Edição

Equívocos e sofismas em matéria de lucros no exterior

31 de março de 2012

Alberto Xavier Advogado

Compartilhe:

A partir das duas últimas décadas do século passado, assistiu-se à eclosão de um novo fenômeno na nossa economia – o da empresa multinacional brasileira.

A força irresistível da globalização e da conquista de novos mercados impulsionaram as empresas nacionais em busca de novas oportunidades além-fronteiras.

Em vez de estimular e favorecer esse esforço, a legislação tributária brasileira teimosamente insiste em manter um regime que desincentiva a internacionalização e prejudica a competitividade das nossas multinacionais.

Esse regime (que já vinha da Lei no 9.249/95 e foi revigorado pelo art. 74 da Medida Provisória no 2.158-35 de 2001) consiste em tributar os lucros das sociedades controladas e coligadas, domiciliadas no exterior, no momento da apuração dos lucros pelas sociedades estrangeiras, sem aguardar pelo momento de distribuição dos mesmos, na forma de dividendos (como sucede na pureza do princípio da universalidade), em que deixam de ser renda própria – daquelas sociedades dotadas de personalidade jurídica própria – para passar a ser renda da sociedade brasileira, que com elas tem vínculo de coligação e controle.

Assim, taxam-se imediatamente, como se distribuídos fossem, lucros acumulados no exterior, ainda que destinados a reinvestimento no próprio negócio ou em outras atividades.

Ora, raramente, na discussão de um tema desta relevância doutrinária, se têm insinuado tantos equívocos e vícios de raciocínio, que importa dissipar.

 

A) A lei  brasileira tributa o “lucro” e  não a “equivalência patrimonial”

A tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior foi disciplinada pelo art. 25 da Lei n.o 9.249/95, nos seguintes termos:

Art. 25. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas, correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano.

(…)

§ 2o Os lucros auferidos por filiais, sucursais ou controladas, no exterior, de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil serão computados na apuração do lucro real com observância do seguinte:

I – as filiais, sucursais e controladas deverão demonstrar a apuração dos lucros que auferirem em cada um de seus exercícios fiscais, segundo as normas da legislação brasileira;

II – os lucros a que se refere o inciso I serão adicionados ao lucro líquido da matriz ou controladora, na proporção de sua participação acionária, para apuração do lucro real;

§ 6o Os resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente, sem prejuízo do disposto nos §§ 1o, 2o e 3o.”

A leitura das disposições legais acima transcritas revela que a lei ordinária prevê a tributação no Brasil dos “lucros auferidos por controladas, no exterior, de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil”, lucros esses que “(…) serão adicionados ao lucro líquido da (…) controladora, na proporção de sua participação acionária, para apuração do lucro real” (art. 25, § 2o).

A mesma leitura revela ainda que a disciplina do art. 25, § 2o não modifica, nem interfere no tratamento aplicável aos “resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial”, posto que os mesmos “(…) continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente, sem prejuízo do disposto nos §§ 1o, 2o e3o.

O tratamento em questão está disciplinado no parágrafo único do art. 23 Decreto-lei no 1.598/77, com a redação dada pelo art. 1o, IV do Decreto-lei no 1.648/78, segundo o qual “não serão computados, na determinação do lucro real, as contrapartidas de ajuste do valor do investimento ou de amortização de ágio ou deságio na aquisição, nem os ganhos ou as perdas de capital derivados de investimentos em sociedades estrangeiras coligadas ou controladas que não funcionem no país”.

Assim, de acordo com a legislação vigente, os resultados de avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, isto é, as “contrapartidas de ajuste do valor do investimento em sociedades estrangeiras controladas”, não são computados na determinação do lucro real.

O art. 74 da MP no 2.158-35/01, editado com vistas a disciplinar o momento temporal do fato gerador do imposto de renda incidente sobre os lucros de controladas no exterior, reintroduziu o regime do art. 25 da Lei no 9.249/95, entretanto revogado pela Lei no 9.532/97, assim dispõe:

Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil, na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.

Referido regulamento é a IN no 213/02 que, a pretexto de regulamentar o regime de tributação consagrado no art. 25 da Lei no 9.249/95 c/c o art. 74 da MP no 2.158-35/01 inovou radicalmente, elegendo uma nova hipótese de incidência e, por conseguinte, uma nova base de cálculo para o imposto, qual seja: o resultado positivo da equivalência patrimonial (art. 7o, § 1o).

Sucede, porém, que, ao assim dispor, o art. 7o, § 1o da IN no 213/02 inovou (inconstitucionalmente) em relação à lei, que apenas permite a tributação do “lucro” da controlada no exterior (art. 25, § 2o da Lei no 9.249 e art. 74 da MP no 2.158-35/01), nunca, jamais, tendo feito qualquer referência ao “resultado positivo de equivalência patrimonial” no sentido de se poder identificá-lo como hipótese de incidência do tributo.

Muito pelo contrário – repita-se –, o próprio art. 25, § 6o da Lei no 9.249/95 – é expresso em determinar que “os resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente, sem prejuízo do disposto nos §§ 1o, 2o e 3o”.

Nesse exato sentido é o pensamento do Ministro Castro Meira no Voto-vista proferido no Recurso Especial no 1.211.882-RJ, conforme se pode ler da seguinte passagem:

Portanto, a IN 213/02, ao determinar que o balanço patrimonial positivo da empresa controlada ou coligada no estrangeiro seja adicionado ao lucro líquido da controladora no Brasil para efeito de determinação do lucro real do período, viola o princípio da legalidade, extrapolando o conteúdo da norma regulamentada, especificamente o art. 25 da Lei 9.249/95.

Por fim, o § 6o da Lei 9.249/95 não infirma as conclusões aqui adotadas.

Com efeito, o dispositivo em tela determina que “os resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente, sem prejuízo do disposto nos §§ 1o, 2o e 3o.”

A legislação vigente” a que se refere a norma, expressamente, veda a utilização do método da equivalência patrimonial para determinação do lucro real da empresa controladora ou coligada no Brasil.

É o que se observa, por exemplo, do art. 23 do Decreto-Lei 1.598/77, para o Imposto de Renda Pessoa Jurídica, e do art. 2o, § 1o, “c”, da Lei 7.689/88, para a Contribuição Social para o Lucro-CSLL, verbis: “(…) Portanto, a variação positiva ou negativa do valor do investimento, muito embora tenha impacto sobre o lucro líquido da empresa investidora, não adentra a base de cálculo do IRPJ e da CSLL, por força de lei. (…)”

 B) A lei brasileira não tem a natureza de “lei CFC”

Este sistema perverso é uma singularidade brasileira, não adotado pelos demais países, pelo que a competitividade das nossas empresas vê-se seriamente abalada, pois comporta um ônus fiscal incomparavelmente mais pesado do que o das suas rivais no mercado global.

É que esses países apenas adotam um regime excepcional de tributação automática de lucros de certas controladas quando estas auferem “rendas passivas” e são domiciliadas em território de baixa tributação (regime “CFC”), enquanto que o Brasil fez dessa regra o regime geral de controladas e coligadas no exterior, independentemente de qualquer condição.

O termo “CFC” é o acrônimo da expressão inglesa Controlled Foreign Corporation, denominação que passaram a ter após a legislação norte-americana de 1962 (reforma Kennedy), que eliminava o direito ao diferimento do imposto (tax deferral) até o momento de sua distribuição, no caso de sociedades localizadas em zonas de baixa tributação e que acumulassem lucros de certa natureza (rendas passivas). Nessa legislação (modelo inspirador das que vieram a seguir-se no resto do mundo) o imposto incide imediatamente sobre o lucro acumulado, que é imputado aos sócios, independentemente de um ato formal de distribuição.

No Direito Comparado só merecem o qualificativo de CFC as legislações que tributam lucros, independentemente de distribuição apenas em certas circunstâncias excepcionais que se consideram reveladoras de abuso, tais como no caso de controladas domiciliadas em territórios de baixa tributação (i.e., paraísos fiscais) e em relação a rendas de natureza passiva (juros, royalties, etc.)

Todavia, a lei brasileira, em matéria de sociedades controladas e coligadas no exterior, adotou um sistema que se afasta totalmente do tipo CFC, por não ter caráter excepcional e finalidade antielisiva, uma vez que atinge, como regra geral, a totalidade do lucro das sociedades controladas ou coligadas no exterior, independentemente da natureza dos rendimentos que o integram e do nível de tributação do país ou território de seu domicílio. A total inexistência de um elemento “abusivo” relacionado ou com o território de domicílio, ou com a natureza do rendimento leva a afirmar que a lei brasileira não tem a natureza de uma lei “CFC”, pois seu objetivo não é antielisivo, mas puramente arrecadatório.

 C) O art. 7o dos tratados (Modelo OCDE) é norma de competência exclusiva do país de domicílio da empresa que aufere o lucro e não de seus sócios

No caso de empresas brasileiras que investem, direta ou indiretamente, em países que celebraram com o Brasil tratados contra a dupla tributação aplica-se uma cláusula – a “regra de ouro” ou “coração” desses tratados – o artigo correspondente ao art. 7o do Modelo OCDE e que contém o princípio óbvio de evitar uma guerra fiscal; enquanto o país de domicílio da sociedade matriz (por exemplo, o Brasil) pode livremente tributar os lucros das filiais ou sucursais (estabelecimentos permanentes sem personalidade jurídica), já no que concerne às sociedades controladas ou coligadas (dotadas de personalidade jurídica) a competência exclusiva para a tributação pertence ao Estado de domicílio destas sociedades (por exemplo, o Canadá), com a consequente proibição de tributação pelo Brasil.

Veja-se paradigmaticamente o § 1o do Tratado com o Canadá (Decreto no 92.318, de 23 de janeiro de 1986).

Artigo VII

Lucros das Empresas

1. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade na forma indicada, seus lucros são tributáveis no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse estabelecimento permanente.

(…). (grifos nossos)

 D) O art. 7o, a lei brasileira e as normas CFC

Ora bem. Essa regra que é clara e nítida, em face do Direito Internacional, tem sido contestada por certas autoridades brasileiras que pretendem recusar a aplicabilidade dos tratados, com base em dois argumentos equivocados, que importa denunciar, tal a gravidade das suas consequências.

Um, consiste em afirmar que a legislação brasileira corresponde ao modelo típico das legislações estrangeiras do tipo “CFC”, e que, segundo a OCDE, não seriam incompatíveis com o citado art. 7o dos tratados.

Essa afirmação não é verdadeira, pois, como atrás se demonstrou, a legislação brasileira não é do tipo “CFC” e a OCDE apenas admite essa compatibilização por reconhecer que as leis “CFC” só se aplicam aos casos de abuso.

E) O objeto de tributação é o lucro da empresa estrangeira e não o lucro da empresa brasileira

O outro argumento visando a negar a proteção dos tratados internacionais às empresas a que nos referimos nada mais é que um sofisma enunciado de seguinte forma: não haveria sequer que se invocar a aplicação de tratado internacional, uma vez que, de harmonia com a legislação ordinária, o Brasil estaria tributando junto de sujeito passivo brasileiro (a sociedade controladora brasileira) um lucro da própria empresa brasileira (essa mesma sociedade) e não o lucro da empresa estrangeira, pelo que nem sequer ocorreria um conflito suscetível de chamar a aplicação de um tratado contra a dupla tributação (notadamente o art. 7o, § 1o).

Salvo o devido respeito, esse argumento é um paralogismo, fácil de desmontar.

Note-se, em primeiro lugar, que o lucro tributável em causa é o lucro da empresa estrangeira, dotada de personalidade juridical própria, por ela produzido e apurado. É esse lucro que o art. 7o, § 1o dos tratados aplicáveis, que seguem o Modelo OCDE, reservam à competência tributária exclusiva do Estado onde essa empresa está domiciliada, com exclusão absoluta de competência tributária do Estado de domicílio da sociedade, sua sócia coligada ou controladora.

Na ausência de uma prévia distribuição dos mesmos lucros, o mesmo lucro acumulado da sociedade estrangeira só pode ser considerado também lucro da sociedade brasileira (um fenômeno bizarro de duas sociedades de idêntico lucro, como um “milagre de multiplicação”) se, mediante um mecanismo jurídico artificiosamente criado pelo Estado de domicílio do sócio, aquele lucro for, por ficção, a ele imputado.

No Brasil tal mecanismo foi obtido pela técnica que denominamos de método aditivo e consagrada pelo art. 25 da Lei no 9.249/95, cujo § 2o dispõe:

§ 2o. Os lucros auferidos por filiais, sucursais ou controladas, no exterior, de pessoas controladas, no exterior, de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil serão computados na apuração do lucro real com observância do seguinte:

I – as filiais, sucursais e controladas deverão demonstrar a apuração dos lucros que auferirem em cada um de seus exercícios fiscais, segundo as normas da legislação brasileira;

II – os lucros a que se refere o inciso I serão adicionados ao lucro líquido da matriz ou controladora, na proporção de sua participação acionária, para apuração do lucro real.

 Verifica-se, assim, que a lei brasileira adotou um método bifásico ou aditivo pelo qual, numa primeira fase, determina a apuração do lucro da sociedade estrangeira e, numa fase logicamente subsequente, ordena a sua adição ao lucro líquido da sociedade brasileira, para efeitos de determinação do lucro real dessa última.

Significa isso que o lucro real da sociedade brasileira é constituído por dois elementos: (i) o lucro da sociedade estrangeira e (ii) o lucro líquido da sociedade brasileira.

E o próprio § 4o do art. 1o da IN no 213/02, reafirma o mesmo método aditivo ao estabelecer que “os lucros de que tratam esse artigo serão adicionados ao lucro líquido, para determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL da pessoa jurídica do Brasil, integralmente, quando se tratar de filial ou sucursal, ou proporcionalmente à sua participação no capital social, quando se tratar de controlada ou coligada”.

Daqui resulta inequivocamente que o objeto da tributação pela lei brasileira é o lucro da empresa estrangeira, que não faz parte integrante do lucro da empresa brasileira (matriz ou controladora), mas foi a ela adicionado, como tal, isto é, na sua qualidade de lucro estrangeiro, para efeitos de aqui ser tributado.

O fato de o método da equivalência patrimonial ter sido escolhido pela Administração, como mera técnica para efetuar a referida “adição” não é, porém, suscetível de “transformar”, como que por artes de alquimista, o que é “estrangeiro” em “brasileiro”.

Por óbvio, nunca se cogita de considerar a empresa estrangeira contribuinte de lucro por ela obtido no exterior, no seu país de domicílio, precisamente porque não existiriam mecanismos jurídicos de executar a obrigação tributária.

O absurdo do argumento mais salta à luz se se atentar que ele significa esvaziar o art. 7o, § 1o de todo e qualquer conteúdo, como se fora ineficaz, pois jamais se viu no mundo moderno um Estado soberano tributar lucros de empresas estrangeiras, a não ser por um mecanismo oblíquo de “naturalização” de tais lucros.

Adotando a terminologia dos internacionalistas norte-americanos, tais sociedades estariam fora do alcance da jurisdiction to prescribe (definição do âmbito de aplicação da lei) porque, por natureza, estariam fora do alcance da jurisdiction to enforce (âmbito da exequibilidade da lei)[1].

Recorde-se que os Comentários da OCDE (parágrafo 11 dos Comentários ao § 1o do art. 7o) afirmam que o domicílio do sócio não é conexão internacionalmente aceita como legítima para fundar uma tributação do lucro da sociedade estrangeira, por não revelar participação na vida econômica do outro Estado numa extensão tal que o outro Estado tenha poderes tributários sobre os lucros.

Imagine alguém, um fiscal do imposto de renda brasileiro lavrar auto de infração contra uma controlada da empresa brasileira domiciliada nos Estados Unidos, após fiscalização exercida no território deste país e neste executar forçadamente o seu crédito?

É claro e óbvio que o contribuinte teria que ser a empresa controladora brasileira e qualquer argumento baseado nesse fato apresenta-se como rudimentar paralogismo.

Aliás, quer parecer-nos que, bem no fundo de todo este absurdo sofisma, está uma deplorável confusão entre os casos em que uma empresa brasileira atua no exterior através de uma filial ou estabelecimento permanente sem personalidade juridica, e os casos em que essa atuação se dá através de uma sociedade controlada, dotada de individualidade juridica. É que só no primeiro caso se pode dizer que os lucros obtidos no exterior são lucros da empresa brasileira, pois a filial é mero ramo ou parte desta última e por isso os tratados contra a dupla tributação não opõem qualquer obstáculo à tributação pela empresa. No segundo, ao invés, a personalidade jurídica exige que o lucro por ela obtido seja considerado como lucro próprio e não lucro de quem a controla no exterior. E daí os obstáculos que os tratados estabelecem à sua tributação.

Lastimável confusão!

 


1 Cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil (7a ed.), Rio de Janeiro, 5 e ss.; Martha, The jurisdiction to tax in internacional tax law, Deventer/Boston, 1989, 59 ss.