“Falta realizar a Constituição de 1988”

5 de outubro de 2021

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Entrevista com o Relator-Geral da Constituição Cidadã, Senador Bernardo Cabral, por ocasião do aniversário de 33 anos da Lei Maior do País

O que precisamos para alcançar a “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” de que fala o preâmbulo do texto constitucional? “Falta o que defino como realizar a Constituição, tarefa superior pela qual são responsáveis os agentes políticos dos três Poderes da República”, resume o Relator-Geral da última Assembleia Nacional Constituinte, Bernardo Cabral – bem definido por seu amigo de longa data, o jornalista Orpheu Salles, como a “alma” da Constituição Federal de 1988.

Essa visão assertiva e crítica foi construída durante uma longa trajetória de dedicação ao serviço público, que começou cedo. Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas aos 21 anos, Bernardo Cabral foi advogado, delegado, promotor de Justiça, chefe de Polícia e secretário de Segurança Pública no seu estado de origem. Aos 27 anos foi nomeado chefe da Casa Civil do Governo e, em seguida, procurador do Estado do Amazonas. Aos 33 foi eleito deputado estadual e aos 35 deputado federal, cargo no qual, porém, permaneceu por apenas um ano, porque teve o mandato cassado pelo Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, pelo incômodo que causava à ditadura com as opiniões que emitia na tribuna e nos meios de comunicação.

A vocação para a liderança levou-o ao cargo de presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mas a sua maior contribuição à República viria no final de 1980, quando com os direitos políticos restabelecidos foi eleito para compor a Constituinte. Posteriormente, Bernardo Cabral seria ainda eleito senador e serviria o País como ministro de Estado.

“Era preciso, então, timoneiro à altura da desafiante empreitada de construir nova ordem constitucional, capaz de reunir num só bornal conhecimento técnico, liderança e experiência; haveria de trazer consigo os brilhos da lucidez, e da acuidade intelectual, a marca do descortino, o pendor nato para a conciliação e o respeito irrestrito à alteridade”, homenageou Orpheu Salles, fundador da Revista Justiça & Cidadania, em editorial que comemorou os primeiros 25 anos de vigência da Carta Cidadã.

Nessa entrevista, com o desassombro de quem conhece o “edifício democrático” a partir dos seus alicerces e do alto dos seus 89 anos, com um olhar ainda aguçado e atento, o jurista amazonense apresenta sua visão sobre as alterações sofridas pela Constituição nas últimas três décadas e sobre as omissões dos agentes políticos dos três Poderes que, em sua opinião, impedem que algumas das mais elevadas aspirações dos constituintes possam alcançar a plena efetividade. 

Revista Justiça & Cidadania – Com a perspectiva que os últimos 33 anos permitem, quais foram afinal os principais avanços da Constituição Federal de 1988?
Senador Bernardo Cabral – Esta, verdadeiramente, é uma Constituição cidadã. O exame sumário de seus Títulos reforça tal convicção. Eis os principais avanços: expressa consagração do respeito aos direitos humanos como princípio fundamental; o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o habeas data, o mandado de injunção, a garantia do devido processo legal, o mandato de segurança coletivo, a imprescritibilidade de certos delitos gravíssimos, etc.; a consagração constitucional dos direitos fundamentais do trabalhador, com particular referência ao fortalecimento do sindicato e à ampliação do direito de greve; o fortalecimento e aumento de atribuições do Legislativo, que é a casa do povo, deslocando o Executivo da posição majestática, antes detida; os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidas às comissões parlamentares de inquérito; a reformulação da partilha tributária, de sorte a viabilizar a Federação; a elaboração, por vez primeira, de uma estrutura integral da seguridade social; a total reformulação da disciplina fundamental da educação e da cultura, assentando a amplitude de seus fins e a generalização de seus beneficiários, priorizando o sistema público como destinatário dos recursos arrecadados da população; os capítulos absolutamente inovadores e exemplares da comunicação social, ciência e tecnologia, desportos; o do meio ambiente, primeira consagração mundial do tema em sede constitucional, com a dignidade de direito público subjetivo, de natureza difusa; o combate sem trégua à corrupção, por meio do fortalecimento do Ministério Público; a preocupação específica com o idoso, a criança, o adolescente e o índio, todos enfim justamente considerados como titulares de atenção especial; a revalorização da família, com o reconhecimento de seu novo perfil e a abolição das discriminações entre os filhos; e o fim da censura.

RJC – Tivemos também retrocessos?
BC – A derrubada pelo Plenário do sistema parlamentarista de Governo, aprovado na Comissão de Sistematização. O texto do instituto da desapropriação para fins de reforma agrária, que ficou aquém do Estatuto da terra, do Governo Militar. O sistema financeiro nacional, com a aprovação dos incisos I, II, III e suas alíneas; IV, V, VI, VII, VIII e seus parágrafos, do art. 192. A forma pela qual foi feita a repartição das receitas tributárias. Atribuir competência aos estados e Distrito Federal para instituir impostos sobre as operações relativas à circulação de mercadorias. A dubiedade na participação das entidades federativas no resultado da exploração de petróleo ou gás natural. A aplicação dos impostos de certas operações interestaduais caberem ao estado de origem. A não instituição de mecanismos de financiamento para programas de ciência e tecnologia e de fomento à pesquisa em saúde. Determinados artigos que não deveriam figurar no texto constitucional e sim em legislação infraconstitucional.

RJC –  A “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” mencionada no preâmbulo da Carta Cidadã é mera utopia ou uma possibilidade ainda ao nosso alcance? O que falta para garantir maior efetividade a tão nobres aspirações?
BC – Falta o que defino como realizar a Constituição, tarefa superior pela qual são responsáveis os agentes políticos dos três Poderes da República; os congressistas, porque lhes cabe o dever, até aqui indiferente, de complementar e integrar o texto da Constituição; os magistrados nacionais, especialmente alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, porque há dispositivos constitucionais cujas virtualidades não foram exploradas pelo Judiciário; e, finalmente, o titular da Presidência da República que, lamentavelmente, vem mantendo o vezo eventual da hegemonia do Executivo, dando-lhe ares de presidencialismo imperial, quando mais salutar seria realizar integralmente o programa normativo da Constituição.

RJC – Com o arquivamento do relatório da Comissão Afonso Arinos pelo Presidente José Sarney – que se opunha à opção pelo parlamentarismo – a Constituinte teve que começar do zero, um trabalho hercúleo diante da sede de direitos da sociedade naquele momento, após um período de arbítrio que durou 21 anos. O que foi mais difícil no começo?
BC – O primeiro ponto a destacar diz respeito ao perfil do órgão ao qual foi atribuída a feitura do pacto fundamental. Diversamente do que antes ocorrera, e até em contrariedade ao que desejado por alguns, deliberou-se por partir do nada, para a elaboração de uma Lei Maior. Preferiu-se, à solida estaca de um anteprojeto – formulado por um jurista ou uma comissão deles – a abertura da senda constituinte a partir do próprio povo, seus anseios, suas ideias, suas necessidades, suas convicções.

Algumas centenas de brasileiros receberam mandato, neste embutida a representatividade constituinte. Como essa legitimação era haurida e conferida sem limitações, que não as do próprio ato convocatório, decidiu-se pelo mais difícil e mais autêntico: estruturar aos poucos, tijolo sobre tijolo, piso sobre piso, o grande edifício da Constituição. Abriu-se mão da comodidade do pré-moldado e das estruturas pré-fabricadas, em nome da realização da edificação mais conforme à realidade do Brasil e dos brasileiros.

Para tanto, elegeu-se um método a ser utilizado pelo Congresso Constituinte que privilegiou a espontaneidade das contribuições ao invés de adotar um texto inicial, como disse antes, a partir do qual trabalharíamos. Era essa metodologia extremamente controvertida, devido às suas características democráticas. Realizou-se amplo levantamento das aspirações nacionais, expressas pelos constituintes e também pelo próprio povo através das emendas populares. Nesse estágio, o objetivo era termos um documento que refletisse a consciência da maioria do povo.

O mais difícil foi montar uma estrutura composta de subcomissões e comissões temáticas, que dariam uma visão da realidade  brasileira que se mostrou específica e necessariamente parcial. Como resultado, temos hoje um documento no qual as diversas partes refletem diferentes posicionamentos ideológicos e, portanto, de difícil articulação numa proposta unificada. Tratou-se porém, apesar das críticas suscitadas, de um trabalho extremamente profícuo, que permitiu que soubéssemos aquilo que setores da sociedade majoritariamente tinham a propor.

RJC – Como foi o seu processo de escolha como relator-geral?
BC – Ao invés de ser o relator-geral uma escolha do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte ou do Líder do PMDB, Ulysses Guimarães e Mário Covas, respectivamente, ela partiu da bancada “pmdebista”, então majoritária. Os candidatos eram três: Fernando Henrique Cardoso, Pimenta da Veiga e eu. A eleição transcorreu em dois turnos. Na primeira votação, Fernando Henrique foi eliminado por obter apenas 81 votos, enquanto Pimenta da Veiga e eu conseguimos 86 votos, cada. Na segunda votação, Pimenta da Veiga teve 90 votos e eu alcancei 111 votos da bancada. Assim, tornei-me o único relator a ser eleito pela própria bancada do PMDB.

RJC – Uma crítica frequente é a de que a Constituição é longa demais, com seus 245 artigos? O que “sobrou” e o que faltou colocar na Carta?
BC – O seu texto é longo em função da época em que foi elaborado, não se pode esquecer o seu instante histórico. É que participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, revanchistas, funcionários públicos demitidos ou aposentados pelos atos institucionais, etc., que, portanto, contribuíram para esse “tamanho excessivo”. Com a agravante de estarmos saindo de um período obscurantista, sem ter sido possível prever que o muro de Berlim cairia logo depois, o comunismo seria implodido e a dicotomia que separava o mundo em regime comunista (então URSS) e regime capitalista (EUA) daria lugar à globalização da economia. De qualquer sorte, recordo que o texto saído das comissões temáticas era composto de 2.500 artigos, os quais foram reduzidos para 245 e, assim mesmo, impossível de produzir um mais enxuto.

O que faltou na Carta foi o grande erro cometido pela maioria dos constituintes, na votação em Plenário, ao derrotar o sistema parlamentarista de governo. Erro, aliás, pela vaidade de uns, ambição de outros e incompreensão de muitos, uma vez que os presidencialistas mantiveram o instituto da Medida Provisória e, com isso, o resultado funesto da transformação do Presidente da República no papel de usurpador das funções do Congresso Nacional.

RJC – O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previa uma revisão constitucional cinco anos após a promulgação, o que não ocorreu. Será essa a causa da pródiga produção de emendas constitucionais? Ficou a Constituição à mercê dos que querem alterá-la movidos por interesses meramente circunstanciais?
BC – É razoável supor que a “pródiga produção de emendas constitucionais” transformou a Constituição em veículo para emendá-la (mais de algumas centenas, parecendo um “canteiro de obras”), “por interesses meramente circunstanciais”, à exceção honrosa das que surgem em favor da coletividade.

RJC – O sistema de freios e contrapesos delineado em 1988 continua adequado à manutenção da harmonia entre os poderes nos dias de hoje?
BC – A meu ver, sim, porque vem garantindo o regime democrático e contornando as crises políticas costumeiras do passado.

RJC – Quais são as semelhanças e as diferenças no ambiente político de hoje, em Brasília, em comparação à época em que o senhor foi deputado constituinte, senador da República e ministro de Estado?
BC – Se formos retroagir no tempo, entendo que as diferenças são maiores, uma vez que, na atualidade, os que formam o ambiente político – salvo honrosas exceções – são pessoas muito mais voltadas para suas ambições pessoais do que para os interesses da sociedade.

RJC – Vivemos um momento turbulento, que envolve inclusive conflitos entre os Poderes. O senhor enxerga algum risco de quebra da normalidade democrática?
BC – A meu ver, não. Até porque não é de bom senso que uma comunidade política tente aprovar uma ruptura político-institucional – e, consequentemente uma ditadura – apenas para servir ao mundo da miudeza do varejo das ambições inqualificáveis de um “salvador da pátria”. 

RJC – O Supremo Tribunal Federal tem cumprido o seu papel como protagonista da defesa da Constituição e dos valores democráticos?
BC – O Supremo Tribunal Federal perdeu aquela reverência de que desfrutava no passado não tão longínquo – comecei a advogar em 1955, sou da turma de 1954 e frequento o STF desde 1960. O que é mais grave: recebe críticas as mais diversas, em virtude de alguns incidentes de percurso. Todavia, é da sua competência “precipuamente, a guarda da Constituição”, como se vê no art. 102.

RJC – A Câmara dos Deputados acaba de votar o projeto do Código Eleitoral, que agora segue para o Senado. Qual é a sua opinião a respeito das mudanças propostas, como a quarentena eleitoral para magistrados e a censura para a divulgação de pesquisas às vésperas das eleições?
BC – Mudança com a finalidade determinada de prejudicar alguém, diretamente, ou de utilizar da “censura para a divulgação de pesquisas às vésperas das eleições”. Sou contra!

RJC – Todas as vezes em que se discute a reforma política ou eleitoral esbarra-se no fato de que essa iniciativa cabe ao Congresso, cujos membros foram eleitos pelo sistema em vigor. Acha factível que os atuais deputados e senadores tenham o espírito público e a vontade política necessários ao aperfeiçoamento do modelo atual? Quais caminhos devem ser percorridos para que tenhamos mudanças positivas nesse cenário?
BC – Participo da corrente que não crê seja factível que os atuais congressistas tenham o necessário espírito público para se levar a efeito uma reforma política ou a reforma do sistema eleitoral. Daí, respondo à indagação com muita simplicidade. Basta que os detentores do Poder tenham ânimo – ou vontade política – para tanto e, sobretudo, respeito ao povo brasileiro. Vale dizer: vergonha na cara!

RJC – Umas das promessas cumpridas pela Constituição de 1988 foi a promoção do acesso à Justiça. Hoje, contudo, há mais de 100 milhões de processos judiciais em tramitação, demanda que excede em muito a capacidade da nossa Justiça, apesar de, ou justamente por isso, ser o nosso Poder Judiciário um dos mais produtivos do mundo. Qual é o caminho para conter a judicialização excessiva?
BC – A judicialização excessiva tem motivado o emperramento do Poder Judiciário porque ela não consegue esconder, suficientemente, certos vícios de origem: a) a notoriamente baixa qualificação das levas de bacharéis em Direito expelidas por faculdades de Direito de todos os calibres, cujas deficiências curriculares, docentes e discentes, vêm sendo expostas enfaticamente pelos exames da OAB; b) a aguda deficiência numérica de magistrados; c) a contaminação política de alguns prestadores de jurisdição; d) as deficiências no processo legislativo, a jorrar ao País leis imperfeitas, contraditórias, irrefletidas, assistemáticas e pontuais; e) os descabidos e superados privilégios processuais das entidades estatais; f) a predominância do formalismo e do hermetismo processuais; g) a irracionalidade do sistema recursal; e h) os abusos processuais do Poder Público, já apontados, em emendas de acórdãos, até pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Destarte, “o caminho para conter a judicialização excessiva” não será o das soluções improvisadas, mas o sacrifício de todos, eis que o acesso à Justiça é uma das questões mais importantes da moderna história republicana. O nosso Poder Judiciário, sem dúvida um dos mais produtivos do mundo, precisará sempre de muita colaboração e compreensão.

RJC – Considerando vossa relevância para o Brasil, o senhor está envolvido em novos projetos?
BC – Não. Após 50 anos de vida pública, agora o meu único projeto é dedicar-me à esposa Zuleide, ao filho Júlio, aos cinco netos – Márcia, Ana Carolina, Julinho, Gabriela e Giovana – e às duas bisnetas, Maria Júlia e Isabela.