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Contradictio

21 de dezembro de 2016

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Sergio Ricardo do Amaral GurgelPara aqueles que se dedicam ao estudo de História, nada mais básico do que a lição sobre os períodos de transição, em que o novo e o velho coexistem, sendo natural que o processo de renovação fique marcado como uma fase de profundas contradições. Nenhuma mudança ocorre de forma abrupta, sem que os primeiros sintomas não possam ser sentidos em tempos ainda remotos, assim como nenhuma forma de pensar se esvai de imediato, sem capacidade de dar sinais de permanência além do seu tempo.

A difusão dos ideais cristãos nas bases do Império Romano do Ocidente e o avanço dos ideais iluministas sob a égide do Ancién Regime são apenas alguns de tantos outros exemplos de formas antagônicas de visão de mundo que subsistiram em uma mesma época, e em um mesmo lugar. Embora não tenha perdurado o tempo que esperavam seus idealizadores, pode-se afirmar ter sido bem-sucedido o projeto que estabelecia a convivência harmônica entre a doutrina cristã e a política romana nas últimas décadas que antecederam a sua derrocada, do mesmo modo que os déspotas esclarecidos souberam combinar as bases do absolutismo com certos traços do liberalismo econômico.

Atualmente, com a evolução tecnológica que nos coloca em contato com os povos de diversos cantos do mundo na velocidade da luz, tornou-se ainda mais difícil identificar os momentos de emersão dos movimentos de transformação e de distensão das forças de conservação, tamanha é a fugacidade de tudo aquilo que carrega em si a pretensão de acomodar ou revolucionar. Os choques entre o antigo e o moderno foram aos poucos se tornando uma constante, e o tempo de permanência de um sobre o outro acabou tão reduzido que não há mais como diferenciá-los. Ultrapassados seriam apenas aqueles que ousassem negar fazer parte desse paradoxo.

O primeiro século do segundo milênio se destaca de modo a entrar para a historiografia mundial como o apogeu das contradições. Não importa para onde lancemos nosso olhar, quase tudo que se observa está marcado por essa característica, como a pirâmide de vidro defronte ao Louvre. No campo das artes, por exemplo, não há mais a música de vários anos no top ten, tal fato, aliás, sequer desperta interesse algum por parte do público. Nada de errado também com o som do violino “zipado”em “mp3”, nem com a guitarra de volta ao vinil. Ultimamente, filhos, netos e bisnetos são capazes de ouvir a mesma música, sem aquele saudosismo que se tornava um grande entrave entre as diferentes gerações. No cinema, o fato de a obra de Stanley Kubrick, A Laranja Mecânica, continuar sendo reverenciada pelos mais jovens, não é por força do acaso, apesar de seu lançamento em 1976, pois nada mais profético do que a história de uma gangue de adolescentes drogados que estupram e matam ao som da Nona Sinfonia de Beethoven e de Sing In The Rain, e que ao deixarem a puberdade acabam ocupando cargos públicos, inclusive na polícia, imbuídos de um inexplicável desejo de constituir família.

De igual modo se revela o ambiente político. Ninguém em sã consciência dirá sentir saudade da época em que se instalou a Guerra Fria e das tensões apocalípticas inerentes às suas práticas, mas, na ocasião, ao menos sabíamos o que se pretendia dizer com os termos “esquerda”, “direita”, “golpe”, “revolução”, entre outros chavões muito usados na atualidade, que agora se tornaram de difícil compreensão. Sim, um dos mais procurados terroristas integrantes do Estado Islâmico era cidadão inglês. Diante desse fato, não há razão para espanto quando comunistas tiram “selfie” em Nova Iorque, enquanto expropriados e despossuídos defendem o direito ao latifúndio. Fato recente que ilustra muito adequadamente essa estranha realidade foi a união das ditaduras da América Latina em favor da preservação da ordem constitucional brasileira que, segundo seus líderes, esteve ameaçada pelo processo de impeachment. Não faz muito tempo que torcidas organizadas nos estádios de futebol travavam duelos à parte do espetáculo, ostentando gigantescas bandeiras de cunho ideológico: algumas com desenhos da cruz suástica, enquanto outras ilustradas pelas imagens de Aiatolá Khomeini. Considerando o tempo e o lugar, nem mesmo Salvador Dali seria capaz de captar o prenúncio surreal. Se não fosse fruto da ignorância, o diagnóstico seria esquizofrenia.

A proibição do uso de burquines nas praias francesas dispensa maiores argumentos para o convencimento de que as contradições atingiram o seu ápice também no âmbito dos costumes. Quem poderia imaginar mulheres muçulmanas proclamando “temos o direito de vestir o que quisermos”, em manifestação de repúdio às medidas repressivas instituídas pelo governo de um país conhecido como berço do Iluminismo?

No Brasil, onde a contradição vem sendo a temática desde a exploração da madeira que nos deu o nome, há uma inestimável coleção de eventos paradoxais. As notícias sobre os metais preciosos na América Espanhola atraíram o colonizador que, em um primeiro momento, teria que se contentar em explorar os nativos que sequer haviam descoberto a roda; a catequização era o que assegurava o sucesso do tráfico negreiro; os regimes de colonato e parceria eram chamados de mão de obra livre; o Rei brasileiro era português, assim como a Volkswagen do Brasil era alemã; a Constituição de 1824 “tripartiu” o poder em quatro; o cafezinho era a base da economia do país de dimensão continental; os cangaceiros juravam devoção ao Padre Cícero, e, no país membro das Nações Unidas, tiveram suas cabeças expostas em um museu nordestino; os integralistas nacionalizaram o nazifascismo e faziam do “Anauê” sua saudação; o policial é “caveira” e o traficante é “amigo dos amigos”; no Congresso, as ofensas proferidas pelos parlamentares são antecedidas pelo “Vossa Excelência”; nas eleições diretas, depois de 20 anos de ditadura, foi eleito o “Prefeito Biônico”; o impeachment é chamado de golpe e o golpe é chamado de revolução.

O Direito não ficou imune às nuances da contradictio, e, atualmente, as circunstâncias fazem dele sua maior expressão. Com a maxima venia, o que se podia esperar daqueles que fazem uso sistemático das expressões em latim? Não faz tanto tempo assim que as perucas brancas oficializadas por Luiz XIV deixaram o figurino dos juízes na Inglaterra: cortaram as cabeças, mas preservaram os cabelos. No Brasil, o padrão francês não teve vida tão longa, mas ainda assim os crucifixos por detrás do magistrado togado, sentado sobre uma cadeira de estilo colonial, ainda faz parte do cotidiano. Isso não teria importância, diriam os mais tradicionais, apenas uma homenagem aos lendários precursores do Poder Judiciário. O problema é que nesse cenário há quem incorpore personagens de tempos ainda mais remotos, quando a fumaça não era do bom direito, mas sim da carne humana.

O sistema jurídico brasileiro tem sido afetado sobremaneira pelo clamor de uma sociedade absolutamente descrente em relação a tudo que se apregoa em um regime democrático. Tudo aquilo que por muito tempo levou-se longos anos para se conquistar, como, por exemplo, o direito de subscrever este artigo sem antes verificar se os consulados estrangeiros estariam abertos, hoje são vistos com certo grau de desconfiança, até mesmo por aqueles que pensam da mesma forma, mas não sabem disso. Palavras como liberdade, sufrágio universal e acesso à propriedade, valores republicanos historicamente consagrados, contemplados pelos países mais livres do planeta, muitas vezes são ouvidas e entendidas como slogan marxista ou coisa do gênero. Esse contrassenso intelectual cria o ambiente ideal para as práticas incompatíveis com a vigente ordem constitucional e, estranhamente, acabam sendo aplaudidas pelo público.

Nesse contexto a contradição mais uma vez se faz presente, pois nos dias atuais, em pleno ano de 2016, mostra-se prudente quem vem hesitando em tecer críticas às medidas repressivas do Estado. Arriscam-se aqueles que aderem à ideia de que a prisão do réu no curso do processo só deve ocorrer quando demonstrada a extrema e comprovada necessidade da medida, fundamentada no periculum libertatis; que a interceptação das comunicações telefônicas só se justifica quando não há outro meio de se produzir a prova, sendo vedado o seu uso para outros fins que não seja o de constituir elemento de convicção do juiz em procedimento criminal; que os presos não podem ser expostos à imprensa como se fossem caças prontas para o abate; que as penas devem ser aplicadas com misericórdia. Discursos dessa natureza geram suspeita por parte da grande maioria, inclusive daqueles que já nasceram sob o império da atual Constituição da República. Por que recear comungar dessa opinião em um Estado Democrático de Direito, fundamentado na cidadania e na dignidade da pessoa humana, enquanto os defensores do uso dos instrumentos processuais como via adequada para sancionar o homem se sentem acobertados por um ambiente que não lhe deveria ser favorável?

O tempo agora é de megaoperações policiais batizadas com nomes de efeito, como “Esfinge”, “Zelotes” “Cavalo de Troia” “Juízo Final”, à imagem e semelhança do que fazia a Schutzstaffel, rotulando suas investidas com termos épicos ou capazes de subjugar seus opositores. O momento é propício para que sejam criados mais crimes com penas cada vez mais altas, bem como aperfeiçoados os mecanismos de denúncia anônima, incentivada a delação premiada e consagrada a execução provisória da sentença condenatória. E que tudo seja gravado, divulgado pela imprensa e exposto pelas redes sociais para um grande espetáculo de linchamento público. Como disse Saint-Just na tribuna da Convenção, durante o processo da Revolução Francesa, chegou a hora de colocar o terror na ordem do dia.

O que muitos ainda não sabem é que esse mesmo legislador que dá tratamento penal a quase tudo, ignorando o Princípio da Fragmentariedade, é o mesmo que adere aos sistemas do front-door e do back-door destinados a reduzir o encarceramento do indivíduo ou antecipar o quanto antes a sua liberdade. Em relação aos condenados, a legislação penal prevê a substituição da pena privativa de liberdade por multa, mas não sendo possível fazê-lo será transformada em restritiva de direitos. Entretanto, há casos em que a conversão é vedada, remanescendo, então, a aplicação do instituto do “sursis”, no qual fica suspensa a execução da pena mediante um acordo que envolve uma série de obrigações por um prazo até que seja extinta a punibilidade. Não obstante a existência dos inúmeros institutos que evitam o confinamento, se o recolhimento à prisão for inexorável, haverá ainda várias outras benesses, como a progressão de regime, a remição da pena pelo tempo de trabalho e estudo, a saída temporária, o livramento condicional, a comutação da pena, a anistia, a graça e o indulto, ou, quem sabe, a fuga em massa, que no Brasil, para não perder o foco da contradição, ocorre até mesmo em presídio de segurança máxima.

Essa esdrúxula realidade nos permite afirmar que tudo não passa de um grande teatro, assim como as leis abolicionistas na época do Império, “leis para inglês ver”. A prisão de grandes magnatas, ainda que em caráter provisório, faz com que os mais humildes não se sintam tão desfavorecidos, assim como a morte de delinquentes das pequenas comunidades em confronto com polícia dá às classes dominantes uma sensação passageira de segurança. É o mundo das novelas para os pobres e dos heróis dos quadrinhos para os ricos. O custo desse show de horrores que a televisão faz parecer apenas um reality, já está sendo computado. Cidadãos com mais de setenta anos estão sendo levados para as celas, mesmo quando extremamente debilitados de saúde, acumulando excrementos nas próprias calças durante dias por falta de condições apropriadas no estabelecimento prisional, enquanto adolescentes internados ou em semiliberdade dividem espaço nos dormitórios com gigantescos formigueiros. Quando um chefe de família é alvejado por um tiro deflagrado por um marginal, que fez escola nos presídios abarrotados de detentos, que estão prontos para qualquer sorte, e quando a imagem de um inocente é exposta na internet para ser condenado ao vexame eterno, é a sociedade que agoniza, todos os cidadãos que, independente da ideologia, mais cedo ou mais tarde sentirão o sabor da derrota.

Inspirados na filosofia de Hegel, podemos esperar com otimismo que as inúmeras contradições que devemos ainda enfrentar sirvam como força motriz para a nossa evolução. Todavia, para que desse modo funcione, é preciso que suas mazelas sejam percebidas, pois, caso contrário, seus efeitos serão opostos e nos conduzirão a um longo período de escuridão. Aguardemos a síntese.