Edição

Descriminalização da posse de armas de fogo

30 de setembro de 2008

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No dia 31 de janeiro de 2008, foi publicada a Medida Provisória nº 417, que alterou os prazos para o registro e entrega de arma de fogo dispostos na Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, nacionalmente conhecida como Estatuto do Desarmamento.
Posteriormente, essa Medida Provisória foi submetida à apreciação do Congresso Nacional, sendo convertida na Lei nº 11.706, publicada em 19 de junho de 2008, demonstrando a intenção do legislador em retomar o prazo e as campanhas de entrega de armamentos por meio da conscientização e mobilização da sociedade, com o objetivo de retirar milhares de armas de fogo das mãos dos cidadãos, buscando uma política criminal de redução da violência e da vulgarização do uso dessas armas.
Referido Diploma Legal alterou os artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, que passaram a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo de uso permitido ainda não registradas deverão solicitar o seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, mediante apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, acompanhados de nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e sua condição de proprietário, ficando este dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a II do caput do art. 4º desta Lei.”
“Art.32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo poderão entregá-las espontaneamente, mediante recibo e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma.”

Tais modificações criaram uma situação peculiar em nosso ordenamento jurídico, permitindo aos possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas a oportunidade de solicitarem seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, ou mesmo de entregá-las à Polícia Federal, o que gerou a descriminalização temporária do crime de posse ilegal de arma de fogo.
Nesse sentido, a nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos artigos 30 a 32, que a doutrina intitula de abolitio criminis temporária ou de vacatio legis indireta ou até mesmo de anistia, deve retroagir, alcançando os fatos praticados anteriormente à sua publicação, uma vez que mais benéficos para o réu, nos termos do art. 2º do Código Penal que estabelece: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.
Desse modo, não há razão para que uma pessoa seja processada ou condenada por uma conduta que passou, posteriormente, a ser considerada, ainda que por breve período, atípica ou penalmente indiferente.
Em função disso, até o dia 31/12/2008, ninguém poderá ser preso ou processado por possuir em casa ou no trabalho arma de fogo não registrada, e mesmo aqueles que estão sendo processados ou estão presos por esse crime, poderão requerer a extinção de sua punibilidade, em razão da falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal.
A jurisprudência aponta nessa direção, basta verificar recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida no HC 92369/SP:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. PRAZO PARA REGULARIZAÇÃO DA ARMA. ARTIGOS 30, 31 E 32, DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO.
Não se pode confundir posse de arma de fogo com o porte de arma de fogo. Com o advento do Estatuto do Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho.
Os prazos a que se referem os artigos 30, 31 e 32, da Lei nº 10.826/03, só beneficiam os possuidores de arma de fogo, i.e., quem a possui em sua residência ou emprego. Ademais, cumpre asseverar que o mencionado prazo teve seu termo inicial em 23 de dezembro de 2003, e possui termo final previsto para 31 de dezembro de 2008 (nos termos do art. 1º da Medida Provisória nº 417, de 31 de janeiro de 2008, que conferiu nova redação aos arts. 30 e 32 da Lei nº 10.826/03). Desta maneira, nas hipóteses ocorridas dentro de tal prazo, ninguém poderá ser preso ou processado por possuir (em casa ou no trabalho) uma arma de fogo. (Precedente).
In casu, as condutas atribuídas ao paciente foram as de possuir munição e de manter sob sua guarda arma de fogo de uso permitido, ambas no interior de sua residência. Logo, enquadra-se tal conduta nas hipóteses excepcionais dos artigos 30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento, restando, portanto, extinta a punibilidade, ex vi do art. 5º, XL, da CF c/c art. 107, III, do Código Penal. Ordem concedida.”
(STJ – 5.R – HC 92369/SP – Rel. Ministro FELIX FISCHER – j. 26/02/2008).

Assim, durante o prazo estipulado pelo legislador, identificado como vacatio legis indireta, verifica-se uma hipótese de abolitio criminis temporária, permitindo-se concluir que a simple conduta de possuir arma de fogo de uso permitido (art. 12) ou de uso restrito (art. 16), não configura conduta ilícita.
Isso porque ao permitir a regularização de armas sem registro ou mesmo a entrega destas à Polícia Federal, a lei implicitamente autorizou a guarda de armas irregulares no interior de residência ou local de trabalho, até o término do prazo estipulado pela lei nova.
Importante ressaltar que o legislador não fixou um prazo final para a entrega dos armamentos à Polícia Federal, podendo esta ser realizada a qualquer momento, mesmo após o dia 31/12/2008, ocorrendo in casu uma espécie de atipicidade absoluta, nos termos do citado art. 32 da lei em comento. Entendimento contrário implicaria, por certo, em real cerceamento de defesa.
Portanto, no período compreendido entre os dias 23 de dezembro de 2003 (primeiro dia após a publicação do Estatuto do Desarmamento) e o dia 31 de dezembro de 2008, o crime de posse ilegal de arma de fogo é considerado como conduta atípica, isto quer dizer que durante este período não cometeu crime e nem cometerá aquele que possui arma de fogo, munições e acessórios, em sua residência ou local de trabalho.