Atenção e cuidado com as vidas postas em nossas mãos

9 de abril de 2024

Compartilhe:

Desde que tomou posse no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em novembro de 2023, a Ministra Daniela Teixeira tem destacado a sensibilidade no julgamento de cada caso que chega ao gabinete. Costuma ponderar que, mesmo diante do alto volume de processos, o julgador deve ler com atenção e cuidado o que é posto à sua frente. Advogada de carreira com especialização em Direito Econômico e das Empresas, Daniela Teixeira foi indicada para ocupar a vaga destinada à advocacia, que foi aberta a partir da aposentadoria do Ministro Felix Fischer. Chega agora para compor o colegiado da Quinta Turma do STJ, especializada em matéria de Direito Penal.

Nesta entrevista à Revista JC, a Ministra abordou temas importantes na área, como o modelo do Tribunal do Júri e a implementação do Juiz de Garantias, instituto do qual é entusiasta. Questionada sobre as reformas legislativas consideradas relevantes, especialmente no Código Civil e no Código de Processo Penal, foi categórica: “É preciso descolonizar o Direito e, em particular, o sistema de justiça brasileiro. Discutir o que no Código Civil reproduz relações de dominação de gênero, raça, classe e capacidade; assim também no Código de Processo Penal”. 

Esse é um debate necessário, urgente e complexo, segundo Daniela Teixeira, pois trata de uma “reestruturação da sociedade brasileira a partir das bases do seu Direito rumo ao fim de práticas, olhares e normas que reproduzem e eternizam um modelo excludente que faz do Brasil esse país tão rico e tão desigual”. “Há grupos de trabalho que tratam das duas matérias neste momento. Respeito seus esforços e auguro bons resultados aos seus integrantes”, ponderou. Confira a seguir a entrevista completa. 

Revista Justiça & Cidadania – Como tem sido a experiência como Ministra após tantos anos atuando na Corte enquanto advogada?
Ministra Daniela Teixeira – Cheguei ao STJ em novembro de 2023. Encontrei mais de 13 mil processos aguardando julgamento. A cada dia, dezenas de novos pedidos liminares em Habeas Corpus. A grande maioria, tráfico. Um número surpreendente, trágico de estupros de vulnerável – apenas um de mulher adulta; mais de quinhentos de crianças. Um número esperável de roubo, furto e homicídio, numa sociedade violenta e desigual – um fator implicando o outro. Conseguimos zerar os pedidos liminares em HC pendentes em 2023 até o dia 19 de dezembro, último dia de recesso. Foi um grande esforço conjunto, que uniu o gabinete em torno do primeiro de muitos desafios pelos próximos agora 23 anos. O que encontrei de mais frequente e inquietante foi a relutância de tribunais em acompanhar a jurisprudência do STJ, que é, por natureza e vocação, uma Corte de Precedentes. Encontrei, também, o desafio do olhar atento a casos que se distinguem da jurisprudência. Essa dialética é o meu dia a dia. Harmonizar sem homogeneizar. 

JC – O cenário de judicialização levou a imposição de filtros de julgamento, como por exemplo o da relevância. Há alguma medida que considere urgente para a administração judiciária?
DT – A medida a ser tomada por todo julgador é a de ler com atenção o que é posto à sua frente. Atenção e cuidado com as vidas postas em nossas mãos. Uma das primeiras lições que recebi de quem vivencia a estrutura de uma Corte da dimensão do STJ é que cada caso mexe com o destino, em média, de dez pessoas. Se recebi 13 mil processos, eram já 130 mil vidas sob minha responsabilidade. Harmonizar sem homogeneizar é o resultado esperado desse olhar atencioso e cuidadoso que pretendo imprimir à minha judicatura. 

JC – A senhora já afirmou que a importância do STJ está em ser “o responsável por unificar tão diferentes países que temos no Brasil”. No entanto, ainda é realidade a resistência de alguns tribunais em seguir os precedentes do STJ. Como enfrentar isso?
DT – Como disse acima, o desafio é “harmonizar sem homogeneizar”. Tenho mais preocupação com a insistência de alguns tribunais em não seguir os precedentes do STJ do que com o aumento do número de processos que chegam aqui todos os dias. Penso que o que causa o aumento de Habeas Corpus é a reiteração do descumprimento pelos tribunais de justiça. O problema é causado muito mais pelo próprio Judiciário do que pela advocacia.

JC – Desde que chegou ao tribunal, quais foram as principais demandas que já analisou na Quinta Turma?
DT – Com relação aos principais processos, considero todos igualmente relevantes. Em cada um deles há no mínimo duas pessoas envolvidas, autor e réu, e para esses cidadãos aquele processo não é um número. Devo tratar todos sem distinção e sem paixão. Na advocacia eu tinha como aviso de cabeceira o decálogo de Eduardo Couture. Ensinamentos que trouxe para a magistratura, especialmente o número 9, que diz: “IX- OLVIDA: A advocacia é uma luta de paixões. Se em cada batalha fores carregando tua alma de rancor, sobrevirá o dia em que a vida será impossível para ti. Concluído o combate, olvida tão prontamente tua vitória como tua derrota.” O conselho se aplica ainda mais à magistratura, que não pode ser uma luta de paixões. Assim tenho agido nos quase 5 mil processos que já julguei monocraticamente ou em colegiado. 

Estudo, sofro, decido. Pronto, acabou. Como magistrada não posso torcer por uma tese, um processo ou uma parte. Julgado o caso, devo esquecê-lo e me preocupar com o próximo. A fila é imensa e tenho que ter o espírito leve para julgar um por um, sem esperar reconhecimento ou aplauso e sem temer críticas ou dissabores. Espero estar fazendo um trabalho justo e me deixa feliz estar com a consciência tranquila. Até agora me arrependi de apenas um despacho e não tive nenhum problema em reconsiderar a decisão para dormir tranquila.

JC – Em sua opinião, a utilização de Inteligência Artificial no Poder Judiciário precisa ser aperfeiçoada? Quais são as diretrizes necessárias?
DT – A inteligência é humana. Nada substitui a humanidade. A informatização das tarefas comezinhas e repetitivas é uma realidade há 30 anos, não há como voltar a usar enciclopédia e abrir mão dos dados compilados no Google. O que se pode fazer é manter transparência e controle do que está sendo processado. Interessa mais o humano atrás da elaboração do algoritmo da máquina do que imaginar que artificialmente haverá o domínio dos computadores. Acho essa discussão importante especialmente na elaboração de decisões judiciais. 

É preciso saber qual parâmetro está sendo dado para o programa. Mas veja, não é artificial. É um humano programando um computador. E será um humano a orientar o conteúdo e a tomar a decisão. Inteligência Artificial faz sentido e é necessária para um texto correto (em linguagem) e atualizado (jurisprudencialmente). Bem construído a partir de textos humanos que formem sua base (coesos, claros, concisos, precisos). Não será o ponto de partida nem o de chegada: é um meio tecnológico para o mais humano e questionável dos atos: julgar. 

JC – Muito se critica sobre o Tribunal do Júri, apontado por alguns como algo ultrapassado. Em sua opinião, o modelo precisa de reforma? O que deve ser prioridade?
DT – Jamais. O Tribunal do Júri é a única hipótese em nosso sistema penal que delega para o cidadão comum a decisão de punir ou absolver o réu. E há uma razão, muitas vezes desconhecida, ou incompreendida: nosso legislador entendeu que o homicídio é o único crime que qualquer pessoa está sujeita a praticar, mesmo que seja um cidadão exemplar, que jamais praticaria qualquer outro crime. Uma pessoa de sólida formação moral não praticaria o crime de estelionato, ou de estupro. Mas, um dia, esse cidadão pode vir a cometer um homicídio, em legítima defesa, ou em um acidente de trânsito, ou por um erro absoluto. O jurado, cidadão comum como o réu, guiado pelo juiz que preside a sessão, chegará a uma conclusão soberana sobre aquele fato em julgamento, se deve, ou não, ser punido. Podemos melhorar algumas peculiaridades, garantir o cumprimento das formalidades constitucionais e legais, para evitar nulidades que são declaradas anos depois, mas vejo o tribunal do júri como algo verdadeiramente essencial à justiça.

JC – Qual a importância da implementação do Juiz das Garantias para o sistema de Justiça?
DT – O Brasil, repito, é uma sociedade desigual, que aplica desigualmente a lei, segundo raça, gênero, classe e capacidade. Acusar alguém de crime afeta dois valores preciosos: dignidade e liberdade. A autoridade policial e o Ministério Público lidam com práticas de administração de seu papel no sistema acusatório cuja dinâmica pede controle imediato antes de que se dê prosseguimento à intervenção do Estado na vida do cidadão. O advento do juiz de garantias vem cumprir esse papel. Sou uma entusiasta do juiz de garantia. Espero vê-lo implementado e funcionando em breve.

JC – Com relação à equidade de gênero no Judiciário, apenas a senhora entrou na disputa das duas listas formadas para as vagas abertas no STJ. A que se deve a ausência feminina nessas disputas? Em sua opinião, é preciso mudar o modelo de indicação?
DT – Metade do Brasil é de mulher, sempre digo que não é razoável ter tribunais inteiros de Justiça, como acontece em alguns estados, sem nenhuma mulher. O aspecto formal de indicação não é um problema em si, prova disso sou eu no STJ. O problema é a dinâmica desse processo, que é dominada historicamente por homens. Homens que se frequentam e se acolhem. É preciso que entrem nessas disputas mais mulheres, e mulheres animadas e apoiadas por mulheres e homens descompromissados com essa história de dominação masculina. 

É uma questão cultural e de poder: a questão cultural se resolve com a mulher se enxergando nessas posições de poder; e a questão de poder se resolve com apoio e articulação em torno de nomes femininos. É preciso que mulheres participem de processos de decisão política com protagonismo e senso de pertencimento: estou aqui porque aqui é meu lugar. E para isso é necessário preparo pessoal, compromisso de vida com o interesse público de assumir grandes responsabilidades, e articulação de apoios desde a base até o topo. Mulheres apoiando mulheres. Homens rompendo o status quo e compreendendo a importância da paridade de gênero como qualificador dos processos de decisão. Sem representatividade adequada, decidimos mal.

JC – Quais iniciativas do Poder Judiciário podem contribuir para efetivar a paridade de gênero nos tribunais?
DT – Há uma iniciativa em andamento de impor apenas candidaturas femininas para o cargo de juiz. Romper traço tão forte de dominação masculina talvez exija medidas que imponham o equilíbrio necessário para correção de rumo. Boa formação será exigida sempre de todas e todos. O olhar feminino, no entanto, é insubstituível. O olhar negro é insubstituível. O olhar de classe é insubstituível. Cada um desses olhares precisa ser representado adequadamente no Judiciário e em todas as instâncias de decisão do Poder Público, mas também na esfera privada. O Brasil pede ruptura com estruturas ainda colonizadas por ideais, normas e práticas de colônia. Só seremos livres, justos e solidários quando rompermos esses laços com o passado. 

Conteúdo relacionado: 

https://editorajc.com.br/2025/o-debate-da-equidade-racial-e-de-genero-na-justica/

https://editorajc.com.br/2025/essencialidade-da-equidade-de-genero-no-poder-judiciario/