Edição 285
Assinaturas eletrônicas no processo judicial
3 de maio de 2024
Clarisse Frechiani Lara Leite Diretora Cultural da AASP

A evolução tecnológica e a informatização das relações têm imposto novas formas de manifestação de vontade e demandado a criação de distintos métodos de identificação da autoria e vinculação ao ato jurídico praticado. Ao mesmo tempo, a “realidade digital” interfere na forma de provar e de solucionar conflitos. Por isso, é essencial aos operadores do sistema de justiça compreender os efeitos materiais e processuais das modalidades de assinatura eletrônica.
Para o Direito, assinatura é a forma de ligar determinada pessoa a um ato, expressando a identidade do signatário e vinculando-o à manifestação (as chamadas funções identificativa e declarativa). Quem assina, identifica-se e declara ser sua a manifestação assinada, vinculando-se juridicamente a ela. No mundo virtual, tais funções são desempenhadas pela técnica da assinatura eletrônica: conjunto de dados em formato eletrônico, relacionado de algum modo a determinada pessoa, que se liga ou se associa a outro conjunto de dados em formato eletrônico, evidenciando a intenção da signatária de se vincular por seu conteúdo.
As principais regras sobre assinaturas eletrônicas estão na MP 2.200-2/2001, na Lei 14.063/2020 e, no que toca à “tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais”, na Lei do Processo Eletrônico (Lei 11.419/2006). São três os tipos de assinatura eletrônica previstas na Lei 14.063: (i) assinatura eletrônica simples; (ii) assinatura eletrônica avançada, e (iii) assinatura eletrônica qualificada (correspondente à assinatura digital).
As assinaturas eletrônicas qualificadas ou assinaturas digitais (“iii”) são aquelas realizadas mediante o uso de certificados digitais ICP-Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas brasileira). Seja pela segurança da técnica utilizada, seja por disposição legal, tal modalidade é dotada do mais alto nível de confiança, equiparando-se à assinatura manuscrita com reconhecimento de firma por autenticidade. Ela assegura a própria integridade do documento, denunciando modificações efetuadas após sua aposição.
Por força desses atributos técnicos e legais, a assinatura eletrônica qualificada é apta a suprir qualquer exigência de assinatura, no plano material ou processual. Mais do que isso: em razão de sua elevada segurança, o título executivo elaborado com assinatura qualificada (ou com assinatura avançada) dispensa testemunhas instrumentárias (CPC, art. 784, § 4o). Quanto à eficácia probatória, a assinatura eletrônica qualificada enseja a presunção legal de autenticidade e integridade da declaração documentada (MP 2.200-2/2001, art. 1o c.c. CPC, art. 411, II). Isso não significa que a declaração seja em si verdadeira. Mas, quanto ao fato de o documento ter sido assinado pela pessoa indicada e de não ter sofrido alterações após a assinatura, incide presunção (relativa) de difícil superação.
A despeito dessa ampla eficácia, é preciso observar que a assinatura eletrônica só existe como tal no mundo eletrônico. A impressão (física ou em pdf) de documento assinado eletronicamente consiste em reprodução (CPC, art. 422 ss.), na qual a assinatura se converte em espécie de “carimbo”. A depender do ato praticado e das exigências a seu respeito, tal simples reprodução pode não ser suficiente.
Por outro lado, alguns sistemas de processo eletrônico (como atualmente o e-SAJ) não admitem documentos com assinatura digital. Quando se tenta protocolar documento assinado digitalmente em tais sistemas, a assinatura, como conjunto de dados, é suprimida e, como marca visual, apagada – restando em seu lugar um espaço em branco. Isso tem levado a surpreendentes decisões de inadmissibilidade de recursos dirigidos aos tribunais superiores, em virtude da supressão da assinatura digital na procuração ou na petição recursal (quando esta, previamente assinada por advogada com poderes, vem a ser protocolada por quem não os tem).
Essa é uma questão a ser urgentemente revista e solucionada pelos tribunais. Não é legítimo prejudicar o exercício da advocacia, tolher direitos processuais e, no limite, propiciar a perda de direitos materiais, em virtude da incompatibilidade de sistemas com a assinatura eletrônica qualificada, que, por disposição expressa é válida e eficaz “para todos os fins legais” (MP 2.200-2/2001, art. 10). Diante da especial disciplina dos títulos executivos assinados eletronicamente (CPC, art. 784, § 4o), é necessário que o processo eletrônico permita a apresentação do documento com assinatura eletrônica “original”, e não sua mera “impressão em pdf”.
As assinaturas eletrônicas avançadas (“ii”), por sua vez, revestem-se de atributos muito semelhantes aos da assinatura qualificada, no que respeita à certeza da identidade, da intenção de assinar e da integridade do documento. Embora não integrem a ICP-Brasil, tais assinaturas podem realizar-se por sistemas públicos, como a plataforma Gov.br, ou por plataformas privadas bastante confiáveis (como a ferramenta Assinador AASP, por exemplo).
Por sua elevada segurança, as assinaturas eletrônicas avançadas vêm sendo cada vez mais admitidas em interações com entes públicos e delegatários, inclusive para a prática de atos envolvendo bens imóveis (Lei 14.382/2022). Entre particulares, a modalidade avançada é também amplamente admitida para: celebração de negócios jurídicos em geral, inclusive os que requerem forma escrita, como fiança, convenção arbitral, procuração ad judicia; atendimento de exigências de prova escrita; uso de instrumentos de cognição sumária (MS, monitória, tutela da evidência) e formação de títulos executivos.
Há ainda na jurisprudência algum vacilo quanto à admissibilidade de assinaturas eletrônicas avançadas e simples para a outorga de procuração ad judicia. Todavia, da conjugação entre o art. 105, § 1o, CPC, com a Lei 14.063/2020 e a MP 2.200-2/2001, constata-se não ser necessária a assinatura eletrônica qualificada para a outorga de procuração. Afinal, trata-se de negócio entre particulares, externo e anterior ao processo, que não se rege pela Lei do Processo Eletrônico. A assinatura qualificada equivale à assinatura manuscrita com reconhecimento de firma, e tanto a doutrina quanto a jurisprudência há muito dispensam o reconhecimento de firma de assinaturas manuscritas em procurações. Por fim, não é razoável esperar que toda e qualquer parte – diferentemente de advogados – tenha condições de ter certificado digital ICP-Brasil.
Por fim, as assinaturas eletrônicas simples (“i”) abrangem uma multiplicidade de técnicas de associação de dados eletrônicos da signatária ao documento (sem contudo certificar integridade). São exemplos de assinaturas simples: utilização de login e senha em plataforma para praticar algum ato; aposição de nome ao final de e-mail; inserção da imagem da assinatura manuscrita em documento eletrônico (“assinatura digitalizada”) etc. Por seu menor grau de segurança, tal modalidade é admitida apenas em interações de menor impacto com o Poder Público. Entre particulares, contudo, as assinaturas simples devem ser amplamente admitidas, com fundamento na regra da autonomia da vontade (reforçada pela Lei 13.874/2019), no art. 10, § 2o, da MP 2.200-2/2001, no art. 190 do CPC (negócios processuais) e no art. 784, §4o do CPC (que admite títulos executivos com “qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei”, apenas não dispensando nesse caso as testemunhas instrumentárias).
Naturalmente, assim como se passa com assinaturas manuscritas, é possível que as assinaturas eletrônicas também sejam objeto de fraude. Nesses casos, devem ser usados todos os instrumentos repressivos de que dispõe o sistema. Mas não se pode, por mero temor, negar aprioristicamente eficácia a atos praticados mediante o uso de assinatura eletrônica simples e avançada.
A jurisprudência, contudo, ainda resiste ao uso das assinaturas digitalizadas (STJ, C.E., AgInt em EAREsp 1.555.548, j. 2.8.21). Todavia, à luz da Lei 14.063/2020, a assinatura digitalizada pode ser considerada espécie de assinatura eletrônica simples (plenamente válida em negócios entre particulares, p.ex.), pois “permite identificar o seu signatário” e “anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário”. Além disso, a realidade das relações humanas vai demonstrando o cada vez mais comum uso legítimo de tal forma de identificação e manifestação de vontade, não sendo razoável negar a priori a sua eficácia. Mesmo quando aposta no documento eletrônico por terceiro, mediante autorização do signatário, tal ato será perfeitamente válido e eficaz (CC, arts. 115 ss.).
Para propiciar segurança jurídica, em um mundo cada vez mais ágil e digital, é importante que o Poder Judiciário esteja aberto a reconhecer a eficácia das várias modalidades de assinaturas eletrônicas, permitindo que eventuais e excepcionais falsidades sejam, tal como se passa com assinaturas manuscritas, apuradas e sancionadas.
Nota___________________________________
1 Em obra anterior, esta autora questionara as assinaturas digitalizadas (Comentários ao Código de Processo Civil v. VIII, t. II – Da prova documental, São Paulo: Saraiva, n. 135, p. 174), mas a posição foi revista no trabalho indicado na nota 1, supra.
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