Democracia paritária, políticas públicas e o papel do Poder Judiciário

12 de março de 2024

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As ações da Corregedoria Nacional de Justiça no combate à violência de gênero

As últimas duas décadas evidenciaram o que Francisco Balaguer Callejón indica como grandes características da sociedade 4.0. e da própria estruturação do Estado Democrático de Direito contemporâneo: o redimensionamento do tempo e do espaço, caracterizado pela aceleração do estado de coisas e a diminuição das barreiras geográficas. Como consequência, já não é possível manter-se isolado ou alheio à nova percepção do tempo e do espaço, alinhada com um processo desburocratizado e sem fronteiras, sob pena de fragmentação e obstacularização da criação de estruturas sociais fundamentais estáveis, e com capacidade de integração política e social.

Os novos rumos do Direito Processual caminharam lado a lado à nova linguagem do Direito e a velocidade do fluxo das informações, revelando a premência de um novo olhar sobre o papel do Judiciário, consentâneo aos novos caminhos e contornos do papel do próprio Estado, indicativos da responsabilidade coletiva- ou total, nos dizeres de Hans Jonas – e da comparticipação.

Desde a sua criação, com a Emenda Constitucional 45/04, o Conselho Nacional de Justiça teve como mote o aperfeiçoamento do trabalho do Judiciário brasileiro, sob visão inclusiva e democrática que envolve, como missão, promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade, e, como visão de futuro, garantir a eficiência, transparência e responsabilidade social da Justiça brasileira. 

Tal visão, desvinculada do individualismo casuístico ou da mera gestão quantitativa da litigiosidade, se amolda ao novo enfoque da responsabilidade e do papel do Judiciário moderno, que passa a assumir certo protagonismo no impulsionamento de projetos e ações de grande impacto social. Longe de se identificar com qualquer ingerência abusiva entre os Poderes ou ativismo Judiciário arbitrário, a participação na construção de políticas públicas por meio de tais iniciativas não só é desejável, como necessária, sob a perspectiva de que o Direito deve conceder respostas às necessidades sociais de seu tempo e espaço. 

Não por acaso, o CNJ adotou como Meta Nacional 9 do Poder Judiciário Brasileiro a integração da Agenda 2030 (agenda de Direitos Humanos das Nações Unidas, aprovada em Assembleia Geral em 2018), sob o enfoque da efetividade da jurisdição. “Quando há lesão ou ameaça de violação de direitos humanos, milhares de demandas são judicializadas, cabendo ao Poder Judiciário assegurar a razoável duração do processo e os meios que garantam sua celeridade” . O Poder Judiciário Brasileiro foi pioneiro na institucionalização da Agenda 2030 e indexação de sua base de dados com 80 milhões de processos a cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

A inclusão de ações de igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas está no centro das propostas dos objetivos e metas do desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Além de possuir um capítulo próprio ao tema gênero (ODS5), a agenda contempla outros objetivos e metas sensíveis a pauta, tais como a erradicação da pobreza e fome em todas as dimensões (ODS1/ODS2), o bem-estar e saúde de qualidade (ODS3), a igualdade no acesso a educação de qualidade (ODS5), o crescimento econômico, a oportunidades de emprego (ODS8), a redução das desigualdades (ODS10), a paz, justiça e instituições eficazes (ODS16) e nas parcerias para a implementação dos objetivos (ODS17).

Ainda sob o enfoque da Organização das Nações Unidas, a ONU Mulheres editou o Marco Normativo da Democracia Paritária. Em seu capítulo II, ao tratar da “articulação da responsabilidade do Estado inclusivo com a Democracia Paritária”, o marco ratificou o que aqui se expõe como responsabilidade e comparticipação do Judiciário no tema da desigualdade de gênero, cuja problemática gera a grave chaga da violência contra a mulher. Os artigos 8o e 14 indicam, respectivamente, “o compromisso do Estado inclusivo com a Democracia Paritária configura-se como uma política de Estado, que obriga os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e eleitoral a sua aplicação em toda a estrutura territorial” e que “o Poder Judiciário deveria: Promover o acesso à Justiça desde o respeito e garantia da igualdade de gênero”.

Não há dúvidas, portanto, de que o Poder Judiciário, por meio de todos os seus órgãos e políticas de gestão, não só detém legitimidade, como tem o dever de garantir um ambiente e um resultado que possam promover o respeito e a garantia à igualdade de gênero. Sob o aspecto do acesso à Justiça, uma vez que não mais está restrito à possibilidade de impulsionar o Judiciário, mas principalmente à possibilidade de obter desse mesmo Poder uma resposta célere, justa e eficaz, seu meio de aferição sob o índice específico (Índice de Acesso à Justiça) perpassa também a questão da vulnerabilidade, e o combate à violência contra a mulher, ambos na acepção do denominado Capital Cidadania.

Atualmente, segundo dados do relatório Justiça em Números, a tramitação de processos no Judiciário brasileiro ultrapassou a marca de 80 milhões. O número, que chama atenção por sua vultuosidade, revela também a necessidade premente da criação de mecanismos, dentro das Políticas Judiciárias projetadas, de tratamento adequado a esses litígios, ou seja, fornecer condições adequadas de trabalho dentro do que se considera a distribuição equânime de força de trabalho.

Nesse panorama de grande vulto e grandes disparidades, o combate à violência contra a mulher se traduz em ações voltadas a garantir tal igualdade dentro do Judiciário, a Corregedoria Nacional de Justiça tem buscado implementar iniciativas que vão muito além de seu viés disciplinar ou fiscalizatório. Ao implementar Diretrizes para as Corregedorias e Tribunais locais voltadas à aplicação da Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação no Poder Judiciário,  à identificação e o acompanhamento de processos disciplinares envolvendo violência contra a mulher, com a criação de fluxo voltado à observância dos Protocolos de acolhimento e escuta aplicáveis, e a adoção do protocolo integrado de prevenção e medidas de segurança voltado ao enfrentamento à violência doméstica praticada contra magistradas e servidoras, o órgão demonstra que ações estruturais são necessárias e possíveis, com grande impacto social. 

No caso das “Metas e Diretrizes das Corregedorias”, estabelecidas por meio de debates e deliberação no Fórum Nacional das Corregedorias (Fonacor) e premiadas por meio do “Prêmio Corregedoria Ética”, houve, desde 2023, a incorporação da Recomendação 102/2021, que orienta aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do protocolo integrado de prevenção e medidas de segurança voltado ao enfrentamento à violência doméstica praticada em face de magistradas e servidoras. O protocolo prevê medidas de proteção, acolhimento e prevenção, e se pauta em ampla pesquisa que indica especificidades relacionadas às vítimas em comento, como maior dificuldade em denunciar o agressor, descrédito em relação à situação de vulnerabilidade vivida, em decorrência do cargo; vício de vontade por parte da vítima na percepção quanto ao risco efetivo existente; maior exposição em decorrência de cargo público; e (v) o stress decorrente da função exercida por magistradas. Por meio da Diretriz Estratégica 8/2023 e 7/2024, estimula-se a todas as Corregedorias locais para que, em diálogo com a Presidência dos Tribunais, criem condições para a implementação da Recomendação 102/21.

A realização de “ações voltadas à observância da Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação no Poder Judiciário, com a criação de canais integrados de denúncia, fluxo e acompanhamento para os processos administrativos disciplinares envolvendo a matéria, informando a Corregedoria Nacional de Justiça, de acordo com a Resolução 351/2020”, por sua vez, compõe a Diretriz Estratégica 14/2024, mantendo aderência com o macrodesafio de Aperfeiçoamento da Gestão de Pessoas e do Fortalecimento da Relação Institucional do Judiciário com a Sociedade. A realização da “identificação e o acompanhamento de processos disciplinares envolvendo violência contra a mulher, com a criação de fluxo voltado à observância dos Protocolos de acolhimento e escuta aplicáveis”, também compõe um das Diretrizes Estratégicas voltas às Corregedorias (DE 15/2024), guardando aderência com o macrodesafio de Garantia dos Direitos Fundamentais.

Ainda no ano de 2023, a Corregedoria Nacional editou o Provimento n. 147, que dispõe sobre a política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito das atribuições da Corregedoria Nacional de Justiça, bem como sobre a adoção de protocolo específico para o atendimento a vítimas e recebimento de denúncias de violência contra a mulher envolvendo magistrados, servidores do Poder Judiciário, notários e registradores e a criação de canal simplificado de acesso a vítimas de violência contra a mulher na Corregedoria Nacional de Justiça.

Há, ainda, previsão de aplicabilidade da norma a outras situações de violência quando, embora não tenham sido praticadas diretamente por magistrados, haja indicativo de omissão quanto aos deveres de cuidado pela integridade física e psicológica da vítima, na forma da Lei 14.245/2021 e da Lei 14.321/2022 (violência institucional); e, de alguma forma, possam repercutir no pleno exercício das atribuições de magistradas e servidoras do Poder Judiciário. 

As ferramentas estão postas a partir da nova visão do Direito, que clama por uma gestão humanizada e democrática da Justiça. Nas questões de gênero, os desafios ainda são muitos. Cabe a todos nós, partícipes e construtores do futuro do Judiciário, o uso de um olhar transformador, na busca de impactos mais igualitários – dentro e fora dos processos.

Notas_________________________

1 CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Redes Sociais, Companhias Tecnológicas e Democracia. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 25-48, jan./jun. 2020. P. 25-48.

2 JONAS, Hanz. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2006.

3 Sobre os riscos do ativismo judicial ilimitado, ao argumento de que enfraquece o Estado Democrático de Direito porque concentra poderes no Poder Judiciário e contribui para a insegurança jurídica, com efeitos econômicos perversos. Cf. ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da; BARBOSA; Claudia Maria. O papel dos precedentes para o controle do ativismo judicial no contexto pós-positivista. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 115-133, 2015.

4 Nos dizeres de Flávio Dino de Castro e Silva, mesmo os limites à atuação do Judiciário com base na “reserva do possível” devem possuir olhar mais amplo, contemplando o fato de que, no Brasil, o princípio não deve ser visto da mesma maneira que nos países centrais, na medida em que possuem distribuição de renda menos assimétrica, políticas públicas menos universalizadas e controles sociais (não-jurisdicionais) mais efetivos. CASTRO E SILVA, Flávio Dino; A função realizadora do Poder Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. R. CEJ, Brasília, n 28, p. 40-53, jan/mar 2005. 

5 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/agenda-2030/

6 Ao idealizar o Índice de Acesso à Justiça, dois tipos de capitais foram pensados: o Capital Humano e o Capital Institucional. O primeiro foi subdividido em duas vertentes – Cidadania e População – e o segundo diz respeito ao Judiciário. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/02/Relatorio_Indice-de-Acesso-a-Justica_LIODS_22-2-2021.pdf.

7 Relatório Justiça em Números, CNJ, 2023.

8 Trata-se de evento insituído por meio do Provimento n. 154/2023, e regulamentado pela Portaria n. 50/2023, cujos pilares são Eficiência, Transparência, Inovação, Celeridade e Aprimoramento, com o objetivo de premiar iniciativas inovadoras e incentivar o cumprimento das Metas Nacionais e das Diretrizes Estratégicas das Corregedorias. Disponível em https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/premio-corregedoria-etica/.

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