelt, Basterra traz à tona a tese de que a presidência norte-americana “é, sobretudo, um lugar de liderança moral”. Mesmo tendo logrado exponenciar, neste presente alvissareiro, a auto-estima do país e do mundo, convém avisar ao Senhor Presidente: não se deve deixar de estar pronto para receber a contrapartida (que virá), a começar pelas esquerdas progressistas européias. Como diz o pensador do El País, “dar a volta por cima da crise econômica, evitando uma profunda recessão, restabelecendo o equilíbrio orçamentário requereria um taumaturgo”. É oportuna a advertência: “Obama já sabe (tomara que sim) que não poderá satisfazer as enormes expectativas que suscitou, em seu país e em todo o mundo”.Em situação menos constringente, o jornalista lembra: “John Kennedy se definiu um idealista sem ilusões”. Este comentário, que se inspira nas reminiscências da obra de Monteiro Lobato, é para suscitar a firme esperança de que o desfecho deste sonho não siga a tendência oferecida ao caso pela oportuna antevisão do autor brasileiro: eleito presidente no ano de 2228, o herói negro lobatiano, que

(…) Se omegara e o seu aspecto impressionava agora mais do que nunca, tornara-se um admirável tipo de branco artificial, diverso dos brancos nativos.

E, na véspera do dia da posse, recebe a visita inesperada do presidente ainda em exercício, que lhe comunica, com a mão sobre seu ombro, com expressão carregada, de piedade comovida:

Sim, o presidente… o branco que vem assassinar-te.

Desnorteado, o líder eleito quer saber como a promessa será cumprida:

Que arma escolhe para a missão que o traz, presidente…?

Veneno dos bórgia ou a lâmina de aço.

E o líder assassino responde:

Trago na boca a palavra que mata. Quando o corisco fulmina a sequóia, a árvore solitária continua de pé, porém outra.

E, com esta metáfora, continuou,

(…) Não subirás os degraus da Casa Branca… lá não cabe sansão de cabelos cortados.

Impaciente com o mistério ameaçador, o presidente eleito exige revelação da palavra que mata e o líder branco, para terror do herói eleito:

Tua raça foi vítima do que chamarás a traição do branco e do que chamarei as razões do branco.

Os raios ômega esterilizam o homem.

“We often give the enimies the means of our own destruction”.

(Aesop)

O herói negro, na obra lobatiana, morre misteriosamente no gabinete, sem tomar posse.

Os sórdidos assassinatos de Lincoln, Kennedy, Luther King não foram tão hipocritamente sutis. A fórmula dispensou a estupidez sangrenta utilizada por Booth, Lee Oswald e James Earl Ray.

“You don’t need fire bomb noise; blood stained daggers, or chemical poisonous silence poise … to kill hope”.

Duas ou três considerações finais. A primeira delas é que a obra de Monteiro Lobato ia caindo no natural esquecimento, não fosse a oportunidade que as editoras, em especial a Editora Globo, exumaram, diante da coincidência com os fatos reais. Não eram muitos a se lembrar deste livro.

Em segundo plano, e com escusas pela empáfia, mal oculta pelos painéis em inglês e educadamente repelida por Bermudes, que lhe destinou condescendente “silêncio obsequioso” inverso, quem sabe alguém mais não estará, a esta altura, prevenindo o
líder Barack Obama de toda a dimensão da ameaça, daí o título que deve ter aguçado alguma curiosidade, como se espera dele.

Por fim, o que estimula a dar a público este lembrete sobre a literatura nacional, é fazer justiça a um brasileiro genial, competente, visionário, antecipador de lutas memoráveis, cujo alto conceito e reputação talvez diminuíssem-lhe a fatalidade da pecha de racista, que não lhe suprimiria, porém, o valor, até porque, ao menos na leitura de O Presidente Negro, não se chega a saber exatamente qual era a sua coloração sócio-política-antropológica.

Ao vencedor, as batatas … (Machado de Assis – Quincas Borba) — Obama, get someone to explain you the meaning.

Resolveu, como o eventual interessado na leitura de obra premonitória poderá ver, terminar o romance com um irônico beijo de Barrymore.