Ética no Processo Penal e amplitude do direito de defesa

5 de outubro de 2004

Soraya Taveira Gaya Promotora de Justiça

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O que pretendemos com as considerações que se seguem é apenas  provocar reflexões a respeito do assunto como fator que pode colaborar para a efetivação da Justiça.

Entendendo-se a ética como o conjunto de princípios pelos quais deve se pautar a conduta humana em variadas situações, questionamos: deve ela ser observada no Processo Penal, quando em jogo a liberdade humana?

Estaria o sagrado direito de defesa, com a amplitude que lhe deu a Constituição Federal – artigo 5o. inciso LV – subordinado a observância da ética no Processo Penal?

Ética

Segundo o Dicionário Aurélio da língua portuguesa, ética é o estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana, do ponto de vista do bem e do mal.

Sendo o processo penal o instrumento de que se vale o Estado para fazer cumprir suas leis, devendo a sentença condenatória ser prolatada na certeza de ter sido o Réu o autor de um crime e, em caso da existência de dúvida, mínima que seja, a absolvição deve sempre imperar, temos que constituir um dos objetivos da Defesa semear dúvidas no espírito do Julgador visando sempre a aplicação do adágio consubstanciado no in dubio pro reo e, para tanto, muitas vezes são usados determinados expedientes que não podemos chamar de éticos, mas também não podemos considerá-los ilícitos.

Poderíamos falar que o direito de defesa encontraria limites ou obstáculos na ética ou seria ele ilimitado?

Um exemplo prático e corriqueiro: temos observado no dia- a-dia forense, pessoas comparecerem a Juízo como testemunhas de defesa – parentes ou afins dos Acusados – que não prestam compromisso e faltam com a verdade com o objetivo de livrar das malhas da Justiça os autores de crimes. Não é raro também nos Tribunais de Júri o aparecimento no dia do julgamento de uma testemunha nessas condições com  finalidade exclusiva de impressionar o Conselho de Sentença, semeando rastros de dúvidas, além de criar uma segunda versão capaz de respaldar um julgamento injusto, além de servir de suporte para impedir  o provimento do recurso ministerial que vise a anular citado julgamento face a decisão dos Jurados ser contrária  a prova dos autos.

Tais pessoas – parentes ou afins dos Acusados – poderiam se eximir da obrigação de depor – artigo 206 do Código de Processo Penal – no entanto, não só deixam de fazê-lo como também faltam com a verdade para tentar livrar o ente querido da punição devida pelo crime cometido por ele, são raros os que são pautados por sentimentos morais e éticos e revelam a versão correta dos fatos, não importando as conseqüências que possam daí advir para o parente.

É certo que a lei teve em vista, ao dispensar tais pessoas do dever de depor, preservar a paz e harmonia da família, não podendo obrigá-las a dizer a verdade, no entanto, esse permissivo legal prejudica a busca da verdade dos acontecimentos, além de conduzir a injustiças.

Podemos falar aqui em falta de ética? Cremos que não, pois não se pode exigir ética dessas pessoas pelos motivos alinhados acima, não obstante, os Profissionais do Direito infringem a ética quando trazem para depor tais classes de pessoas apenas no intuito de mascarar a verdade material dos fatos e obter fins diversos do pretendido pelo processo penal.

Também se encontram no rol de condutas antiéticas a juntada de documentos duvidosos, interposições de recursos procrastinatórios, alegações vãs ou ofensivas à pessoa da Vítima, uso de expressões desarrazoadas buscando o tumulto, transcrição de jurisprudência inexistente, deboches, gritos e etc.

A lei processual penal procura elidir esse tipo de expediente e, podemos citar como exemplos: o prazo para a prática dos atos processuais, o impedimento de arrolar testemunhas já ouvidas no caso de desclassificação do delito na hipótese prevista no artigo 410 do Código de Processo Penal, impossibilidade de ser feita defesa na fase de Inquérito Policial, vedação de prova obtida por meios ilícitos, e etc.

No entanto, sabendo-se que não existe punição para as chamadas chicanas, estaria a Defesa obrigada a obedecer, dentro do Processo Penal, ao princípio da lealdade?  Levando-se em consideração, ainda, que o Processo apesar de ser procedimento destinado a garantir os direitos e liberdades dos Acusados, também é instrumento do Estado para a persecução penal dos autores de crimes.

Não deixa de agir com imoralidade todo aquele que tumultua ou de qualquer forma impede a descoberta da verdade real, o que compromete a devida prestação da tutela jurisdicional, com graves danos ao interesse público na realização da Justiça que visa o cumprimento das leis.

Dessa forma, sendo o Advogado indispensável à administração da justiça, deve, não só ele como todas as Partes, se portar com a ética indispensável ao desenvolvimento regular do processo, não se utilizando de chicanas para ludibriar a Justiça, caso contrário estará trabalhando contra a ela, deixando de servir a sua missão.

Em suma, para nós a ética deve ser respeitada dentro do processo penal, sem que isso implique em ferir o sagrado direito de defesa, já que este pode ser exercitado de forma ampla sem que se atente contra princípios morais. Os operadores do Direito devem tratar as leis com respeito e indispensável empenho moral, com consciência da seriedade social e humana desse instrumento de paz.

O Advogado cujo mister é servir à Justiça, não pode contribuir para iludi-la.

E quando a falta de ética, supera o domínio da moralidade para atingir a seara da ilicitude?

Considerando-se que a liberdade de agir esbarra sempre no direito alheio, o abuso ou excesso no uso de qualquer direito leva sempre para o domínio da ilicitude, devendo o seu autor ser responsabilizado na forma da lei. Não existe, na nossa sistemática jurídica, nenhum direito consagrado como absoluto e o direito de defesa não constitui exceção a essa regra, embora seja amplo.

Assim, toda conduta ilícita praticada em nome da defesa de um direito, dentro do Processo Penal, que acarrete violação a bens jurídicos de terceiros, deve ser coibida e punida, ainda que praticada pelo próprio Réu. Podemos citar como exemplo: o sujeito que acusa um inocente da prática de um crime que ele cometeu para se ver livre da punição, dando causa à instauração de inquérito contra aquele.

No tocante a este exemplo, existem opiniões entendendo que, se o Acusado aponta outrem como autor da infração que cometera, sabendo-o inocente, não teve a intenção de dar margem à instauração de investigação policial, mas sim a de se livrar da Ação Penal, não se configurando o delito de denunciação caluniosa. Concluem pela ausência de criminalidade ou pela descriminante do exercício regular de direito.

Mas, não podemos esquecer, que no caso, são atingidos bens jurídicos de terceiros penalmente tutelados, dessa forma, não há que se falar em exercício regular de um direito, qual seja, o de defesa, até porque, poderíamos aceitar tal argumento apenas para o caso da prática de atos que não extrapolassem a órbita do processo.

Sendo assim, trata-se de uma “defesa criminosa”, aquela que, por exemplo, junta aos autos documentos falsos, que coage  testemunha, que pratica corrupção ativa, que destrói os autos do processo, e etc. isso porque, não pode se escudar no dogma sagrado da defesa,  aquele que ataca.

Não se pode falar, também, em antijuridicidade de fatos típicos que extrapolam a órbita do processo penal para atingir direitos alheios, existindo crime, portanto. Também são puníveis os atos de terceiros que auxiliem o Acusado, ainda que este fique acobertado por alguma descriminante em face de sua condição processual.

Resumindo: se o Acusado pratica, dentro do processo, condutas típicas que não chegam a ter conseqüências extra autos fica protegido pelo manto do exercício regular do direito, caso contrário deverá responder penalmente por elas, bem como os terceiros que o auxiliem.

O cumprimento da lei coibe e previne a prática de tais atos que só se prestam para desvirtuar a nobre missão da Justiça.