Covid-19 e o aumento da judicialização

9 de maio de 2020

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O Brasil vivencia um dos piores cenários da história ao se deparar com o estágio de evolução da covid-19. Muito tem se especulado sobre os prejuízos decorrentes da pandemia do coronavírus, reflexos financeiros, sociais, sanitários, prisionais, contratuais, trabalhistas, políticos, fiscais, tributários, dentre muitos outros. Surge então a preocupação sobre a excessiva judicialização decorrente dos prejuízos causados em razão da pandemia, mas, principalmente, do polêmico isolamento social.

Se antes a preocupação era apenas com as demandas em face do sistema de saúde, público e privado, para garantia do atendimento adequado aos acometidos pelo vírus, diversas outras frentes preocupam o Judiciário em relação ao número de demandas que podem ser ocasionadas pelo rompimento das relações contratuais e sociais.

A partir da Constituição de 1988, quando se redemocratizou o País, o Judiciário passou a ser demandado por grande parte da população brasileira. A sociedade descobriu o Poder Judiciário como verdadeiro conduto de cidadania. Hoje é evidente a existência de uma carência crônica de recursos, cujos números ultrapassam em muito a capacidade de atendimento tempestivo das demandas submetidas ao Judiciário, o que justificou o aumento da busca pelos meios alternativos de resolução de conflito. Estes últimos, ainda estão em crescente adaptação no Brasil, permanecendo o Poder Judiciário o mais procurado para dirimir controvérsias, públicas e privadas.

Não demorou muito para que os tribunais começassem a identificar a crescente distribuição de demandas, em razão da pandemia. No dia 9/4/2020, o Ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal, divulgou dados confirmando a distribuição de 806 processos relacionados à crise do novo coronavírus. De acordo com o Ministro, foram ajuizados 603 habeas corpus, 26 ações diretas de inconstitucionalidade, 30 reclamações, 26 mandados de segurança, 21 petições, 20 ações cíveis originárias, seguidos de manifestações de liberdade em processos de extradição, ações diretas de descumprimento de preceito fundamental, entre outros.

O mais assustador? Tudo isso em menos de 30 dias. Quantas ações estão sendo diariamente ajuizadas perante os Tribunais de Justiça Estaduais e Federais do País, para o fim de salvaguarda de direitos que demandam imediatamente uma resposta, que nem sempre chega tempestivamente? Não é por falta de esforço.

O Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro João Otávio de Noronha, divulgou o resultado do trabalho remoto no primeiro mês de isolamento social, tendo sido julgados pelo STJ aproximadamente 70 mil recursos, e realizadas 25 sessões virtuais.

Uma semana após a Organização Mundial da Saúde reconhecer a pandemia, a rotina do STJ foi alterada com suspensão de todas as sessões presenciais, priorizando o regime remoto de trabalho – Resolução STJ/GP 5. Os prazos processuais também foram suspensos, conforme orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Fato é que inúmeras demandas estão surgindo na tentativa de minimizar tais prejuízos, sem contar na judicialização das próprias políticas públicas, o que causa sensível indisposição sobre o limite das competências e a independência dos Poderes, face às suas funções constitucionais, principalmente no que tange ao princípio democrático.

É forçoso lembrar que, apesar da reconhecida legitimidade do Poder Judiciário para proferir decisões sobre políticas públicas, tal legitimidade tem limites, posto que a garantia de sua independência só pode ser feita através do sistema de checo and. balances – freios e contrapesos – que há um só tempo subsume a harmonia e a independência entre os Poderes.

O fenômeno da judicialização não é uma escolha do Judiciário, ao contrário, deriva no primeiro momento da legitimidade da jurisdição constitucional, que tem origem na teoria do Poder Constituinte. Exatamente em razão do sistema de freios e contrapesos, o Judiciário atua corrigindo atos oriundos de outros Poderes e preenchendo lacunas decorrentes da omissão na execução de políticas que deveriam estar previamente disponibilizadas aos seus destinatários, principalmente quando se trata de direitos fundamentais e sociais.

Tais concepções, alinhadas ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, transformaram o Poder Judiciário na última tábua de salvaguarda de direitos que são, consequentemente, esquecidos ou desrespeitados pelos outros Poderes. A dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político, como fundamentos da República e a titularidade do poder pelo povo reforçam a primazia do princípio democrático na ordem constitucional. A judicialização das políticas públicas, fez com que o Poder Judiciário ganhasse papel de destaque assumindo o protagonismo nas decisões e na efetiva materialização dos valores constitucionais protegidos, provendo escolhas morais sobre temas bastante controvertidos.

Assim, não sendo o Estado capaz de atender à grande demanda de uma sociedade cada vez mais complexa, o Poder Judiciário precisa atuar cada vez de forma mais inovadora, assumindo a árdua tarefa de relativização de direitos e princípios, quando os insumos são insuficientes para atendimento de todas as demandas sociais.

Nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, dentre as causas dessa judicialização estão, em primeiro lugar, o reconhecimento da importância de um judiciário forte e independente como elemento essencial para as democracias modernas. Em seguida, está certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentares em geral. Finalmente, o fato de que os próprios políticos preferem, muitas vezes, que o Judiciário seja a instância decisória sobre certas questões polêmicas, sobre as quais exista desacordo moral razoável na sociedade, evitando assim o próprio desgaste.

Por outro lado, tal centralização levará ao Judiciário inúmeros processos sobre as diversas questões que envolvem os aspectos paralelos à pandemia, e que vão muito além das políticas públicas. Não se trata de uma prospecção futura, pois os processos já começaram surgir.

Diariamente, ações estão sendo ajuizadas por contratos descumpridos, indenização por morte decorrente da falta de leitos adequados pelo Estado, habeas corpus para progressão de regime de pacientes integrantes de grupos de risco, ações trabalhistas por acordo abusivos ou demissão sem pagamento dos direitos adquiridos pelo trabalhador, ações de despejo por falta de pagamento de alugueis e infinitos fundamentos para ações de cobrança.

O Tribunal Regional Federal da 2a Região divulgou o aumento do número de decisões proferidas pela Justiça Federal, totalizando mais de um milhão de atos judiciais entre 16/3 e 19/4 de 2020.

O CNJ tem monitorado o número de ações ajuizadas em razão da covid-19, bem como a classificação por temática, ficando entre as mais utilizadas a paralização de atividades, mobilidade, regime prisional, sistema penitenciário e repasse de verbas públicas.

Outra preocupação que não aparece de forma expressiva nas estatísticas mas que é líder de mobilização no País, sem dúvida, é o aumento da violência doméstica contra mulher e contra crianças e adolescentes no período de isolamento. O fato de mulheres e crianças estarem em casa no período de quarentena, com a família, não significa necessariamente que estejam protegidas da violência. Estudos comprovam que muitas agressões e abusos acontecem dentro do ambiente familiar. A falta de suporte do Estado no período de isolamento, desencoraja ainda mais as denúncias e aumenta desastrosamente os índices de violência e morte.

É preciso o alinhamento de uma forma alternativa de atendimento para essas famílias, de modo que, longe da vida social, tais abusos não se perpetuem e as vítimas se sintam devidamente protegidas e acolhidas para fazer a denúncia e cortar o circulo de violência estabelecido.

É inevitável que os tribunais desenvolvam centrais alternativas de resolução de conflito para incentivar a conciliação de demandas decorrentes do período de crise, evitando que tais processos sigam o trâmite normal, sob pena de inviabilizar a atividade jurisdicional, que já carece de recursos adequados e suficientes, na proporção do número de demandas.

Para tanto, é imprescindível uma ação conjunta de todos os Poderes na tentativa de minimizar os prejuízos causados pela pandemia, sob pena de infinitas ações judiciais serem ajuizadas na expectativa de reordenar o desastre social, após a descoberta do vírus.

Incumbe ao Poder Judiciário a importante missão constitucional de promover o tratamento dos conflitos, sempre objetivando assegurar e harmonizar dialeticamente a fruição dos direitos fundamentais e imputar o respeito e o cumprimento dos deveres fundamentais, em especial ao Poder Público, mesmo em tempos de crise.

NOTA__________________________________

1 BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: Direito e política no Brasil Contemporâneo. In Tratado de Direito Constitucional: constituição do século XXI. Vol. 2/ coordenadores Felipe Dutra Asensi e Daniel Giotti de Paula. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.