Edição 140
Bernardo Cabral de Manaus para a história
30 de abril de 2012
Marco Aurélio Mello Membro do Conselho Editorial, Ministro do STF
José Bernardo Cabral nasceu na cidade de Manaus em 27 de março de 1932. Próximo a completar oitenta anos, possui currículo exemplar, tendo ocupado postos-chave no cenário nacional – Deputado Estadual e Federal, Senador, Ministro da Justiça, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, membro e relator da Assembleia Nacional Constituinte. Segundo a tradição francesa, há pessoas cujo nome dispensa o pronome de tratamento ou a menção a cargos exercidos, por ser uma referência por si só. Assim é o caso de Bernardo Cabral. Entretanto, em benefício da memória pública e das gerações futuras, com grande honra, aceitei a incumbência de prestar esta singela homenagem, que perpassa pela lembrança das realizações desse homem público.
Obteve o bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas aos vinte e um anos – o mais jovem na turma em que se graduou. Imediatamente, tornou-se advogado e, destacando-se no ofício, veio a ocupar, sucessivamente, as funções de Delegado, Promotor de Justiça, Chefe de Polícia e Secretário de Segurança Pública, sempre no Estado de origem. Aos vinte e sete, foi nomeado Chefe da Casa Civil do Governo e, em seguida, Procurador do Estado do Amazonas. Ainda moço, aos trinta anos, chegou a ter assento na Assembleia Legislativa do Estado natal, na legislatura de 1962 a 1966.
Se o prólogo já revela uma existência em que caberiam muitas vidas, a partir daí, Bernardo Cabral assumiu papel de protagonista na vida política brasileira, passando a influenciar o futuro dos concidadãos. Nas eleições subsequentes, aos trinta e cinco anos, elegeu-se Deputado Federal. Infelizmente, permaneceu no cargo por apenas um ano, porque teve o mandato cassado pelo Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, em razão de opiniões emitidas, nos meios de comunicação, que causaram incômodo à ditadura então insurgente. A cassação suspendeu a trajetória política de Bernardo Cabral pelo período de dez anos, mas, mesmo assim, ele se manteve fiel à causa pública. Logo se mudou para o Rio de Janeiro, momento em que se destacou na defesa de presos políticos e na divulgação das ilegalidades e violações a direitos humanos cometidas pelo regime militar. Escusado dizer que o fazia sob o risco da própria vida e liberdade.
Apenas para elucidar o clima da época, vale relembrar a carta-bomba encaminhada, em 1980, ao então Presidente da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes, que resultou na morte da secretária Lyda Monteiro da Silva, que abrira a correspondência. No dia do atentado, em resposta ao incidente, Bernardo Cabral, com outros treze advogados de primeira grandeza, foi nomeado para integrar a Comissão de Direitos Humanos da entidade.
A vocação para a liderança levou-o ao cargo de Presidente da Ordem, no biênio 1981/1983. Nessa posição, empreendeu duras críticas ao recorrente desrespeito à Carta Federal por parte do governo militar. Em 1982, denunciou as manobras do regime para evitar a vitória da oposição nas eleições legislativas de novembro daquele ano. Segundo conta John W. F. Dulle – biógrafo do advogado Sobral Pinto –, encaminhava telegramas ao Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, solicitando providências quanto aos assuntos defendidos por Sobral e Heleno Fragoso, todos relacionados à militância política. E assim se expunha às duras reprimendas do regime e dos grupos de extrema-direita. Afinal, foi durante o mandato de Bernardo Cabral que ocorreu o atentado ao Riocentro, menos de um ano após o episódio da carta-bomba. A explosão precoce do artefato acabou ocasionando a morte de um dos militares que o transportava.
A contribuição inestimável para a República Federativa do Brasil veio no final da década de 1980. Com os direitos políticos restabelecidos, voltou a ser eleito Deputado Federal para exercer mandato entre 1987 e 1991, compondo a Assembleia Nacional Constituinte. Em votação dramática, venceu a disputa pela relatoria da comissão de sistematização dos trabalhos realizados pelas subcomissões da Constituinte, aclamado pela bancada do Partido da Mobilização Democrática Brasileira. Conhecido pelo caráter conciliador e vivaz, capaz de dialogar com interlocutores de diversas vertentes políticas, logrou, com trabalho e paciência, desvencilhar-se de armadilhas oriundas de grupos de pressão, lobistas e políticos insatisfeitos. Entregou, alfim, o documento democrático produzido pela política brasileira.
Sempre manteve excelentes relações com o Poder Judiciário. Ao lado de comissão formada pelos Juízes do Tribunal Federal de Recursos, lutou, na Constituinte, pela criação do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais. Como homem público, anteviu que a expansão do acesso à justiça causaria o abarrotamento dos Tribunais. Sem a regionalização, a Justiça Federal estaria paralisada. Colaborou com a inserção constitucional da autonomia financeira da magistratura, evitando que as promoções de juízes dependessem da concordância do Poder Executivo. Defendeu a aprovação das emendas supressivas atinentes à arguição de relevância e ao Conselho Nacional de Justiça, que acabariam por surgir com a Emenda Constitucional no 45/2004. Notabilizou-se na preferência pelo regime parlamentar e pelo voto distrital misto, temas que, de tempos em tempos – como se um cometa fossem –, reaparecem no cenário brasileiro.
Em 1990, ocupou por sete meses o cargo de Ministro da Justiça do Governo Fernando Collor de Mello. Retornou ao parlamento, para exercer o mandato de Senador da República, entre 1995 e 2003. Ainda no campo da defesa do Judiciário, sustentou a criação dos Regionais Federais da 6a e 7a regiões, até hoje pendente. Com justiça, foi agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Amazonas e pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e condecorado pelo Brasil e por instituições de diversos outros países. Na carreira acadêmica, lecionou em prestigiosas universidades estrangeiras. O essencial, como costuma dizer o homenageado, é o pergaminho da experiência de vida.
Com o término da Constituinte e a promulgação da Carta, tornou-se árduo defensor da efetividade do novo marco político e social brasileiro. Essa tem sido a bandeira. O tempo fez compreender o laconismo das respostas que dava aos detratores da Constituinte: em meio a crises institucionais e ao reformismo crônico, a Lei Maior de 1988 sobreviveu, refletindo as esperanças de um futuro melhor para a República Federativa do Brasil. Se, em pouco mais de duas décadas, caminhamos do regime de exceção à supremacia da Constituição, parte desse fenômeno se deve ao idealismo e à luta política de Bernardo Cabral.