Aspectos jurídicos da reparação da escravidão

4 de dezembro de 2020

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Foi aprovado por aclamação pelo plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), na sessão ordinária virtual de 9 de setembro de 2020, o parecer intitulado ‘Aspectos jurídicos da Reparação da Escravidão’, elaborado pela Comissão de Igualdade Racial do IAB. A sessão, presidida pela presidente nacional do Instituto, Rita Cortez, contou com a sustentação oral de grandes juristas e militantes do movimento negro.

A proposta do parecer sobreveio da necessidade de se elaborar um documento jurídico que abordasse a definição de “Reparação da Escravidão”, apresentando todos os elementos que compõem e legitimam esse instrumento complexo de luta, que visa a reconstruir o modo de funcionamento da democracia brasileira para garantir a igualdade étnica-racial no exercício da cidadania, tendo como base o respeito à dignidade humana e o reconhecimento dos traumas da escravidão negra.

A fundamentação do parecer se inicia com a análise jurídica sobre “O que é a Reparação da Escravidão?”, reconhecendo se tratar de um movimento de reconstrução da identidade nacional brasileira. Nesse processo, se pretende desconstruir o mito da democracia racial ao evidenciar práticas discriminatórias que permeiam todas as interações relacionais do Estado Democrático de Direito vigente. Práticas que, como se sabe, constituem o legado da escravidão negra, que durou mais de 350 anos.

Ao reconhecer que o grande legado da escravidão é o racismo estrutural e institucional que atua como obstáculo à igualdade constitucional dos sujeitos pertencentes ao pacto da nação, o parecer evidencia que a Reparação da Escravidão está inserida no contexto de Justiça de Transição, uma vez que demanda mecanismos judiciais e extrajudiciais para alcançar a readequação democrática das instituições, assim como a constituição da identidade nacional através de um novo relato da história – com a inclusão das memórias que foram omitidas.

Em seguida, o parecer apresenta “Quais são os fundamentos da Reparação da Escravidão?” e identifica quatro paradigmas contidos na dimensão da Justiça de Transição como forma de lidar com a violência perpetrada no passado e de que ainda é alvo a população negra, com vistas a formar uma comunidade política pacificada, na qual todos tenham igualdade de direito no exercício da cidadania. Assim, os fundamentos que orientam a Reparação da Escravidão são o direito à memória e à verdade, o direito à reparação moral e material das vítimas, a responsabilização formal dos agentes perpetradores das violações aos direitos humanos e a reforma das instituições visando a readequação democrática.

O parecer caminha para abordar “Quais são as fontes da Reparação da Escravidão?”, trazendo sua origem nos movimentos abolicionistas e o destaque dado ao tema pelo movimento pan-africanista, do qual fez parte o importante militante negro Abdias do Nascimento. Como principais fontes da reparação, o parecer apontou a Declaração de Durban e seu Plano de Ação, elaborados na 3ª Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância, de 2001, marco a partir do qual o tráfico de escravos e a escravidão foram reconhecidos pela comunidade internacional como crimes contra a humanidade. Identifica como fonte também o extenso Plano de Ação produzido pela Comunidade do Caribe (Caricom) em 2014, bem como a iniciativa de proposta de reparação material por parte do Movimento pelas Reparações dos Afrodescendentes (MPR), na pessoa de Fernando Conceição.

O documento elaborado pela Comissão de Igualdade Racial do IAB expõe ainda “Quais são as diferenças entre ação afirmativa e Reparação da Escravidão?”, demonstrando que as políticas de ação afirmativa são uma das modalidades de reparação da escravidão. Enquanto as ações afirmativas são medidas temporárias que pretendem equilibrar a fruição de direitos fundamentais por parte de grupos “vulnerabilizados” em razão das desvantagens históricas que não conferem as mesmas oportunidades se comparados a outros grupos sociais, a Reparação da Escravidão procura atingir as estruturas de base do Estado Democrático de Direito por meio da transformação da consciência coletiva, com o reconhecimento do papel fundamental da população negra na construção da identidade nacional.

O parecer segue, então, para a análise sobre “Quais os modelos de propostas de reparação existentes?”, trazendo a experiência da Justiça Restaurativa vivenciada na África do Sul. É apresentado que dentro do paradigma de Justiça Restaurativa incluem-se faces da Justiça Retributiva, no tocante às punições dos responsáveis pela prática de violências, mas que o objetivo primordial é a transformação das sociedades com a restauração dos elos cindidos após violações generalizadas de direitos humanos. Frisa-se a necessidade de recontar a história, com base na memória e na verdade dos fatos, para a superação de tudo aquilo que ainda oprime a população negra, criando de fato um sentimento de igual pertencimento à nação e o exercício igualitário da cidadania.

O próximo tópico abordado pelo parecer jurídico é “A Reparação da Escravidão no mundo”, no qual são citadas diversas medidas reparatórias adotadas internacionalmente, como, por exemplo, o caso da Namíbia, que busca judicialmente reparação contra a Alemanha pelo genocídio dos povos africanos herero e nama. Há, ainda, o caso da Suíça, que no final de 2019 formou o Comitê Suíço de Reparação da Escravatura (Scores), para estudar a sua influência no tráfico de escravos e reparar os países afetados pela escravidão.

Por fim, o parecer analisa “Quais as iniciativas e medidas reparatórias da escravidão no Brasil?”, fazendo uma retomada histórica da legislação e das políticas públicas que permitiram a criação de espaços institucionais para o enfrentamento às desigualdades raciais. Dentre as medidas apresentadas estão a Lei da Pequena África, o Decreto nº 4.887/2003, que regulamentou o direito constitucional previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 para demarcação e titulação das terras quilombolas, as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que incluíram a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, a criação, em 2014, da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, dentre outras.

No encerramento, o parecer ‘Aspectos Jurídicos da Reparação da Escravidão’ adota propostas de reparação material e simbólica como forma de combate ao racismo estrutural e institucional que segue ceifando vidas, oportunidades e direitos da população negra. O trabalho constitui importante estratégia da luta política, pois cria um arcabouço teórico que dispõe objetivamente acerca dos elementos necessários à superação do legado da escravidão, com vistas à construção de uma nova identidade nacional de respeito e memória dos africanos escravizados e seus descendentes, de forma a alcançar o exercício pleno da cidadania por essa população.