Compromisso com a Magistratura

5 de julho de 2004

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Registro que era extremamente difícil, em 1986, 1987, quando elaborávamos a Constituição Federal, nesta Casa, fazer com que essa temática interessasse a mais alguém, além de advogados, juizes e promotores.

Sentavam-se à mesa para discutir essa temática apenas o grupo representativo dos juízes — no caso específico, o então Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Desembargador Odir Porto; representantes da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho; a CONAMP; enfim, os magistrados. Estava presente o Dr. Araldo Dal Pozzo, monitorado pelo então Secretário de Segurança do Estado de São Paulo, hoje Deputado Luiz Antonio Fleury Filho. A verdade é que tínhamos nesse debate apenas os 3 setores. Curiosamente, 3 setores que não se entendiam — não só entre si, mas também internamente.

Havia disputas entre advogados trabalhistas e advogados comuns. A OAB representava, na perspectiva dos advogados trabalhistas, exclusivamente os interesses da advocacia “comum”— entre aspas. Não se sentiam os advogados trabalhistas representados pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Portanto, participavam do debate os advogados trabalhistas, que falavam mal dos advogados comuns e vice-versa. O mesmo se passava com os juizes e com os promotores, já que os Ministérios Públicos eram fortíssimos. Havia um triunvirato naquele momento: o Dr. Araldo Dal Pozzo, o Dr. Cláudio Alvarenga… Todos eles disputavam espaços.

Na verdade, a experiência que tive naquela época, Deputada Zulaiê Cobra, foi curiosa, porque a preocupação que se punha sobre a mesa era exclusivamente sobre quem era mais e quem deveria ser menos. Esse é um fato. Não estou dizendo isso para fazer retaliação. Não. É um fato concreto. Ou seja, qual pedaço do Estado — ou a quantidade do pedaço do Estado — deveria ser apropriado por um grupo ou por outro? E era esse o critério da discussão. Tanto é que a Constituição de 1988, ao redesenhar as estruturas judiciárias, o fez em termos de crescimento de poderes dessas estruturas, mas não caminhou para algo que hoje é a temática relevante, qual seja, a eficiência na prestação do serviço.

É claro que já se passaram mais de 10 anos e nós conseguimos a maturidade necessária para perceber que esses setores — os advogados, os membros do Ministério Público e os juizes — são servidores e não proprietários desses espaços.

Por isso, meu caro Presidente, a discussão tem de ser exatamente no sentido de nos dar legitimidade. A eficiência é condição de legitimidade, significa prestar serviço de qualidade. E nós temos a responsabilidade de fazê-lo.

Daí por que a discussão permeia basicamente essa modificação, ou essa reforma, ou essa atualização constante. Entendo que é um processo que se desenvolve no tempo, com momentos de catarse, de disputa, de ódio e depois de racionalidade.

Aprendi nesta Casa, com absoluta tranqüilidade, que só se consegue a racionalidade no processo legislativo se for dado espaço para o ódio. Só depois de derramadas as lágrimas, dados os pontapés, rangidos os dentes é que conseguimos fazer a racionalidade.

Creio que, neste momento, perceberam nitidamente — quer os advogados, presididos pelo Dr. Roberto Busato, quer o Ministério Público, quer a Magistratura — que as condições para a permanência de um poder democrático estão vinculadas à eficiência.

Esse organismo comum está exatamente fulcrado na eficiência. Ao dizer que está fulcrado na eficiência, evidentemente teremos a concordância de todos. A questão é saber como poderemos atingir essa eficiência e tornar o Poder Judiciário efetivamente democrático e confiável nesse sentido.     Temos como regra principal e inicial a transparência. Ela é condição sine qua non para tudo. Vale, com muita força, para o Ministério Público, para a Magistratura e para os advogados.

Creio que este “o que fazemos” passa por uma integração completa dentro das áreas do Judiciário. Hoje não temos condição de ter, por exemplo, conhecimento do custo nacional do sistema judiciário. Não há nenhum sistema agregado e analítico que possa estabelecer uma estratégia nacional do Poder Judiciário. E a demonstração da inexistência da estratégia nacional consensuada entre os diversos setores da Magistratura fica muito clara na mão dos Srs. Deputados. Não falo por teoria, mas por memória, o que os senhores vivem hoje.

Quem dos senhores não foi procurado, durante a votação do Orçamento, por presidentes de Tribunais Regionais Federais pedindo emendas para o seu tribunal, que, digamos, turbinam a sua pretensão? Mas como a Constituição de 1988 determina a indicação da fonte, normalmente são os recursos de um outro tribunal. É ou não é assim? E os Deputados das respectivas regiões se vêem compelidos a apresentar as emendas, sob pena de terem um mecanismo de retaliação na relação com a própria estrutura judiciária.

Eu , às vezes, quando estava aqui, tinha de apresentar pedidos de emendas para os Tribunais Regionais do Trabalho ou para os Tribunais Regional Federais. Curiosamente, um mordia o outro. E não havia nenhuma consistência nesse processo. Precisamos trabalhar nesse sentido. Ou seja, a consistência nos dará condições de discutir as nossas ineficiências, porque senão estaremos atomizadamente tentando cobrir nossas lacunas. E a cobertura das nossas lacunas pela atomização agora existente é sempre uma discussão do mais: mais salário, mais prédios, mais papel, mais funcionários, mais isso, mais aquilo. E não há nenhuma visão nacional de suas necessidades.

Em relação ao próprio critério da criação de varas, vamos falar claramente, com tranqüilidade, sem ocultar nada. Se não temos um objetivo definido e uma visão nacional para qualquer projeto para a criação de varas federais ou do trabalho, qual será o critério? Nós sabemos, o Deputado Greenhalgh já apontou: o meu critério.

Os senhores acham que a Justiça Federal não tem responsabilidade também com a Justiça Estadual, ou que o Supremo Tribunal ou mesmo o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho não têm responsabilidade também com as eventuais deficiências da Justiça Estadual? Não podemos nos concentrar no sentido de identificar os nichos de problemas e trabalhar junto aos Governadores dos Estados e às Assembléias Legislativas para solucioná-los? Temos responsabilidade ou não é problema nosso? É. Isso só será possível no momento em que tivermos, então, a possibilidade de renunciar às nossas pretensões proselitistas e começar a caminhar com humildade para um entendimento em que possamos fixar como chegar a essa eficiência. Creio que depende do exame lúcido e, observem bem, sem ódios em relação ao passado. Sabemos muito bem que conseguir compor coisas para o futuro depende de renúncia à retaliação com o passado.

Muitos de nós, quando assumimos algumas funções, pretendemos nos afirmar retaliando o passado. O que acontece? Passamos a vida inteira retaliando o passado e não conseguimos fazer nada no futuro, porque achamos que a nossa função histórica é demonstrar os equívocos do passado. Não. O passado nos serve como base e ensinamento do que fazer ou do que não fazer para que o futuro seja composto.

Creio que há, então, 2 eixos nesse problema — aí a conclamação que temos de fazer a todos. Um deles está na capacidade e nos gargalos que o sistema judiciário nacional tem de ofertar decisões. Onde está o problema de oferta de decisões e onde está o problema da miríade de decisões que temos de ofertar? É para continuar ou não, no sentido de os Tribunais Superiores e o Supremo Tribunal Federal também serem integrantes desse processo de se fazer justiça no caso concreto? Ou devemos voltar a fortalecer os juizes de primeiro e segundo graus para que a sentença de primeiro grau comece a retomar um nível de definitividade maior, no sentido da resolução do problema interindividual?

Temos de examinar a questão. O que significa isso? Discutir processos. E discutir processos significa colocar na mesa: advogado que advogue e não advogado que se formou em Direito e conseguiu passar no exame do Dr. Busato. Não é isso que eu quero. É preciso que sejam pessoas que machucaram o cotovelo e advogaram no primeiro grau, no interior, como eu fiz, como o Dr. Busato fez, em Ponta Grossa, e como todos nós fizemos, mas foram juizes, trabalharam e têm compromisso com a Magistratura e com a sua função, no que diz respeito à efetividade. Um Ministério Público que saiba fazer denúncia.

A regra no Congresso é a seguinte: se você junta em um único texto todas as propostas, só consegue reunir inimigos, não consegue juntar amigos. É ou não é assim? Então, vamos trabalhar fatiadamente na minha proposta — linguagem tipicamente parlamentar. Vamos trabalhar neste ponto, naquele ponto. Faremos os consensos nos pontos individuais. Onde não houver consenso, quer nas estruturas judiciais, quer nas estruturas do juiz de primeiro grau, quer nas estruturas da Justiça Federal ou da Justiça Estadual, administra-se o dissenso, processualizando-o parlamentarmente.

Abram um site de qualquer tribunal. Por exemplo, do Supremo Tribunal. Aparece: 109 mil recursos extraordinários foram decididos no ano de 2003. Isso não significa absolutamente nada. Precisamos saber quais são as matérias que foram objeto de decisões nesses recursos extraordinários, do que se trata e onde está o conflito de demandas. É matéria de que natureza? Civil. Mas o que do Direito Civil? É matéria de Direito Constitucional. Mas o quê? Tributária.

Aí, começamos a identificar um outro ponto. No momento em que tivermos esse espelho do tipo de decisões que ofertamos, vamos descobrir também quem demanda decisões. Aí, surge outro eixo, que temos de analisar, de acordo com meu ponto de vista: fazer o estudo da demanda não só da oferta, dos seus gargalos — questão estritamente processual —, como também da procura de decisões e identificar quem são claramente nossos clientes constantes, quer no lado de autores, quer no lado de réus. Vamos ter também, a partir dessa perspectiva, a possibilidade de, via atividade política da Câmara, do Senado e do Poder Executivo e também via Presidências dos Tribunais, intervir nas causas da procura de demandas, tentar colocar pontos e pactuar soluções que possam compor essa procura. Por quê? Porque ela é, normalmente, massificada. Sendo massificada, pulverizada em ene processos iguais, é claro que precisamos ter longa conversa e entendimento com a Ordem dos Advogados, porque, na medida em que procurarmos intervir na demanda de decisões, vamos intervir no mercado de trabalho. Temos de saber como podemos pactuar isso, estabelecer forma que seja razoável, quer para essa análise, quer para os próprios advogados. Não podemos nos iludir pensando que, com essa confusão, alguém ganha dinheiro com isso, interessa a alguém isso.

Eu acabei de dizer recentemente, quando tomava posse no Supremo, que há inclusive setores que têm a necessidade da demanda, já que ela importa na transferência, para esses setores, de subsídios ocultos da sua atividade, considerando a taxa de juros. Se conseguirmos identificar esses 2 aspectos, conseguiremos definir, então, as nossas responsabilidade sociais quanto à oferta de decisões. O eixo, de acordo com meu ponto de vista, é exatamente o fortalecimento da Justiça nos Estados, com a substancial redução do intervencionismo dos Tribunais Superiores sobre os Tribunais locais.

Existe para isso uma condição, que está sendo discutida muito claramente pela Ordem dos Advogados, numa linha, e pelos juízes, em outra: se precisamos fortalecer a Justiça de primeiro grau, ou os juízes nos Estados, de primeiro e segundo graus, precisamos da condição da capacidade daqueles que vão integrar esses quadros. A incapacidade virtual daqueles que integram os quadros vai levar ao juízo, dada a necessidade do acesso aos Tribunais Superiores para resolver ou compor os equívocos dos Tribunais nos Estados.

E aqui estão duas estruturas. De um lado, basicamente as faculdades de Direito. Vamos deixar muito claro. O Curso de Direito passou a ser condição para o exercício não da profissão de juizes e advogados, mas de ene profissões — exigência para concurso. Isso tudo nos leva ao esvaziamento progressivo das destinações dessas escolas e à tentativa da substituição disso pelas escolas de magistraturas, que precisam qualificar os juizes nessa linha.

Se o objetivo é fortalecer os juizes nos Estados, a Justiça nos Estados, temos de pensar também nas questões relativas ao ensino, senão não adianta. Se não tivermos responsabilidade com o ensino, o que vai acontecer? Ninguém vai aceitar que os feitos tenham um grau de definitividade na Justiça dos Estados e tentará correr para os Tribunais Superiores. E aí vai haver duas alianças: aqueles que querem que a demanda continue por mais tempo e aqueles que lucram com isso, no sentido dessa progressão. Aqueles que não querem submeter-se exclusivamente à Justiça dos Estados, porque alegam incapacidade profissional, incompetência no sentido lato da expressão, dizem: “Não, vamos aos Tribunais Superiores”. Aliam-se a quem? Àqueles que querem que isso seja assim, porque é conveniente para eles que a demanda tenha um tempo de duração muito maior e que o grau de definitividade do juiz de primeiro grau seja próximo a zero. É uma aliança difícil, complicada, porque esses aqui podem financiar aqueles lá.

De outro lado, se você começa a estreitar, como pretende a Ordem dos Advogados, legitimamente a questão das escolas de Direito, choca-se também com um setor altamente rentável. São 3 alianças contrárias a qualquer tentativa de mudança.

Talvez eu tenha me estendido demais. Peço perdão, meu caro Presidente. Mas creio que, se nós passarmos para isso, então poderemos responder com seriedade as indagações que a história nos faz. É a possibilidade de a nossa geração fazer alguma coisa. Senão seremos uma mera geração de analíticos, com incrível capacidade de análise, com condições de identificar e diagnosticar os problemas, mas com um medo incrível de tentar resolvê-los. E sabemos muito bem que tentar resolver problemas é cometer erros. Vamos tentar resolver a questão, e na nossa frente haverá muitos erros. Mas a única forma de se conseguir o acerto é errando. Quem não erra não consegue acertar, porque não faz nada. Em nossa ação, errar é condição. Portanto, precisamos ter coragem de errar.