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Desemprego e violência, nossos maiores desafios

5 de fevereiro de 2003

José Sarney Senador

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Há mais de 170 anos o Senado se reúne, como hoje, no exercício da continuidade do governo democrático, com a renovação das legislaturas, o juramento dos eleitos para o exercício dos mandatos. Esta instituição é uma das maiores criações da democracia representativa e suas origens estão nos constituintes da Filadélfia.

A soma de todos nós é menor do que a soma do Senado. Por esta Casa passaram as maiores figuras políticas do País. Cito algumas, como Nabuco de Araújo, Cotejipe, Saraiva, Silveira Martins, Caxias, Dantas, Campos Sales, Afonso Pena, Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, Tancredo Neves e tantos outros.

Como síntese, na evocação dos nossos maiores, guardião de nossas tradições, neste plenário está o bronze eterno de Rui Barbosa velando pelos nossos trabalhos. Dizia ele: “O senador é a personificação efetiva de um Estado”.

Dizia ainda que o Senador significava os interesses maiores da Pátria.

Casa de tradição, o Senado deu uma parcela relevante na construção do País. Aqui ajudamos a fazer nossas instituições políticas, que vêm consolidando o Brasil.

Sempre escrevi que o Brasil foi uma construção política, desde a Independência até os nossos dias. Numa comparação que costumo fazer, não nos marcam as cicatrizes de batalhas sangrentas como na conquista da América espanhola e na formação de diversos países.

Foram os políticos brasileiros que tiveram a sabedoria e a competência para fazer a Independência; eles pregaram e consolidaram a República; eles souberam atravessar os nossos impasses, em todos os momentos, para encontrar soluções sem rupturas.

Nossas instituições políticas estão marcadas pelo idealismo dos nossos antepassados, que foram sempre visionários.

Não tínhamos imprensa na Constituinte de 1923, e discutíamos a liberdade de opinião.

Sem termos a Nação organizada, os Senadores e Deputados amarravam os seus cavalos na sede do Senado e na sede da Câmara, no Rio de Janeiro, e discutiam liberdades civis e liberdades individuais — isscomeço do século, em 1823.

Sem saber onde eram as fronteiras, porque o País ainda não existia delineado, eles estudavam e defendiam as teses da soberania – todos esses debates estão nos nossos Anais.

Sem ainda termos consolidado leis, discutimos a independência dos Poderes, os predicamentos da magistratura.

Fui persistente, Srªs e Srs. Senadores, no desejo de ocupar este cargo, pelo fascínio que me desperta e estimula o momento atual da vida brasileira, pela convicção de que posso concorrer com uma parcela, mínima que seja, da minha vivência, solidificada em quase meio século de atuação parlamentar em favor do Senado Federal, do Congresso Nacional e do Brasil.

Leva-me a pensar nessa legitimidade o fato de eu ser o parlamentar mais antigo nas duas Casas Legislativas e conhecer as duas margens do rio: a do Legislativo e a do Executivo.

Sou o último remanescente da legislatura de 1955-1959 hoje no Congresso. Há 48 anos exerço a atividade parlamentar. Minha formação política foi o Parlamento, a mais alta e mais fascinante criação do homem no caminho da organização do governo democrático.

É o Parlamento a casa onde o povo tem sua voz e participação, por intermédio de seus representantes.

No Parlamento aprendi que se aprende a arte de falar e de ouvir, de dialogar e conviver, de aceitar idéias e rejeitá-las, questionar governos, costumes, hábitos, práticas, pessoas e condutas.

O Parlamento pode questionar o próprio Parlamento.

Nosso trabalho exige a sedimentação de uma profunda consciência moral sobre as nossas responsabilidades, a obstinada decisão de não cometer erros, de jamais aceitar qualquer arranhão nos procedimentos éticos que devem nortear nossa conduta. Transparência, moralidade, eficiência, trabalho, os nossos dogmas.

O Congresso, como eu disse, é maior do que a soma de todos nós. Os Parlamentos perderam aquele charme romântico que os acompanhou durante o século XIX até metade do século XX. Eles eram o centro das decisões, e elas podiam vir pela retórica. Era o tempo em que os plenários podiam ser tocados pela palavra, pelo delírio e pelo poder de encantamento de grandes oradores.

Infelizmente, ainda somos dominados, de certa parte, em nosso País, pela visão do parlamento do discurso, apenas uma das formas de fiscalização, e passamos essa imagem à sociedade, que vincula o Congresso ao plenário.

Mas somos muito mais do que isso!

Do Congresso somente me ausentei para ser Governador do Maranhão em 1965 e, de 1985 a 1990, para exercer sucessivamente a Vice-Presidência e a Presidência da República. No Senado Federal estou no exercício do quarto mandato.

Já exerci todas as funções, de representação, cargos e encargos políticos. Deputado, Governador, Senador, Vice-Presidente e Presidente da República. Líder de partido, Líder de Oposição e Líder de Governo ao longo da minha vida. Em todos esses postos tive presente a consciência moral dos meus deveres, tomei decisões, e certamente cometi erros e acertos.

Não me acusa a consciência de ter fugido ao risco de tomar posições quando elas são necessárias. Nos momentos em que fui chamado a cumprir o meu dever, procurei ser firme e decidido, prudente ou paciente, sem jamais perder o equilíbrio.

Tenho, neste momento, já no crepúsculo dos anos, de dizer que nunca falhei ao meu País. Quando da edição do AI-5, fui o único Governador de Estado a negar-lhe apoio.

Ao lado de Petrônio Portela, Teotônio Vilela, Daniel Krieger, Milton Campos, Carvalho Pinto, aqui neste Plenário, e muitos outros, lutávamos por uma saída para chegar à democracia, desembocando na revogação do AI-5, emenda constitucional da qual fui Relator.

Depois, o trabalho para a construção da anistia e a dinâmica da abertura, em um tempo em que as feridas ainda estavam abertas e não cicatrizadas.

Quando houve impasse nessa direção e sentindo que podíamos marchar para um retrocesso, tive a coragem de discordar e abrir caminho para que, com um grupo valoroso de companheiros, muitos deles que aqui ainda estão, pudéssemos eleger Tancredo Neves e possibilitar uma saída sem trauma do regime autoritário.

Levado pelo destino, num momento dramático da vida nacional, a assumir a Presidência da República, tenho a consciência de que ajudei a construir a volta das liberdades. Abolimos as leis de exceção. Tive a determinação, contra todas as expectativas, de convocar a Assembléia Nacional Constituinte.

Há dois anos, eu estava em Berlim, participando de uma reunião do InterAction, que congrega ex-Presidentes da República e Chefes de Governo, e conversei com um ministro alemão. E ele me perguntou se eu tinha tido a coragem de fazer uma Constituinte. Observou então que talvez tenha sido a última Constituinte no mundo ocidental, porque – disse ele –, hoje, se fôssemos convocar uma Constituinte na Alemanha, o país se dissolveria, tantos e tão fortes são os interesses e tensões que se formam dentro da sociedade.

Afirmei-lhe que sabia desses perigos.

O exemplo de nossa História não era alentador.

A Constituinte de 1823 foi fechada e a de 1891 desembocou na renúncia de Deodoro.

A de 1934, nas malhas do Estado Novo.

A de 1946, a edificação da democracia no fim do totalitarismo nazista, foi fechada em 1964.

Em 1988, houve o esforço pela construção da cidadania, abriram-se os caminhos para os direitos sociais.

Fui um crítico da Constituição de 88. Ela criou, na área da organização do Estado, um espaço de ingovernabilidade, por ser híbrida, ao oscilar entre o parlamentarismo e o presidencialismo, sem unidade.

A evidência de suas falhas pude comprovar em mais de trezentas emendas constitucionais que circularam e circulam no Congresso Nacional com vistas a corrigi-las.

No que se refere aos direitos sociais e civis, sempre a aplaudi, a louvei e a apoiei. Na mensagem em que convoquei a Assembléia Nacional Constituinte eu dizia que se fazia necessário a construção de direitos sociais. Foram tais direitos que, exercidos, abriram caminho para que tenhamos hoje uma sociedade democrática, transparente, aberta, que vivifica o tecido social com a capilaridade democrática estendendo-se em todos os setores.

Srªs e Srs. Senadores, fiz algumas referências históricas e dei o testemunho de uma vida dedicada ao Parlamento, para atestar as mudanças que ocorreram ao longo dos anos recentes e as esperanças que se abrem quando olhamos o futuro.

Thiers dizia de Gladstone: “Quanto mais ficava velho, mais confiança tinha no futuro”.

Lembremos o exemplo dessas mudanças no Brasil e no mundo. Devemos recordar alguns fatos. Há menos de um século, o Presidente Venceslau Brás abria e fechava o Palácio do Catete, levando a chave no bolso. Era símbolo de trabalho: o primeiro a chegar, o último a sair.

Hoje, a complexidade do Estado moderno mudou tudo. Mudaram os costumes, mudaram os hábitos, mudou o governo, mudou a política.

A democracia representativa de que somos agentes e eleitos está sob forte contestação. Contestam-se seus valores e muitos já apontam o rumo da democracia direta. A sociedade da informática modificou completamente as mentalidades, os hábitos, os costumes. Nosso pensar, baseado num sistema mecanicista de causa e efeito, foi abalado pelo conceito de rede.

De um modelo fortemente hierarquizado e com informação centralizada, passamos a um modelo em que a informação é mais distribuída e a decisão menos programática – podemos até falar num tipo de informação biológica. O Estado tradicional é substituído pelo estado em rede, construído a partir da mundialização do capital, da multilateralização dos poderes institucionais e da descentralização da autoridade. O Estado é cada vez menos a expressão de sua soberania, acuado pela força das grandes companhias globais cujo capital supera o PIB de muitos países e pela hegemonia de superpotências destinadas a impor sua força a tudo e a todos.

O Estado, assim, não é mais o ponto de passagem obrigatório entre o particular e o geral, entre o interesse público e o interesse privado.

Minha geração viveu entre a magia e a realidade.

Aconteceram fatos e criaram-se coisas com que nunca sonhamos. É como se da tenda dos alquimistas surgissem, em vez de poções mágicas, outros mundos. As descobertas científicas colocaram milagres em nossas mãos. Uma diabólica máquina composta de fios e de um teclado – o computador – conecta todo o mundo e instantaneamente fornece informações, milhões de dados se avolumam a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, nessa teia sem limites.

Isso afetou a política. É indispensável a nossa capacidade de estarmos preparados para essa nova realidade. A base da política é a confiança. Penso que posso dizer, na abertura dos nossos trabalhos, que o Brasil pode confiar no Senado. Há no Congresso e no meio político a consciência de que vivemos um tempo novo de construção.

A biografia do Presidente Luís Inácio Lula da Silva é uma referência do Brasil para o mundo democrático, referência de nossos avanços nas oportunidades de participar e decidir, de ascensão social, da força do trabalho. Torna-se possível vislumbrar a construção de um pacto social com a diminuição das tensões e com a compreensão das elites de que é hora de ceder espaços para ganhar o principal, que é a paz social.

Temos desafios imensos. Os maiores deles, talvez sejam o desemprego e a violência. Somados, tornam a nação insegura e o povo infeliz.

Desejo – penso interpretar o sentimento de todos nós – que esta legislatura corresponda ao espírito de responsabilidade que nos domina e assegure ao País clima de confiança e estabilidade e novos tempos de entendimento e de novas relações políticas. O Senado, tenho certeza, será um dos pilares deste momento político e cumprirá sua missão histórica de harmonizar conflitos e buscar sempre e em tudo atender o interesse público.

Veja-se a tarefa urgente, generosa, do combate à fome. A Nação precisava de ideais que a unissem e não a dividissem. Essa campanha, além da sua razão humanista e meritória, tem também a virtude de mobilizar consciências e vontades, sabendo que há um espaço comum, que é de todos, quando a boa causa é a de suprir necessidades e também de humanizar mediante a solidariedade e o cumprimento do dever.

Srªs e Srs. Senadores, a agenda do Poder Executivo indica trabalhos e desafios para nós.

Neste ano, duas reformas fundamentais são propostas: a previdenciária, para evitar a quebra do Estado, e a tributária, para modernizar a arrecadação. Indaga-se se é possível fazê-las, se é possível aprová-las na velocidade que o País necessita. Eu acho que interpreto o sentimento de todos nós se afirmar que sim. Basta ter vontade política. A responsabilidade é de todos nós – Governo, Congresso Nacional e sociedade mobilizada. É hora de juntar vontades e,  Executivo e Legislativo, enfrentar e vencer pressões.

Creio que da parte de nossa Casa legislativa nós iremos cumprir com nosso dever.  Serei sempre o primeiro defensor da harmonia e da independência dos Poderes, como determina a Constituição, zelando pelas prerrogativas do Poder Legislativo. Devemos zelar pelas nossas prerrogativas e ter a consciência dos nossos deveres, com a imagem, a compostura, a moral e a dignidade do Senado Federal.

Joaquim Nabuco nos aponta a grandeza da missão que temos a cumprir e os limites que devem reger nossa conduta. Em determinado período de um dos seus discursos parlamentares, Nabuco, que vinha da monarquia e ainda começava a República, dizia  que “não é preciso ser republicano para servir à República – ele não era republicano -, nem monarquista para servir à monarquia; basta ter a clara noção de que nunca se tem o direito de prejudicar a pátria para prejudicar o governo”.

Acima de qualquer credo político, de Governo e Oposição, neste momento tão fascinante da vida brasileira, com um Presidente cujas origens são o aval de sua determinação, não podemos recusar ajuda na tarefa de dar governabilidade – fazer as reformas, celebrar o pacto social.

Srªs e Srs. Senadores, antes de concluir, devo dizer que também devemos ter a nossa própria agenda política. Penso que a agenda do Legislativo, a começar pelo Senado, é a de fazer a reforma política. Vamos construir modernas instituições, que não aniquilem os partidos, que não rebaixem a política a um cartório de registro de candidatos nas eleições; que não envelheçam a representatividade e não destruam a legitimidade.

Vamos fazer a reforma política. O voto uninominal proporcional só existe no Brasil. Em nenhum outro lugar do mundo, existe esse modelo. Já desapareceu, como prejudicial à democracia, em todos os países. É uma reminiscência dos fins do século XIX.

Enfrentemos o problema. Vamos elevar o debate, torná-lo capaz de mobilizar uma nova atividade política, a nossa consciência, e que esses ideais nos encorajem.

Vamos dar ao Brasil uma noção de trabalho. Vamos desobstruir a pauta e iniciar nas Casas, ligadas por um interesse comum, Senado e Câmara, um trabalho conjugado, para que a opinião pública tenha presente que esta Qüinquagésima Segunda Legislatura será citada na história do Brasil como um dinâmico e criativo tempo de construção e de serviços prestados ao País. Para isso, estou perfeitamente sintonizado com o Presidente da Câmara, Deputado João Paulo, que comigo dividirá o comando de nossas casas legislativas.

O Congresso Nacional jamais faltou ao Brasil, nunca obstruiu as tarefas do Executivo e do Judiciário. Nossa obrigação é ajudar a diminuir os problemas de nosso povo e assegurar que cumpriremos quatro anos em um Congresso de renovação, transparente, sem contemplações com os erros e disposto a punir todos aqueles que, de um modo ou de outro, infringirem o mandato que o povo lhes conferiu.

Mas também seremos intransigentes e inarredáveis e jamais nos vergaremos na defesa das prerrogativas e da autonomia do Parlamento, Casa que é a expressão da soberania do povo e do sistema democrático.