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É admissível prorrogação de mandato nos Tribunais de Justiça do Brasil?

20 de dezembro de 2017

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Ariano Suassuna, um dos intelectuais mais respeitados do Brasil, em um dos seus constantes momentos de feliz inspiração e bom humor, disse certa feita: “O otimista é um tolo e o pessimista um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso.”

Buscando contemporizar e manter bom nível de saudável convivência com meus ilustres pares e com todos os que me cercam, na vida pública e particular, talvez haja assumido, em muitos momentos, o papel de ingênuo, descuidado ou tolo. Pode até ser que já tenha sido chato, agindo com pessimismo, mas me sinto mesmo bem é como realista esperançoso.

Esperançoso em todos os sentidos de minha atribulada existência, especialmente no tocante à longa e extenuante missão de magistrado, assumida desde o dia 14 de julho de 1977.

Por já ter dirigido o Colendo Tribunal de Justiça do Piauí, por mais de uma vez, o que tanto me honra e engrandece, conheço a dificuldade de fazer com que uma estrutura acostumada a funcionar de um determinado modo, adapte-se, rapidamente, em curto período, a outra forma de atuação. O tempo é veloz, e é por demais difícil tomar ciência do estado atual do órgão que se dirige, instituir mudanças e conseguir colher os resultados desejados, no exíguo espaço de dois anos. Acho, portanto, que o mandato dos dirigentes dos nossos tribunais é muito curto e deve ser aumentado, mas somente por meio do mecanismo legal adequado, ou seja, do Estatuto da Magistratura Nacional.

É com olhar esperançoso, que tenho percebido constante preocupação com a melhoria das atividades do Judiciário piauiense, pelos seus integrantes, como um todo e, principalmente, pela sua atual direção, ou melhor, o Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor-Geral da Justiça, que têm se dedicado, incansavelmente, ao atingimento desse desiderato. É clara a preocupação de todos os que já dirigiram e comandam o nosso Tribunal, com a efetividade da jurisdição e com o aumento da produtividade do seu sistema judiciário, a fim de garantir o direito fundamental do cidadão, de pleno e livre acesso à Justiça a que servimos, como preconiza a Carta Cidadã de Ulisses Guimarães.

Edvaldo Pereira de Moura, Desembargador, Vice-Presidente e Corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí

Por outro lado, para que se respeite, integralmente, esses direitos, parece-me ser imprescindível que o poder político pertença ao povo.

E como conciliar isso com o Poder Judiciário?

Fábio Konder Comparato explica: “[…] o que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas; é a legitimidade pelo respeito e a confiança que os juízes inspiram no povo. Ora, essa característica particular dos magistrados, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados, exerce, as funções políticas que a Constituição, como manifestação original de vontade do povo soberano lhes atribui.” Esclarece, então, o professor livre docente da Universidade de São Paulo, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de Paris: “Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar a sua organização e o seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.”

E neste sentido, há algum tempo, o Poder Judiciário do Piauí vem mostrando o seu verdadeiro espírito democrático, através de medidas de acesso à Justiça, como se percebe com a aguerrida Justiça Itinerante, ainda que nem sempre tenha sido assim. Por isso, crescem o respeito e a confiança que os magistrados inspiram na população do nosso Estado, a que procuram servir, com desprendimento e zelo, ouvindo as suas angústias e os seus clamores de todos os dias.

Por esta razão, entendo que uma alteração legislativa ou ato normativo interno, que possa, de alguma forma, repercutir na confiança que a própria população tem no Poder Judiciário, merece uma cuidadosa e bem pensada análise. Por isso, proponho aos meus ilustres pares uma profunda reflexão sobre o seguinte questionamento:

É possível que, mediante legislação estadual ou ato normativo interno, o presidente do Tribunal de Justiça e os seus outros dois dirigentes tenham os seus respectivos mandatos prorrogados? Teria tal lei ou ato normativo interno, regularidade formal e material? Do ponto de vista político, poderia somente no Estado do Piauí ter-se um Judiciário em que o seu presidente e os demais dirigentes possuam mandato de tempo maior do que qualquer outro no Brasil?

E sobre esse assunto, permito-me, dentro de minha realidade esperançosa, ponderar sobre a eventual viabilidade de se prorrogar os mandatos dos dirigentes do Tribunal de Justiça do Piauí, para além dos dois anos previstos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

O tema não traz grandes dificuldades e, aliás, já foi pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, que desde 1984, aos dias atuais, jamais admitiu prorrogação de mandato, por um dia sequer, ou reeleição dos dirigentes dos tribunais, por afronta à Carta Política em vigor, como pretende a minuta de resolução ora sendo discutida pelos nossos desembargadores.

Sobre a eleição dos cargos diretivos dos tribunais e a duração dos seus respectivos mandatos, prescreve o art. 21, da Lei Complementar 35/79:

Art. 21. Compete aos tribunais, privativamente:

I – eleger seus presidentes e demais titulares de sua direção, observado o disposto na presente Lei.

E a lei a que se refere o art. 21, prescreve, de forma imperativa, em seu art. 102, o que se lê a seguir:

Art. 102. Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de antigüidade. É obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da eleição.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica ao Juiz eleito, para completar período de mandato inferior a um ano.” (com grifos).

Pelo que se pode observar da simples leitura do texto legal, o mandato dos dirigentes dos tribunais é de dois anos, sendo a reeleição ou prorrogação de mandato, como queira, terminantemente proibida. São por esse motivo inelegíveis os que tiverem exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos ou o de presidente, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de antiguidade.

A única ressalva existente é a do parágrafo único do art. 102, da já mencionada Lei Complementar, recepcionada pela Constituição Federal, que diz, textualmente: “O disposto neste artigo não se aplica ao Juiz eleito, para completar período de mandato inferior a um ano”.

Esse é o caso do magistrado, que sendo vice-presidente do Tribunal e em face da vacância do cargo de presidente, por morte ou aposentadoria, venha a ser eleito para assumir o cargo do presidente falecido ou aposentado, desde que por período inferior a um ano. Em tal situação, o vice-presidente que exerceu esse mandato, poderá ser reeleito, caso preencha os requisitos legais, por mais um período de dois anos, imediatamente ou não, ao término do mandato-tampão

É essa a única hipótese de reeleição, como reconhece o intérprete maior de nossas leis – o Supremo Tribunal Federal, a não ser que se faça uma interpretação pelo avesso. Aliás, segundo o entendimento da nossa Corte Suprema: “Não há meio mais seguro de tresler qualquer documento do que a sua leitura literal”. Quem analisa, de forma diferente, o disposto no parágrafo único do art. 102, da Lei Complementar 35/79, não está interpretando mas treslendo o mencionado ato normativo.

Recorro, aqui, à advertência de FERRARA, com a qual concorda Ives Gandra da Silva Martins, em Parecer publicado na Revista de Direito Constitucional nº 53, p. 348, in verbis:

O pior que pode ocorrer a qualquer intérprete é pretender ler na lei ou, no ato administrativo, o que lhe agrada, mesmo que na lei não esteja escrito ou dela suprimir o que lá está, porque o que escrito está não lhe agrada. 

Por outro lado, verifico que a incongruente proposta de prorrogação procura mostrar, equivocadamente, que a não coincidência entre o mandato e o exercício financeiro ou ano civil, comprometeria a eficiência das sucessivas gestões do Tribunal. Mas essa afirmação não apresenta nexo lógico com a modificação apresentada, nem comprova ser ela de interesse do Poder Judiciário a que pertencemos.

Como se sabe, os mandatos dos dirigentes do Supremo Tribunal Federal, dos demais tribunais superiores e da esmagadora maioria dos tribunais de justiça do Brasil não coincidem com o ano civil ou com o exercício financeiro, defendido pela supracitada Resolução. 

No Supremo Tribunal Federal, a posse dos eleitos acontece no dia 12 de setembro; do Superior Tribunal de Justiça, no dia 1o de setembro; do Tribunal Superior do Trabalho, no dia 22 de fevereiro e do Superior Tribunal Militar, no dia 16 de março, terminando todos esses mandatos, improrrogavelmente, dois anos depois, como exige a Lei Complementar no 35, recepcionada pela Carta da República de 1988.

Indaga-se, por conseguinte: se essa alteração a que se refere a dita Resolução fosse necessária à eficiência administrativa de todos os tribunais ou dos tribunais acima nominalmente referenciados, por que nenhum deles a adotou?

Esses exemplos, por si sós, evidenciam a inconsistência e a incongruência da pretendida alteração regimental, a meu ver, com todas as vênias.

Finalmente, e com toda convicção, afianço, neste pequeno artigo, que a prorrogação de mandato contida na minuta de resolução, ora analisada, é prejudicial ao futuro gestor do Tribunal de Justiça do Piauí. Deixo de fazer maiores considerações, que justifiquem a minha posição, por questão de espaço.