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Ensaio sobre as fronteiras do princípio da insignificância

11 de julho de 2012

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O chamado “princípio da insignificância”, ou “da baga­tela”, queira-se ou não, está definitivamente incor­porado ao ordenamento penal pátrio. Nossas cortes elevadas o proclamam amiúde. Parte-se da premissa de que uma lesão patrimonial irrisória, de pífia expressão econômica, deva ser alheia ao aparelho repressor estatal. Tal repute resultou de profunda reflexão doutrinária e pretoriana, cujo detalhamento ‘transcritivo’ não se vê, aqui, imperioso, bastando que se observe o desenvolvimento da corrente do “direito penal mínimo” aqui e alhures. Corrente esta que, de específico no Brasil, na vizinha Argentina e na América Latina como um todo, mais que no Velho Continente, vem ganhando adesões na razão direta do fracasso da estrutura penal, máxime prisional, a oprimir segmentos desfavorecidos – “pretos e pobres”, na expressão popular – no cotejo da ineficiência e da brandura fáticas no que tange aos setores sociais medianos e “elevados”.

Sendo inelutável o fato de ser nossa sociedade, apesar de algum progresso na última década, profundamente desigual, o que se agrava pela fraqueza do Estado (no sentido amplo) diante do poder do dinheiro, a corromper seus agentes em todos os poderes, não importando variações de intensidade. Não apenas a legislação atinente aos crimes, mas a sobejante, e o próprio pacto constitucional cidadão de 5 de outubro de 1988 têm valido, em esferas significativas, como expressões programáticas, não, como tanto se desejou e deseja, materialmente. Estatísticas recentes mostram o grau de atraso, do Oiapoque ao Chuí, da educação pública em comparação até com países de menor, ou bem menor, grau de desenvolvimento econômico; no corolário de uma legião de rapazes e moças pouco superando o semianalfabetismo, incapazes de efetuar cálculos matemáticos elementares ou de interpretar textos também elementares, jovens estes que, alijados de um mercado de trabalho cada vez mais exigente e competitivo, têm tido, como opções de vida, a conformidade com a carência ou o envolvimento em atividades ilícitas. Mas a problemática não se esgota no binômio anglo-saxão haves x have nots. A conturbação dos valores éticos e espirituais, para não utilizar-se a assaz desgastada expressão “morais”, na transição entre o patriarcalismo, o machismo e a rigidez de costumes (conjugada à hipocrisia) de um passado ainda próximo, e o liberalismo ilimitado e permissivo do presente, sobretudo no uso acendrado do erotismo, sem poupar crianças e adolescentes, como indutor do consumo também sem peias, tem por principal consequência a erosão familiar, na volatilidade das uniões jurídicas ou fáticas “homem-mulher” (de outras aqui não se trata, unicamente, pela grande especificidade) e no sucessivo fragilizar dos laços entre pais e filhos. Evidentemente, não se manifesta, aqui, saudosismo de um já criticado passado de reversão tanto impossível quanto indesejada, mas sim justa preocupação com o progressivo alheamento normativo acerca de determinados valores básicos, os quais, longe de interessar apenas às confissões religiosas, relevam, sobremaneira, a edificação de uma sociedade livre e plural, alicerçada na dignidade das pessoas.

Na sociedade brasileira hodierna, diante das circunstâncias acima aludidas, não deve assustar o relatado pelo e. ministro do pretório excelso, Gilmar Mendes, publicado na grande mídia, no sentido de haver uma superpopulação carcerária, vivendo muito abaixo do mínimo de humana dignidade; na maioria, réus sob prisão cautelar, pendentes de julgamento. E, ironicamente, um enorme número de indivíduos – indevidamente soltos – objeto de mandados de prisão não cumpridos por razões nem sempre desculpáveis. Porém, no campo da execução penal, definitiva ou provisória, por igual, maior detalhamento fugiria ao objetivo deste trabalho modesto.

Retornando-se ao elemento especificamente sob discussão, para cuja compreensão toda a análise supra se viu necessária, vem uma interrogação. Admitido, no tema dos delitos contra o patrimônio, tal princípio da insignificância ou da bagatela, qual será seu justo limite? Qual deve ser a fronteira entre a aplicação de tal princípio de molde a tornar atípica a conduta do agente, na atual redação do artigo 386, III, da Lei de Regência, e a incidência da norma de mitigação do desvalor do furto, contida no § 2º do artigo 155 da Lei de Substância? Norma esta que, desde a redação originária do dito Código de 1940, permite ao julgador substituir a pena de reclusão pela de detenção, reduzi-la de um a dois terços, ou aplicar somente a sanção pecuniária?

Apesar de, salvo engano do autor destas linhas, nenhum jurista minimamente sério ter ousado estender tal princípio aos crimes de roubo e/ou extorsão, recomenda-se por cautela, diante de certas exacerbações “alternativas” de cunho ideológico radical, que tal seja afastado ex radice. Soa até como um truísmo dizer-se que em tais crimes mais graves, em se ressalvando os fatores que excluem a ilicitude por genérico, o considerar da bagatela signifique profundo desprezo da ordem jurídica no que toca à dignidade da pessoa lesada (ou quase lesada). Intimidar-se alguém com abuso de força física, ou ameaça de uso de arma “branca” ou de fogo, para que entregue, nem que o seja, uma nota de dez reais, um relógio de pulso “vagabundo” ou um telefone celular dos mais baratos fere, sem qualquer dúvida, mais do que o mínimo do mínimo ético. O bem jurídico afetado, nas ditas infrações, de profundis, é mais pessoal que patrimonial puro. Sendo também curial que cada caso difira de outros, cabendo ao juiz de 1º grau, e depois ao colegiado ad quem, proceder ao necessário cotejo entre a matéria de fato e os dispositivos vistos adequados.

Prosseguindo-se, tem-se que, na conjugação restrita ao furto, o princípio sub examen deva ter incidência nos casos, excepcionais, da quase nenhuma expressão pecuniária da res subtraída, ou tentada a subtrair. Isso porque, se o valor tiver algum significado, todavia baixo, caberá a aplicação da figura tradicional do furto privilegiado, a qual, de modo algum, pode ser tornada letra morta, como, infelizmente, tem sido visto em determinados julgados das altas cortes, por maior que seja o respeito que merecem, como também em outros, de congêneres deste Tribunal Fluminense e do mesmo, incluindo o Órgão Fracionário que, honrosa e prazerosamente, é integrado pelo autor destas linhas.

Em alguns desses arestos, v.g., salienta-se que tal princípio deva ser aplicado ao agente que subtraia, de um grande supermercado, mercadorias avaliadas em torno de duzentos reais. O que seria tal importância para uma empresa, ou grupo de empresas, de altos dinheiros? Pondera-se que tal raciocínio faz superar a valoração ética pela pecuniária pura, em uma concepção materialista de merecer repúdio até por quem, não acreditando no Ser Absoluto, coloque sua fé na melhoria do ser humano, cuja completude apenas se dará na junção das condutas pessoal e social. Nem se procure amparo em ideologia ou filosofia ligadas ao ideário socialista. Reduzir-se o perverso grande contraste entre os rendimentos é tarefa do Estado, que se quer, pela Carta Magna, Democrático e Social de Direito; cujo alcance exige continuada luta dos segmentos desfavorecidos, aliados a todas as pessoas conscientes – luta, esta, sempre digna e atenta aos ditos valores éticos básicos. Cometer-se tal furto quando se esteja em situação de penúria, ou de fome, ou para o sustento de dependentes ou entes queridos, encontra justa solução na figura do estado de necessidade ou, mesmo, na da inexigibilidade de conduta diversa. Ou, no máximo, levando à aplicação da norma beneficiadora do § 2º do artigo 155 do CP.

Dizer-se, contudo, que tal conduta seja atípica é o “Estado-Juiz” proclamar, em alto e bom som, para quem queira ouvir: “Homens e mulheres, vocês podem, se quiser, subtrair coisas ou dinheiro de pessoas (físicas ou jurídicas) que os tenham de bastante. Eu nada farei porque não tenho interesse.” O que, a contrario sensu, é como ele dizer aos donos de dinheiro e de coisas: “Defendam-se como quiserem e como puderem.”

Parafraseando-se Cícero, nas Catilinárias, ubinam gentium sumus?

Já por outro tanto, tal princípio deve ser aceito quando, por exemplo, um indivíduo furtar uma ou poucas bisnagas ou algumas balas de doces de uma padaria. Quando alguém furtar algum objeto de outrem cujo valor não ultrapasse um/vinte avos de um salário mínimo – hoje, vinte e sete reais. Ou pouco mais ou pouco menos. Porém, em tais casos, de lege ferenda, deveria o Ministério Público, provocado pela autoridade policial, ter atribuição de advertir o agente por termo, sem caráter de sanção, e com registro em cadastro sigiloso. O que fica como simples sugestão.

Pois uma coisa é compreender-se o porquê de uma pessoa fazer ou deixar de fazer alguma coisa, desprezando o citado e explicitado por vetusto, mínimo do mínimo ético. E, na decorrência, mitigar-se ou até eliminar-se a resposta social. Outra, bem diversa, e deveras danosa, é relegar-se ao oblívio, na esfera estatal, o dito desprezo, uma vez que, sem parâmetros obrigatórios para o facere e o non facere, com tudo justificado em nome do que quer que seja, ao invés de marcharmos na consolidação das conquistas democráticas, o faremos na rota oposta, com os riscos notoriamente sabidos.