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A competência universal em retrocesso na Espanha

19 de maio de 2014

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DavidPaula-WojcikiewiczNa última terça-feira, causando uma avalanche de notícias e comentários, foi aprovado um projeto de lei pelo Congreso de los Diputados da Espanha que limita a competência universal dos juízes espanhóis. A competência universal pode ser definida como um dever do Estado em perseguir os autores de certos crimes considerados da mais alta gravidade, qualquer que seja o local onde o crime foi cometido ou a nacionalidade do autor ou da vítima. O princípio encontra fundamento na necessidade de proteger um valor de caráter universal, expresso pela máxima aut dedere aut judicare. Está previsto em Convenções internacionais como as Convenções de Genebra de 1949; a Convenção europeia para a repressão do terrorismo de 1977; e a Convenção contra a tortura e outras penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes de 1984. Significa que os Estados que ratificaram as referidas convenções, e não apenas estes, assumem a obrigação de extraditar ou de julgar os responsáveis pelos crimes previstos. O que não pode ocorrer, aos olhos do direito internacional, é deixar impune o autor de um crime cuja gravidade viola os padrões aceitos pela comunidade internacional.

A Espanha ratificou as referidas convenções que prevêem a competência universal e assumiu, desta forma, a responsabilidade de extraditar ou julgar crimes independentemente de qualquer relação de territorialidade ou nacionalidade das vítimas. A legislação espanhola previa essa possibilidade e o país sempre foi bastante atuante na proteção dos direitos humanos e na persecução de crimes via competência universal. O caso Pinochet e a figura do juiz Baltazar Garzon ganharam notoriedade internacional. Entretanto, apesar de haver previsão em convenções internacionais, o exercício da competência universal pode ser obstado por questões de oportunidade política, pois os Estados que adotam tal prática acabam por expor crimes internacionais que muitas vezes não seriam julgados no país onde foram cometidos ou por vítimas de sua nacionalidade.

O recente imbróglio espanhol reflete essa tensão política, que compromete o exercício da competência universal. Uma proposta de lei de 24 de Janeiro deste ano foi votada e aprovada pelo Congreso de los Diputados com uma maioria de 179 sobre 163 votos em 12 de Fevereiro. A proposta foi apresentada e votada pelo Partido Popular (PP), atualmente no governo espanhol, com o objetivo de alterar a legislação do país de forma a limitar o exercício da competência universal. É possivelmente fruto da pressão da China, um parceiro comercial de crescente importância para a Espanha.

A origem da tensão pode ser traçada à expedição de mandados de prisão para o ex-presidente chinês Jiang Zemin e mais quatro altos oficiais chineses em novembro de 2013. Os mandados são baseados em acusações de genocídio, tortura e crimes contra a humanidade no Tibete. Mas o debate não é recente, pois já houve proposta similar apresentada pelo mesmo partido em 2009 (Ley Orgánica 6/1985)1. A nova proposta restringe ainda mais a competência universal, alterando o artigo 23 da lei orgânica do Poder Judiciário referente à extensão da jurisdição espanhola. Dentre outras mudanças, foram criados critérios adicionais para que cada um dos crimes antes previstos possam ser julgados, como a exigência de que a vítima do delito seja um espanhol ou que possuísse a nacionalidade espanhola ao tempo do crime. Deste modo, o mecanismo anteriormente abrangente foi convertido em um sistema que limita sua proteção a espanhóis.

É possível identificar dois potenciais efeitos decorrentes da proposta: o primeiro deles é o arquivamento dos processos já abertos com base na competência universal; o segundo é a impossibilidade dos juízes espanhóis assumirem novos casos com base nesse mesmo mecanismo, devendo permanecer inertes frente a violações graves que demandariam uma atuação da comunidade internacional. Ora, além das denúncias de genocídio no Tibete, há uma série de outros casos atualmente em tramitação na justiça espanhola que foram iniciados com base na competência universal: os casos de Guantánamo, Ruanda e Guatemala.

As consequências da possível alteração legislativa não devem ser minimizadas. No campo político, a aparente influência que a China exerce sobre o governo de Mariano Rajoy preocupa a oposição espanhola e começa a gerar preocupações sobre as prioridades do governo. A reação dos partidos de oposição foi forte e acusaram o partido no poder de se submeter ao poder chinês. Além disso, a iniciativa representa evidente retrocesso do país no que tange ao respeito dos direitos humanos, além de representar violação das obrigações internacionais assumidas em virtude de convenções ratificadas. Independentemente de previsão em tratados, a repressão de crimes de alta gravidade constitui costume internacional que se impõe a todos os Estados. Dessa forma, o desrespeito de tais obrigações não somente prejudica a imagem da Espanha no cenário global como também expõe o país a uma possível responsabilização perante instâncias internacionais.

Nota _____________________________________________________________________

1 A reforma de 2009 havia restringido o sistema de jurisdição universal nos seguintes termos: desde que não disposto em contrário em algum tratado ratificado pela Espanha, o delito deve observar algumas condições – o suposto responsável deve estar na Espanha, ou o crime deve ter vítimas espanholas ou com conexão relevante com a Espanha. Assim, desde 2009, a legislação espanhola já impunha condicionantes ao pleno exercício da competência universal.