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As mudanças climáticas, as opções energéticas e a visão holística

31 de julho de 2007

Membro do Conselho Editorial; Presidente da Light S.A.

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As mudanças climáticas

Há consenso entre os cientistas de que a temperatura do planeta tem subido nas últimas décadas, e a emissão de certos gases – principalmente, dióxido de carbono (CO2) – pela queima de combustíveis fósseis (derivados de petróleo e carvão) contribui para essa mudança. Não há dúvida de que o aumento da concentração na atmosfera dos gases que causam o efeito estufa intensifica o fenômeno de retenção na Terra de parte da energia recebida do Sol, que escaparia para o espaço, não fosse essa espécie de “cobertor atmosférico”, chamado de efeito estufa. Como existem processos naturais que também causam o efeito estufa, como é o caso da evaporação, não há consenso quanto ao grau de perturbação global que possa ser atribuído à queima de combustíveis fósseis. Por exemplo, alguns culpam também o gado e as plantações de arroz, que emitem grande quantidade de metano – outro gás que causa efeito estufa. A maior parte dos cientistas entende que se não forem tomadas medidas urgentes para conter a queima de combustíveis fósseis, a humanidade enfrentará sérias dificuldades já nas próximas décadas. Por exemplo, o derretimento das calotas polares e o aumento do nível dos oceanos, com catastróficas conseqüências para as populações litorâneas.

Entretanto, uma minoria de cientistas entende que a liberação de gases provocadores do efeito estufa – o vapor d’água é o principal deles – ocorre em maior proporção pelo efeito de variações cósmicas – principalmente, as flutuações da radiação solar. Segundo essa visão, pode ser que o clima esteja mudando, como tem ocorrido nos últimos milhões de anos, por causas naturais, sendo pequena a capacidade do ser humano de influenciar o processo para o bem ou para o mal. Nesse grupo minoritário de cientistas, há um subgrupo que teme, por essas causas naturais, não o aquecimento, mas o resfriamento da Terra. Aliás, essa era a principal apreensão sobre possível mudança climática que a muitos angustiava na década de 70, quando se temia o fim do atual período interglacial, que já dura mais de dez mil anos.

Portanto, o fato de que, atualmente, a Terra está sofrendo um aquecimento, e que os humanos têm algo a ver com isso, não implica em consenso de que seja necessário refrear o crescimento econômico para diminuir o uso de combustíveis fósseis e evitar uma catástrofe na escala global. Essa falta de consenso tem sido objeto de muito debate nos meios acadêmicos e na imprensa. No entanto, a verdade nem sempre está com a maioria. Basta invocar o exemplo de Galileu, que foi derrotado em sua defesa do heliocentrismo pela maioria pensante do século XVII, que acreditava piamente no geocentrismo. Só o tempo dirá quem tem razão. Nesse intervalo, como devem se comportar as lideranças políticas dos diversos países? Devem alterar as políticas públicas e as estratégias de desenvolvimento, tendo em vista a ameaça de mudança climática anunciada pela maioria dos cientistas?

Cabe aos dirigentes públicos a responsabilidade de decidir sob incerteza. O presidente George W. Bush, por exemplo, dando razão ao grupo minoritário de cientistas, não concorda em diminuir o altíssimo consumo de derivados de petróleo
e carvão, per capita, do povo norte-americano. Se o futuro revelar que fez a escolha certa, será aclamado como um estadista de visão, que não sacrificou o notável bem-estar de seu povo – inédito na História – e soube resistir ao catastrofismo de um grupo de cientistas ávidos por mais verbas para pesquisas. Se, ao contrário, o futuro revelar que fez a escolha errada, será desqualificado como governante porque deu ouvidos a cientistas “vendidos” à indústria de petróleo e preferiu manter o padrão de consumo de seu povo em níveis insustentáveis, que resultou em um colapso da qualidade de vida tanto dos norte-americanos quanto do resto da humanidade.

A decisão é ainda mais difícil para a maior parte dos dirigentes de países em desenvolvimento. A China, por exemplo, depende do carvão para aumentar sua produção de eletricidade, sem a qual não poderia sustentar o atual ritmo de crescimento econômico, que está resgatando centenas de milhões de pessoas da absoluta miséria. É verdade que os dirigentes chineses têm feito notáveis esforços para diminuir o uso de carvão em favor de fontes renováveis. Por exemplo, para investir em hidroeletricidade e construir a usina de Três Gargantas, o governo chinês providenciou o reassentamento de mais de um milhão de pessoas. Todavia, não há muitas outras fontes renováveis naquele país e o carvão remanesce como a fonte energética disponível para manter o atual ritmo de crescimento. O dilema para os dirigentes chineses é se devem ou não moderar o ritmo do crescimento para controlar a emissão de gases que causam o efeito estufa.

Nove entre dez ocidentais, provavelmente, responderiam afirmativamente a essa questão. Já entre os chineses, talvez não haja tanta concordância. Talvez prefiram “tomar um remédio” que lhes cure, digamos, uma verminose real e atual, mesmo com o risco de que o remédio provoque um câncer daqui a quarenta anos. Quem está premido pela necessidade de se livrar de um sofrimento atual costuma não dar muita atenção para a perspectiva de sofrimento futuro.

Para os dirigentes brasileiros, a decisão é surpreenden-temente fácil: só temos a ganhar se adotarmos o princípio da precaução e pautarmos nossas políticas pelo o que acredita a maioria dos cientistas. Isto é, devemos apoiar as medidas preventivas para controlar a emissão de gases que causam o efeito estufa. Primeiro, porque a tese de que o efeito estufa tem sido fortemente incrementado pela ação humana é a mais provável, no sentido Bayesiano.

Segundo, porque o Brasil, juntamente com alguns países africanos, pode ser um celeiro de energia renovável. A produção de cana-de-açúcar deve crescer muito nos próximos anos, caso os países desenvolvidos acatem a meta de substituição, até 2020, de 5% da gasolina consumida no mundo por etanol, para diminuir o efeito estufa. Para isso será preciso multiplicar por sete a área plantada com cana para produção de etanol: dos atuais 3 milhões de hectares (outros 3 milhões são plantados com cana para produção de açúcar) para 21 milhões. Esta meta é perfeitamente exeqüível, sem que seja necessário derrubar uma só árvore da Amazônia, basta utilizar 10% da área atualmente dedicada para pastagem.

Terceiro, porque o Brasil poderia cair rapidamente no ranking dos poluidores. E sem muito esforço, quando comparado com outros países. Atualmente, somos o quinto emissor de CO2 do planeta, principalmente, devido ao desmatamento, que corresponde, aproximadamente, a 75% de nossas emissões. A boa notícia é que a Lei das Florestas, aprovada em 2006 pelo Congresso Nacional, deve mudar esse quadro: áreas de florestas públicas na Amazônia serão concedidas a agentes privados por longos períodos (décadas) para que explorem a madeira e outros recursos naturais de forma sustentável. O recentemente aprovado Plano Anual de Outorga Florestal identificou 43 milhões de hectares passíveis de concessão. O concessionário se obrigará a evitar a derrubada aleatória de árvores, de forma a permitir a regeneração natural da floresta. Trata-se da mais promissora iniciativa na área ambiental para reverter o ritmo do desmatamento, porque, atualmente, só é possível punir quem derruba árvores se pego em flagrante. É até possível penalizar o dono da propriedade, mas, em geral, o proprietário é o próprio Governo. Com um contrato, o “locatário” passa a ser o responsável pela área da concessão. É uma solução para a “tragédia do uso de bens comuns” da Amazônia (quando não há limites para o uso de um recurso natural finito, como a floresta, o recurso é degradado ou utilizado em excesso, ficando indisponível para todos).

Quarto, porque temos ainda um grande potencial hidráulico não utilizado. Usinas termoelétricas movidas a gás natural (ciclo combinado) e carvão emitem, respectivamente, cerca 370 e 950 quilos de CO2 por megawatt-hora (MWh), contribuindo de forma não desprezível para o efeito estufa.

As opções energéticas

Historicamente, 80% da demanda de energia elétrica no Brasil tem sido atendida por usinas hidroelétricas (movidas a água) e 20% por termoelétricas (movidas a gás natural, óleo combustível ou diesel). Nos recentes leilões para venda de energia no longo prazo, para viabilizar a construção de novas usinas, observa-se uma proporção de 50% e 50%. Significa que estamos ficando mais poluentes, em termos de emissão de gases que causam o efeito estufa. A questão ambiental – entendida pela dificuldade de se obter uma licença e pela profusão de ações impetradas pelo Ministério Público que encontram abrigo em decisões liminares da Justiça, com demora de anos para julgamento do mérito – explica apenas parcialmente essa mudança. A outra explicação reside na ausência de uma coleção de estudos de inventário – que defina os melhores locais para barramento dos rios – e de viabilidade, em um nível de detalhamento suficiente para implementação das usinas.

O racionamento de energia elétrica de 2001 foi causado por escassez de água e de investimentos. Como em toda crise, houve aprendizado, tanto por parte da população quanto dos dirigentes do Setor Elétrico. Um dos resultados foi a percepção majoritária, mas não unânime, de que o mercado de energia elétrica, particularmente em um sistema predominantemente hidroelétrico, merece cuidados especiais. Diferente, por exemplo, dos aplicáveis ao mercado agrícola.

A reforma do setor público que ocorreu na segunda metade da década de 90 foi feita com o objetivo de afastar o Estado de atividades produtivas e permitir foco governamental em temas mais diretamente relacionados com a cidadania, como é o caso da universalização da educação e do acesso ao sistema de saúde pública. Como conseqüência, a responsabilidade pela expansão da capacidade de geração deixou, à época, de ser governamental. Supunha-se que o mercado se encarregaria da tarefa. Isto é, imaginava-se que os compradores de energia no atacado – as distribuidoras e as grandes empresas eletro-intensivas – teriam interesse em encomendar blocos de energia das geradoras para atender a demanda crescente, o que acabaria por estimular novos investimentos em geração. Lamentavelmente, ocorreram “falhas de mercado” que resultaram em investimentos supostamente inferiores ao que teriam ocorrido sob a tutela governamental.

Ao contrário do que pensam os não familiarizados com o setor, o faturamento mensal de uma usina hidroelétrica tem pouca relação com a quantidade de energia que tenha sido efetivamente produzida nela. Trata-se de uma situação totalmente diferente do que se observa, em geral, no mundo empresarial. Afinal, o dono de uma fábrica de sapatos, por exemplo, fatura proporcionalmente ao número de pares de sapatos que produz.

A peculiaridade existe porque as usinas estão dispostas “em cascata” ao longo dos rios, e o que é melhor para o país não resulta necessariamente da soma de decisões individuais, tomadas pelo responsável de cada usina. Por exemplo, se o dono da usina situada na cabeceira de um rio tivesse a liberdade de estocar água no reservatório, em vez de produzir energia, poderia faltar água para passar pelas turbinas das usinas situadas rio abaixo. Ou
ainda, se em uma bacia hidrográfica houvesse pouca água em estoque e muita em outra, seria conveniente concentrar a
geração na bacia com reservatórios cheios e transmitir a energia pelo sistema de transmissão. Por essa razão, é o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS – que decide a quantidade de energia que cada hidroelétrica deve produzir. Para isso, o ONS procura minimizar o custo operativo e o de racionamento do Sistema Interligado. Estima-se que a operação centralizada resulta em uma economia para o consumidor de cerca de 20% da parcela “custo de geração”. Portanto, não é uma vantagem que se possa desprezar.

O custo operativo de uma usina hidroelétrica é sempre bem inferior ao de uma termelétrica do mesmo porte. Ocorre o inverso com relação ao custo de implantação: as usinas termelétricas podem ser instaladas em curto prazo – aproximadamente, três anos – praticamente em qualquer lugar, de preferência perto dos centros consumidores de eletricidade, com baixo custo de obras civis e de sistema de transmissão. Já as usinas hidroelétricas só podem ser instaladas junto aos rios. Em locais onde a conjugação de vazão e queda seja favorável, em prazo longo – aproximadamente, cinco anos – em geral, com alto custo de obras civis e de sistemas de transmissão.

O parque hidroelétrico pode falhar por falta de água. Admite-se como aceitável que a probabilidade desse evento, em um ano qualquer, seja 5%. Já o parque termoelétrico deveria, em princípio, ser muito mais confiável no quesito “disponibilidade de combustível”, embora, no Brasil, se observe desvios dessa regra geral, por falta de gás natural.

Nos países desenvolvidos, a opção hidroelétrica tem sido tipicamente exercida até o limite de 70% do potencial. No Brasil, embora só se tenha utilizado cerca de 27% do potencial, a construção de novas usinas hidroelétricas tem encontrado crescentes restrições por causa dos impactos locais, tais como reassentamento de populações ou desmatamento.

A visão holística

Uma visão holística da questão ambiental recomen-daria a construção de novas centrais hidroelétricas, particularmente nos sistemas eletricamente isolados da
Amazônia, cuja energia é gerada por centrais termoelétricas que queimam óleo diesel ou combustível. Primeiro, devido ao efeito estufa: são cerca de 5,3 milhões de toneladas de CO2 liberados para a atmosfera por ano. Segundo, porque criou-se um subsídio para ajudar a pagar o custo de
produção naquela região, onerando os consumidores de todo o Brasil. Presentemente, esse subsídio está na ordem de R$ 3 bilhões por ano, o que corresponde a quase metade do gasto anual do programa Bolsa Família.

O fato é que a visão holística não tem prevalecido. A partir da década de 80, os efeitos socioambientais na escala local têm despertado vigorosa oposição de grupos ambientalistas. A ação desses ativistas encontra respaldo moral no fato de que, efetivamente, na década de 70, muitas usinas hidroelétricas foram construídas sem as precauções, hoje obrigatórias graças, em grande medida, à ação do próprio movimento ambientalista.

O que tem prevalecido é a visão do tipo small is beautiful, que favorece os pequenos empreendimentos. Sem que se perceba que a soma dos efeitos de um conjunto de pequenas centrais, dependendo da fonte utilizada, pode ser mais nociva para o meio ambiente do que uma única central que lhe seja energeticamente equivalente. Adicionalmente, há pouca atenção para o fato de que a compensação financeira que beneficia os municípios afetados por hidroelétricas tem feito com que esses apresentem, em geral, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) superior ao dos municípios assemelhados da mesma região.

A maior parte do movimento ambientalista continua a se comportar como se ainda subsistissem as condições da década de 70 e reage exigindo “impacto ambiental zero”. Trata-se de uma das raras utopias sobreviventes à queda do Muro de Berlim, que habita os corações e as mentes de muitos jovens formados em nossas melhores universidades que militam no movimento ambiental. São profissionais que, em geral, não querem ou não logram inserção na economia tradicional. Acabam por puxar mais firmemente o freio de mão que trava o desenvolvimento sustentável que lhes criaria outras oportunidades profissionais. Trata-se de perverso efeito auto-alimentador de nosso baixo crescimento na última década.

Sem desconsiderar a boa intenção do movimento ambien-talista, nenhum novo empreendimento seria construído se fosse seguida a lógica de só permitir a instalação de obras com impacto zero. Ao contrário, o razoável é procurar o conjunto de empreendimentos que produza suficiente energia para o crescimento econômico, com a ampliação da oferta de empregos, melhoria do nível de vida da população e que produza impacto socioambiental mínimo. O que é bem diferente de impacto zero.

Essa linha de compromisso entre o desejável e o possível tem encontrado obstáculos em um emaranhado de leis, decretos e regulamentos que têm logrado intimidar os técnicos e as autoridades do sistema ambiental na tomada de decisões. Qualquer autoridade pública que emita uma licença ambiental pode, a qualquer tempo, ser obrigada a responder por crime ambiental. Basta que um membro do Ministério Público discorde da decisão. Como o “crime” se caracteriza pela materialização de algum prejuízo, e como não há empreendimento que não o cause, é compreensível que o técnico ou autoridade evite a tomada de decisão, preferindo adotar posturas protelatórias. E os que poderiam ser beneficiados com a implantação de novas hidroelétricas, por serem de difícil mobilização, em geral,
não se manifestam. São os consumidores localizados, por vezes,
a milhares de quilômetros da usina, que sofreriam raciona-
mentos de eletricidade, caso não fossem construídas novas hidroelétricas.

Para dar tratamento racional ao tema, faz-se necessária uma visão não ideológica que consiga distinguir os empreendimentos bons dos maus. Se, de um lado, não se pode permitir a construção de usinas hidroelétricas que devastem o meio ambiente ou que desloquem grandes contingentes populacionais, de outro lado, não se pode admitir que essa alternativa energética seja banida pela ação de minorias militantes e pela inação de maiorias dispersas. Cabe ao Governo defender os interesses desses últimos. Ou, como costuma dizer a ministra Marina Silva: “Não basta dizer que não pode: é preciso dizer o que pode”.

Ao contrário da maioria dos outros países, o Brasil pode produzir energia de forma sustentável em suficiente quantidade para o crescimento econômico e ampliação da oferta de empregos. Adicionalmente, o Brasil tem condições de contribuir significativamente para o esforço global de mitigação da mudança climática anunciada pela maioria dos cientistas para as próximas décadas. Não podemos desperdiçar essa vantagem comparativa.