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Criminologia feminina – A emoção e a paixão nos crimes da mulher

5 de maio de 2004

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Professora Universitária. Mestre em Direito pela PUCRS.

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E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres. Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas a vida fere mais fundo e mais fecundo. E o sexo está nelas, e o mundo está neles, e a loucura reside nesse mundo.

Vinícius de Moraes.

Mulher e criminalidade. O tema, apesar de não constituir nenhuma novidade, envolve e apaixona o pensador do Direito.

As pesquisas já realizadas reconhecem a menor incidência dos crimes praticados por mulheres e algumas das explicações para este fenômeno podem ser encontradas na célula familiar e no meio em que vivemos e que nos fornece os modelos de conduta, no que se denomina, especificamente no âmbito deste trabalho, como cultura.

Para a atribuição do gênero, o nascimento é um momento crucial. Não se pode compreender o papel do gênero, segundo Robert Stöller, sem dar-se o devido crédito ao momento da atribuição, o que, por sua vez, põe em movimento todo um processo de aculturação que ensina à menina ser ela do sexo feminino e o que, como mulher, deve pensar, sentir e agir na família e no segmento da sociedade em que a família representa e atua.

A partir do nascimento, momento do assinalamento do sexo, a rotulação que médicos e familiares realizam do recém-nascido vem a se converter no primeiro critério de identificação de um sujeito. A partir deste momento, a família inteira da criança posicionar-se-á em respeito a este dado e será emissora de um discurso cultural que refletirá os estereótipos que homens e mulheres sustentarão para a criação adequada daquele corpo identificado.

O conjunto de expectativas acerca dos comportamentos sociais apropriados para pessoas que possuem determinado sexo sanciona como pertinentes ao gênero feminino – quer dizer, como características positivas – uma série de condutas que, ao mesmo tempo, possuem uma baixa auto-estima social (temor, passividade, dependência). Estes estereótipos estão tão profundamente arraigados que são considerados como a expressão dos fundamentos biológicos do gênero.

Lacan assegura que as estruturas de comportamento e representação ultrapassam os limites da consciência e o peso das convenções acaba por aprisionar a mulher dentro dos limites do que lhe é “permissível”. Todavia, a mulher, assim como o homem, pratica homicídio, roubo e tráfico de entorpecentes, para ficarmos apenas nos crime mais usuais. Os motivos que a levam a tais delitos não diferem em muito dos que impelem o homem a cometê-los. Mas e quando a mulher pratica em si mesma o abortamento, quando consente que outra pessoa provoque a morte do fruto de suas entranhas, quando abandona o filho recém-nascido, qual o móvel que norteia a sua conduta?

Dissociar a criminologia feminina da construção cultural imposta aos dois sexos restringiria este trabalho à periferia da questão que nos interessa enfrentar, ou seja, a dicotomia entre masculino e feminino, entre discurso cultural e discurso jurídico, entre opressor e oprimido. Analisados estes aspectos, ver-se-á a correção da assertiva de Alessandro Baratta de que a questão feminina tornou-se um componente privilegiado da questão criminal.

Não é possível separar os crimes próprios da mulher do paradoxo da existência de uma violência sutil, ressalta Bourdieu, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação ou do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento.

A dualidade latente nestes crimes é que neles a mulher é, ao mesmo tempo, autora e vítima do delito. Autora, porque realiza a conduta típica, ilícita e culpável prevista na lei penal. Vítima, porque o Estado deixa de cumprir em relação a ela com uma de suas atribuições primordiais: a de garantidor de direitos, fazendo surgir a co-culpabilidade estatal.

A omissão do Estado, significativamente relevante no que diz respeito à mulher e o seu efetivo acesso à cultura, no entendimento de Habermas, faz com que qualquer regulamentação especial, destinada a compensar as desigualdades da mulher, venha a depender do modo como se interpretam as experiências e situações existenciais típicas dos sexos. Através dos ‘efeitos de normalização’, produzidos pela legislação e pela justiça, eles se tornam, muitas vezes, parte do problema que em princípio eles deveriam resolver.

Penetrar na emoção norteadora da conduta da mulher que pratica ou consente no abortamento, que mata o próprio filho durante ou logo após o parto ou que o abandona logo após seu nascimento, constitui um desafio e uma aprendizagem. Significa uma tomada de posição, o começo de um pensamento e o relancear de um novo olhar sobre a mulher e a sua vida.

Empreender esta análise e desvendar este universo de emoções significa levantar o véu que encobre o sentimento feminino mais recôndito e profundo.

Por essas razões podemos afirmar que em nenhum outro ramo do ordenamento jurídico brasileiro se encontra tanta emoção quanto no Direito Penal, O crime possui essa característica, mexe com as paixões, inflama os discursos, reacende o verbo.

Os crimes próprios da mulher são solo fecundo para a análise da norma em cotejo com a realidade social. Desde a primeira inserção da lei dessas figuras delituosas, procurou o legislador pátrio diminuir a culpabilidade da mulher delinqüente. As penas aplicáveis aos delitos, variando no tempo, sempre foram significativamente mais brandas do que nos demais crimes contra a vida ou contra a saúde. Reconhece a nossa lei repressiva que o motivo do crime não é o motivo vil e abjeto, mas sim a emoção relevante que domina a gestante, a infanticida e a mãe que deixa ao desamparo o filho de poucos dias, levando-a a atos dolosos e nefastos, socialmente repudiados e criminalmente tipificados.

Nestes delitos, vemos a mulher na plena fragilidade de sua condição humana, norteada por seus desejos, ódios e afetos. Através deles podemos penetrar em sua psique e desvendar os tortuosos caminhos que a levam ao delito. Com o seu estudo, compreendemos a alma humana e exercitamos a compaixão.

E é nessa esteira que se posiciona Hungria, afirmando que o direito penal não é o que se contenta com o eruditismo e a elegância impecável das teorias, mas o que, de preferência, busca encontrar-se com a vida e com o homem para o conhecimento de todas as suas fraquezas e misérias, de todas as infâmias e putrilagens, de todas as cóleras e negações e para a tentativa, jamais desesperada, de contê-las ou corrigi-las na medida da justiça terrena.

A sexualidade feminina e o enfrentamento da problemática do gênero são questões fundamentais quando se busca empreender a caminhada que nos conduzirá à compreensão dos crimes próprios da mulher e a forma como a cultura verticalizou as relações entre homens e mulheres, diferenciando-os fundamental e principalmente em razão do sexo com o qual nasceram.

Sexo e gênero não estão de maneira direta relacionados. Por sexo, segundo Emilce Dio Bleichmar, compreende-se os componentes biológicos e anatômicos e o intercâmbio sexual propriamente dito, enquanto que sob o substantivo gênero se agrupam os aspectos psicológicos e culturais da masculinidade/feminilidade, num sentir-se homem ou mulher.

Stöller sustenta que masculinidade e feminilidade são uma densa massa de convicções, uma soma algébrica de “se”, “mas” e “é”, não um fato incontroverso. Tais convicções não são verdades eternas; elas se modificam quando as sociedades se modificam.

Qualquer análise da condição feminina no Direito Penal deve passar pelas instituições que formam a sociedade. A Família, a Igreja e o Estado, objetivamente orquestrados, tinham em comum, até época recente, o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes e, com isso, perpetuavam o discurso da desigualdade entre os gêneros.

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas. E nela que se impõe a experiência precoce da divisão social do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita pela linguagem.

Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero sempre pronto a condenar todas as faltas femininas à decência e a reproduzir uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, conforme Muel-Dreyfus, esta inculcava explicitamente uma visão familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres.

O Estado, por sua vez, acentua Bourdieu, veio a reforçar as prescrições e as proscrições do patriarcado privado com as de um “patriarcado público”, inscrito em todas as instituições encarregadas de gerir e regulamentar a existência quotidiana da unidade doméstica.

Alicerçada neste tripé – Família, Igreja e Estado – funciona a máquina simbólica da desigualdade entre os gêneros que, com inegável força, alcança as leis.

Bourdieu situa os lugares tidos como “naturais” e “permissíveis” para cada sexo, afirmando que é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ou no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos.

A criminalidade da mulher está basicamente ancorada em sua sexualidade. O aborto autopraticado ou consentido, o infanticídio e o abandono de recém-nascido são delitos originários das relações sexuais frutificadas. Feto, nascente ou recém-nascido tornam-se sujeitos passivos de crimes quando a pobreza, a marginalidade, a dificuldade de acesso aos meios de produção, o desamparo, a desesperança, instalam-se no coração feminino e conduzem-na ao morticínio ou abandono da prole.

A grande transgressão da mulher, relata-nos o Gênesis contido no Velho Testamento, foi o descobrimento do sexo. Analisando as punições de Deus às suas criaturas, Rose Marie Muraro assim as explica: uma vez adquirido o conhecimento, o homem tem que sofrer. O trabalho escraviza-o. E por isso ele escraviza a mulher. A relação homem-mulher-natureza não é mais de integração, e sim de dominação. O desejo dominante agora é o do homem. O desejo da mulher será para sempre carência e é esta paixão que será o seu castigo. Daí em diante ela será definida pela sua sexualidade, e o homem por seu trabalho.

A emoção, a paixão e o exercício da sexualidade estão indissoluvelmente ligados nos crimes da mulher. Para Aníbal Bruno, a emoção e a paixão são forças que condicionam o comportamento individual-social do homem – a emoção, que é um movimento súbito da alma, de carga afetiva, e a paixão, que é a sua forma contínua e duradoura. Da sua intensidade depende a influência que possam ter sobre a normalidade do entendimento e do processo de volição. Mas, apesar de sua incidência em quase todos os delitos, nosso sistema penal não os reconhece capazes de excluir a imputabilidade, mesmo nos casos em que venham a obscurecer o entendimento, impedindo a livre determinação.

A emoção e a paixão, vistas como integrantes da psicologia do ser humano, não excluem a responsabilidade penal, mas atenuam a pena em delitos comuns. Então, nada mais justo que se reconheça a força desses sentimentos que norteiam a conduta da mulher que delinqüe nesses crimes tão especiais.

Como bem acentua Aníbal Bruno, não é propriamente a emoção que justifica o abrandamento penal, mas o motivo em que ela se origina, e os motivos para a conduta da mulher fundam-se, principalmente, nas questões sociais ou de honra.

Existe, ainda hoje, apesar de menos acentuado em algumas sociedades, um verdadeiro apartheid feminino, cuja essência fundamenta-se na própria cultura. Leciona Rodrigo da Cunha Pereira que, apesar da proclamação da igualdade pelos organismos internacionais e pelas constituições democráticas do fim deste século, não está dissolvida a desigualdade de direitos entre os gêneros. A mulher continua a ser objeto da igualdade enquanto o homem é o sujeito e o paradigma desse pretenso sistema de igualdade.

Os direitos à diferença, materializados na igualdade formal, e os direitos à compensação das desigualdades, na material, devem andar juntos. E somente com a coexistência de ambos será possível, se não erradicarmos, pelo menos diminuirmos significativamente os índices de criminalidade feminina e afastarmo-nos, definitivamente, da afirmação de Tove Stang Dahl de que até agora, os estudos sobre as mulheres têm sido, em grande medida, estudos da desgraça.

Corretas, certas e justas modificações nos diplomas legais devem ser buscadas no sentido de alcançar-se o verdadeiro princípio da igualdade entre os gêneros, marco de uma sociedade que persevera na luta pela diminuição das desigualdades sociais, com o que, conseqüentemente, veremos uma significativa redução dos crimes próprios da mulher.