Ética para um Futuro Melhor

31 de outubro de 2011

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Concluímos, no mês de julho, as celebrações do tricentenário de instalação das três primeiras vilas mineiras, evento de grande relevância para a história jurídica brasileira. Na mais antiga delas, hoje cidade de Mariana, nasceu o advogado Cláudio Manoel da Costa, em 5 de junho de 1729.

Minas Gerais, o estado que não teve infância, se apresentou no calendário nacional quase dois séculos após o descobrimento do Brasil. Esta porção territorial veio se mapear adulta a partir das forças e dos sonhos advindos de terras paulistas, baianas e de outras plagas. Antes, havia apenas o país do Oceano Atlântico. Muitas léguas distanciavam aquelas montanhas e vales das águas salgadas singradas pelos portugueses até que, quase ao findar do século XVII, a notícia da existência de metais preciosos arrastasse, em sua direção, o eixo econômico vigente no litoral.

Como é comum em situações semelhantes, fluxos migratórios, numa escala impensável, e em brevíssimo tempo, ocuparam o território, o atual Quadrilátero Ferrífero. Assim, o êxito que se lastreara na economia açucareira, do pau-brasil e de outros produtos, tomou outro rumo e provocou um fenômeno social e econômico mais típico e importante do período colonial. Culturas heterogêneas se acomodaram com os embates de grupos étnicos acentuadamente diversos. Formou-se um universo social de natureza complexa e pluralista que se movimentava numa direção surpreendentemente nativista e democrática. Havia algo imponderável permeando aquela composição humana, capaz de nutrir em todos o que é intrínseco ao indivíduo: o desejo de ser livre.

Se, por um lado, o coletivo gera conflitos, por outro, produz interesses comuns, não importando o agente catalisador. Um Brasil que ainda não modelara seu rosto passaria a fazê-lo a partir das montanhas, dos vales e rios onde se esconderam, por milhões de anos, o ouro e outras preciosidades universalmente cobiçados. O passar do tempo provaria esta verdade. Germinava, ali, a semente da liberdade a se transformar na árvore coletiva da independência. É fato que as pessoas, pela força necessária da reciprocidade ou por uma osmose humana, física e espiritual, constroem desideratos comuns.

Esta visão preliminar nos abre a cortina de um tempo em que o direito da força se sobrepõe à força do direito. As Minas, em suas primeiras décadas, eram um palco da coragem e da volúpia. Os bandeirantes, sedentos do ouro, não se mostravam, em geral, afeitos ao trabalho das minas e das jazidas a que tinham direito explicitado na Carta Régia de 18 de março de 1694. Em grande parte abandonadas, vinham sendo apropriadas por forasteiros, apelidados de emboabas, que dispunham de africanos já experientes em mineração. Formou-se, assim, outro contingente enriquecido pelo ouro que, cada vez mais, ocupava o espaço dos legítimos titulares, os bandeirantes.

Como a força se sobrepunha à titularidade jurídica, deu-se a Guerra dos Emboabas, sendo estes vencedores. No caso, o agente catalisador era a contraposição ao acúmulo de funções do provedor e administrador das Minas, Borba Gato, exercendo este um poder despótico, extorquindo e humilhando. Por isso, se levantaram os indesejáveis, ditos forasteiros, sob a liderança de Manoel Nunes Viana e tomaram o poder. Embora não contrário à Coroa, nascia um governo bafejado de legitimidade porque oriundo da base popular.

Esses episódios sacramentam, na primeira década do século XVIII, em Minas, o conceito que Hegel, tempos após, consagraria como “o progresso da consciência da liberdade”. A primeira Guerra Civil das Américas, finda em 1709, inaugura o sentido coletivo de independência. Foi um ano marcante para a História porque se experimentou, pela vez primeira, um traço da identidade nacional.

Ante a nova realidade, Lisboa vislumbra uma solução para atender seus interesses e trazer a paz para o território. Designou para a árdua missão Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho. Tornou-se ele o novo Governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro com a obrigação de se fixar no arraial do Ribeirão do Carmo. Cumprida a tarefa, a imediata decisão do Governador foi instituir, em 1711, as vilas, sendo a primeira a Leal Vila de N. Senhora do Carmo, declarada capital da Capitania. A terra de ninguém e dos conflitos passou a ter um governo metropolitano, reconhecido pelo povo que se fazia representar pelos “homens bons”, os vereadores eleitos em 4 de julho do mesmo ano. Num país, vocacionado para a democracia, que, não obstante, já experimentou, até recentemente, momentos lúgubres e tenebrosos, aquela urna, que recolheu os votos da primeira eleição, peça ainda existente em um dos museus de Mariana, é, sem dúvida, um sacrário de exemplo, merecedor de todas as vênias. É a pia batismal da democracia.

Menos de duas décadas após a instalação das vilas, nasce, em Mariana, no sítio da Vargem do Itacolomi, o futuro advogado Cláudio Manoel da Costa. Vindo ao mundo, não conhecera “a terra de ninguém” porque já se vivia sob a égide da lei e da representação política. No entanto, o episodio da Guerra dos Emboabas o marcaria por tê-lo vivido sua mãe Tereza, nascida e residente no arraial de Guarapiranga, atual Piranga, centro dos bandeirantes que fora alvo de ataque dos forasteiros. O pai João Gonçalves da Costa, português e, portanto, emboaba, se fixou no sítio da Vargem no território da Vila do Carmo que, junto da vizinha Vila Rica, se constituía no mais significativo e importante centro urbano e aurífero da Capitania. Por suas terras, passava o Rio Gualaxo do Sul, rico em ouro. Embora de família modesta em Portugal, consegue amealhar um razoável patrimônio, suficiente para dar aos filhos certo grau de instrução, inclusive mantendo-os em Coimbra, oportunidade de que Cláudio usufruiu.

Após preparar-se no Colégio Jesuíta do Rio de Janeiro, foi admitido, em 1º de outubro de 1749, na Universidade de Coimbra, cursando Cânones, pois, pensava em ordenar-se sacerdote, desejo não realizado. Voltando a Minas, em 1754 é nomeado almotacé junto à Câmara de Mariana. Sua carreira pública prossegue, em 1758, com a posse como terceiro vereador da Câmara de Vila Rica, época em que o Senado lhe incumbe confeccionar a carta topográfica da Vila. Cláudio Manoel não se casou formalmente, mas manteve, desde 1759, uma relação permanente com Francisca Arcângela de Souza com a qual teve cinco filhos.

Foi procurador da Coroa e da Fazenda no governo de José Antônio Freire de Andrade, em 1760, além de ter sido secretário de Minas neste e no governo de Gomes Freire. Exerceu a função de juiz ordinário na Câmara de Vila Rica em 1762, juiz mais moço (1781) e juiz mais velho (1786). Sua vida é um rosário de títulos e funções públicas de alta relevância, chegando a juiz das demarcações de sesmarias. O rei lhe concedeu pátria comum e o Hábito de Cristo, premiando-o pelos relevantes serviços prestados ao Reino.

Era, de fato, um cidadão respeitado na Capitania e fora dela, sendo sua capacidade reverenciada por todos, como escreveu o provedor da Fazenda em 1766, João Caetano Soares Barreto, não só na literatura, mas também nos estudos de Direito. “Creio, afirma o provedor, que nesta capitania não há quem o exceda”. Como advogado, registra a historiadora Laura de Mello e Souza reproduzindo o citado provedor, “só aceitava causas justas, consoantes às leis do Reino, rejeitando todas as que só se poderiam defender com sutileza e artimanhas”. Cláudio foi um dos profissionais do Direito mais requisitados nas Câmaras de Mariana e Vila Rica, havendo, ainda hoje, registro de sua atuação em dezenas de processos. Sua formação jesuíta e escolástica é patenteada no elenco de livros de sua biblioteca, uma das três maiores existentes, à época, em Mariana e Vila Rica. Sua geração de bacharéis é anterior à Lei da Boa Razão, de 1769. Não obstante, segundo a citada Laura de Mello, “sua invocação do costume remete ao uso que a Lei  da Boa Razão fazia do direito natural quando alegava que, na falta de lei específica, a razão natural servia de direito subsidiário.”

Cláudio foi um realizador tal como se aplica atualmente o termo empreendedorismo na economia. Dividindo-se entre o intelectual da Literatura e do Direito e homem de governo, soube consolidar essas múltiplas atividades e ampliar, em larga escala, o patrimônio oriundo do pai. A década de 1760 foi-lhe afortunada, tanto que pode recolher, em 1764, à Real Casa de Fundição 40$000 réis em barras de ouro. Antes, para instruir seu pedido do Hábito de Cristo, havia levado à Casa de Fundição 120 quilos de ouro para demonstrar seu nivelamento aos defensores do Reino, condição sine qua non para obter o título.

Além de ter sido procurador da Ordem Terceira de São Francisco, advogava para os contratadores. Tais funções lhe rendiam ótimos honorários. Com tanta renda, proveniente de sua profissão e da atividade mineradora, tornou-se credor de extraordinária clientela de cujo rol fazia parte o Visconde de Barbacena conforme afirmou, em palestra recente na Academia Mineira de Letras, o Cônsul Geral de Portugal, em Minas Gerais, Dr. André de Mello Bandeira.  Barbacena governou Minas ao tempo da Inconfidência.

Feitas essas considerações desde a descoberta, a instalação das primeiras Vilas, o estabelecimento do estado de direito, o nascimento e a vida de Cláudio Manoel, é de se perguntar onde se incluirá o tema do seu assassinato. Figura respeitada e reverenciada no século XVIII, natural seria se fosse procurado para integrar o grupo discordante dos métodos abusivos na cobrança dos tributos, em um momento em que as minas se esgotavam visivelmente. Todavia, a questão não se restringia à tributação. Nos anos 70 e 80 do Século XVIII, formava-se uma elite cultural na região aurífera com aqueles egressos do Seminário de Mariana, criado, em1750, pelo primeiro bispo, Dom Frei Manoel da Cruz, e com diversos jovens mandados por suas famílias a estudarem na Europa, principalmente em Coimbra, Lisboa, Bordeaux, Mompellier, Edimburgo. Portavam ideias novas e muitas informações sobre a realidade política que, a passos largos, ia-se desenhando no Velho Continente e na América do Norte. Intelectual, Cláudio sentia-se feliz em ter em sua companhia jovens bacharéis como Inácio José de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga. Ajuntaram-se ao grupo o cônego da Sé de Mariana, Luís Vieira da Silva, o padre Carlos Correia de Toledo, os doutores José Pereira Ribeiro e Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos e o intendente do ouro, Francisco Gregório Pires Bandeira e muitos outros. Mais tarde, e já às portas da Conjuração, figuram nomes tidos como importantes no movimento, como José Álvares Maciel e José Joaquim da Maia, do qual se registra o episódio do encontro com o embaixador norte-amaricano Thomas Jefferson. Este representava seu país junto à França e a ele Maia recorrera para apoio ao projeto da independência brasileira. O certo é que, embora nem todos citados, este contingente estava inoculado do desejo de uma pátria livre. Eram pessoas que liam Voltaire, Montesquieu, Raynal, e já conheciam as novas leis vigentes nos Estados Unidos, já então, libertos da Grã-Bretanha.

Assim, havia outros ingredientes motivadores da sedição, não apenas o tributário. O presente texto não tem por pauta a Inconfidência Mineira, matéria por demais conhecida e lavrada em compêndios, teses e artigos ao longo de mais de dois séculos. Fracassado o movimento, foram presos os conjurados. Um morreu antes de ser sentenciado, com evidências irrefutáveis de assassinato, o mais velho e ilustrado de todos, Cláudio Manoel da Costa. Porque conveniente, a história oficial deu-lhe o fim por suicídio, algo incoerente com a verdade dos fatos, hoje fruto de muitos e aprofundados estudos. Dentre tantos historiadores, severos pesquisadores como Tarquínio José Barbosa de Oliveira e Ivo Porto de Menezes, vê-se uma convergência pelo assassinato. Começa-se pelo desmerecimento do depoimento de Cláudio Manoel, tão logo preso em 25 de junho de 1789. O desembargador Coelho Torres, magistrado coordenador da devassa no Rio de Janeiro, contrariando o desejo do Visconde de Barbacena, foi enviado a Vila Rica e deixou expresso que os depoimentos de Cláudio Manoel ficaram ilegítimos pela ausência de tabelião ou testemunhas na forma da lei e de juramento. Percebe-se, no contexto, existir acentuada disputa entre o vice-rei e o Governador Barbacena pelos rumos das devassas, havendo, segundo Laura de Mello e Souza, “interesses importantes em jogo, sendo melhor que o poeta linguarudo se calasse de vez”. Há indagações que se respondem por si próprias. Por que o aprisionaram em Vila Rica e não o conduziram para o Rio de Janeiro como os demais? Barbacena o queria por perto para controlar-lhe a fala perigosa quanto a seu governo e à sua simpatia pelo movimento?

Alguns historiadores afirmam, matéria a merecer maior aprofundamento, que, logo após a prisão de Cláudio, seu sítio do Fundão, na Vargem, foi invadido, os filhos, genro e escravos foram mortos e sepultados sob o assoalho e, furtados todos os bens, com destaque para suas barras de ouro. Teria sido apenas um assalto ou algo sob encomenda de algum interessado? Sem proferir qualquer julgamento, não se pode desprezar que Barbacena é o mesmo que Cláudio tinha no rol de seus devedores e que interceptara uma valiosa peça, um cacho de bananas em ouro maciço, enviado por Hipólita Jacinta Teixeira de Mello a D. Maria I, pedindo clemência a favor de si e de seu marido, o inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes. Porto de Menezes, analisando os termos da perícia feita no cadáver de Cláudio Manoel, destrói a possibilidade de suicídio com algumas arguições. “Aguentariam as ligas de meia o peso do corpo de um sexagenário? Ficaria o joelho “firme” após sua morte? Como os peritos fizeram constar que “a morte do referido Doutor Cláudio Manoel da Costa só foi procedida daquele mesmo laço e sufocação enforcando-se voluntariamente por suas mãos”, Porto de Menezes pergunta por que a palavra só? Haveria então outra hipótese que não o suicídio? Poderia alguém enforcar-se sem ser “voluntariamente por suas mãos”? Além do mais, o cubículo sob a escada em que ficara preso, não tinha altura suficiente para alguém de estatura sabidamente alta fazer o corpo pender em enforcamento.

O historiador Porto de Menezes liquidou qualquer dúvida, deixando clara a tese do assassinato, quando compulsou o livro de assentos dos Irmãos da Irmandade de São Miguel e Almas, aberto em 1741, na Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Às fls. 23, consta a inscrição de Cláudio na Irmandade e, à margem do assentamento, “sufragado com 30 Missas e pago tudo à Fazenda Real ao tesoureiro Faustino Vieira de Souza”. Já no livro da Irmandade de Santo Antônio, aberto em 1765, à fl. 83, verso, constam também os sufrágios por sua alma. Alguns acadêmicos e eu, em reuniões na Academia Marianense de Letras, ouvimos de Dom Oscar de Oliveira, Arcebispo de Mariana, que o inconfidente marianense, o único nascido na região, fora assassinado.  Tais fatos nenhum valor probandi teriam não fosse o que se segue.Ao suicida eram negados os sufrágios bem como a sepultura eclesiástica. Nisso, a Igreja Católica Apostólica Romana era rígida desde o Concilium Bracarensi, em 553, o que veio a ser confirmado em 1140 com o Decretum Gratiani e, muito depois, no Concílio Geral de Florença. À época da morte de Cláudio Manoel da Costa ainda estavam em vigor esses dispositivos embora anteriores ao Código do Direito Canônico, o que é confirmado pelo canonista, sacerdote e advogado José de Assis Carvalho, segundo o próprio Porto de Menezes. Por sua vez, outro canonista, o então arcebispo de Mariana, Dom Oscar de Oliveira, em palestra na Academia Marianense de Letras, em 14 de julho de 1978, por ocasião da posse do Dr. Tarquínio José Barbosa de Oliveira, defendeu a tese do assassinato de Cláudio Manoel, baseando-se no registro dos sufrágios nos livros das duas Irmandades de Vila Rica.

A celebração dos sufrágios é a prova inconteste de que Cláudio Manoel da Costa fora assassinado. Além do mais, há o reconhecimento oficial pelo poder civil quando se vê documentado que a Fazenda Real arcou com as despesas dos ditos sufrágios.

Por que então manter sombreada esta verdade? É oportuno, aliás, um dever de todos os brasileiros e, em especial, dos profissionais do Direito, levantarmos esta cortina rota deixando que a luz da História brilhe sobre a memória de quem foi instrumento da Justiça e ícone da literatura brasileira.