Decisão judicial: operação delicada

27 de fevereiro de 2014

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Luiz-GambogiDois perigos rondam os aplicadores do Direito: um deles, avançar demais, muito, enquanto a sociedade não avança um único passo; o outro, confinar-se nos estritos limites da letra e deprimir a história. No Direito, devemos repelir a interpretação contra legem, mas será sempre bem recebida a interpretação practer legem ou infra legem porque construídas a partir do embate travado entre a realidade e a legislação. A princípio, o intérprete não pode se ligar ao que diz literalmente a lei, mas ficar ali, na lida, lutando, suando, pelejando, garimpando o verdadeiro sentido das palavras e o verdadeiro sentido dos fatos. Diríamos- parafraseando Tobias Barreto – que o operador do direito deve navegar como o canoeiro: “arriba em parte aonde lhe permite a força que imprime ao remo; e em parte aonde lhe permite a força da correnteza”.

A dinâmica interpretativa do Direito não autoriza decisões contra a ordem jurídica. Aqueles que decidem fora da ordem normativa tornam-se socialmente perniciosos porque, em se julgando acima delas, caminham por espaços imaginários de poder e, ainda que tenham objetivos generosos, põem em risco as poucas conquistas dos fracos ao longo da história ao contraporem, à lei, o engodo. Decisões judiciais fora da ordem jurídica são sempre um risco e, por melhores que sejam, não compensam o déficit democrático que produzem.

Porém, sabido que o intérprete não é um ser passivo, que se limita a recolher os dados da realidade; o intérprete espalha as sementes que garantem o ciclo da vida porque está no mundo como um ser ativo, num diálogo contínuo com o mundo que o cerca. O Direito, não obstante conhecido e estudado por métodos científicos, não é uma ciência neutra. Além de sua visão de mundo, a sua opção doutrinária encontra-se ingênita à interpretação. Por essa razão cumpre-lhe exigir de si mesmo que se liberte de seus dogmas pessoais, das aparências e ilusões que nascem dos seus sentidos, enfim, cabe-lhe construir criticamente sua interpretação; deve submeter sua visão pessoal à legitimidade do “querer social” implí­cito na autoridade da lei.

Não é empresa porque a aplicação da norma pressupõe a interpretação do objeto investigado (o fato e a norma) e o intérprete, ainda que dono de racionalidade crítica, não consegue deixar de influir no resultado da interpretação. Ao interpretar, leva consigo o cabedal de sua vida, seus valores, enfim, um conjunto de princípios e ideais, que não são meras opiniões ou hipóteses abstratas nem se confundem com o conhecimento vulgar; em verdade, essa sua matéria subjetiva, no âmbito cognitivo científico, opera como que postulando um sentido, uma direção, atitude que, em si mesma, carrega um grau de conhecimento que penetra e fecunda o objeto investigado.

Para agravar a complexidade dessa delicada operação, que visa interpretar e aplicar a lei, cabe mais uma vez recordar que na história de todos os povos, quase sempre, as teorias jurídicas e a jurisprudência precedem as leis ou contextualizam-nas no tempo. Isto é próprio da função interpretativa, de sua dinâmica. A lei fixa o ordenamento positivo, que é estático; o Direito, no entanto, acompanha a vida, que é dinâmica. Embora comunique ideias, numa sociedade pluralista, o Direito não pode ser visto como um instrumento que veicula uma leitura fechada. Deve estar aberto aos novos anseios sociais e à própria dinâmica da vida, que procura equilibrar a ordem e o movimento ou que procura construir a ordem pelo movimento.

Por último, lembro que o Direito, se se quer democrático e legitimado, deve ser justo em sua essência. A legitimidade, por óbvio, só pode recair sobre o Direito Positivo. Este, no entanto, embora tenha conteúdo definido, não tem conteúdo definitivo porque é datado; portanto, requer o trabalho da hermenêutica, o labor da ressemantização, da contextualização, passando a ser fruto, a nascer de um processo em que a própria juridicidade exerce um papel de natureza reestruturadora na sociedade, missão esta que retira o Poder Judiciário do calvário de conservar o passado e o põe na função de implementar o futuro ao tempo em que enfrenta os conflitos do presente. O duro, o desafiador, o difícil é que, ao realizar essa delicada operação, o magistrado  precisa se equilibrar na leveza do seu espírito de modo a que sua decisão não venha a estrangular a natureza imperativa da ordem jurídica nem venha a criar instabilidade, com posições que se colocam fora dos marcos constitucionais e legais. Em suma, aplicar o Direito equivale a dizer ao pássaro: você tem asas, mas encontra-se numa gaiola linguística; se quer ser pássaro, cante!