As incongruencias do sistema de cotas

31 de março de 2011

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“Somente um serviço público de qualidade para todos pode mudar a realidade de exclusão que nós vivemos. Não é com cotas. Nós defendemos a igualdade de todos os brasileiros”.
José Carlos Miranda, do Comitê por um Movimento Negro Socialista

O Supremo Tribunal Federal julgará, em breve, matéria da mais alta relevância para o ensino universitário no País: a política de cotas raciais para o ingresso em universidades públicas. O tema, como é de conhecimento geral, é polêmico e desperta acirrado debate.
Ninguém ousará negar, sob a perspectiva histórica, que a raça negra foi vítima de atrocidades e de vil exploração.  O sofrimento da raça negra, retratado nos versos imortais do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, mancha o nosso passado e inspira as ações afirmativas que, certamente, merecem o respeito e o apoio de toda a nação.
Mas a análise do tema, despojada de passionalismos e de demagogias políticas, seja pelos seus aspectos sociais, seja pela perspectiva jurídica, torna impositiva a conclusão de que esse sistema não se compatibiliza com o Estado Democrático de Direito, e não poderá prevalecer.
Diga-se, com franqueza e objetividade, o que ele realmente representa: o ingresso, em universidades públicas, em razão da cor de sua pele, de alunos que, mediante a participação no imparcial e democrático vestibular e a competição, em igualdade de condições, com os demais concorrentes, não têm a qualificação necessária para atingir notas suficientes para a sua admissão.
E como solução para esse grave problema social, ao invés de se debater a imediata e consistente reforma do ensino público brasileiro, para capacitar um maior número de alunos, de modo a que possam concorrer com mais preparo às vagas universitárias, o que se propõe é criar, por meio de deliberações de universidades e de lei, sistema de cotas, para permitir o acesso universitário àqueles que não tiveram adequada formação.
Em outras palavras, pretende-se introduzir, nas universidades públicas, alunos com deficiências educacionais que, por sua vez, se tornarão, possivelmente, após a conclusão do curso, por falta de base educacional adequada, profissionais deficientes.
E esse benéficio, segundo as regras já em vigor em diversas universidades públicas, seria destinado aos “negros e pardos”. Em um país formado por nativos e imigrantes das mais variadas origens, caberia indagar por que apenas aos negros seria conferida essa deferência. Há, no Brasil, numerosos descendentes de japoneses, chineses, italianos, índios, que também representam minorias, exploradas no passado e não contempladas com ingresso facilitado às universidades públicas.
Não se contesta que o número de alunos universitários brancos, aprovados no vestibular e que ingressaram em universidades públicas, é superior ao de negros. Trata-se de reflexo de um grave problema social; mas não de iniciativas de reprovável racismo. O sistema de vestibular em vigor nada tem de racista, ao contrário: baseia-se, apenas e tão-somente, na aferição de conhecimentos básicos e relevantes dos candidatos, independentemente de cor, credo ou religião.
Se há menos negros e pardos na universidade, esse fato se deve a razões históricas e sociais. E em razão delas, os negros são mais numerosos nas camadas menos favorecidas da sociedade do que os brancos. Por conseguinte, o problema a ser enfrentado é social, e não racial.
O Estado tem o dever, de cariz constitucional, de proporcionar a educação adequada a todos os brasileiros (CF, art. 205). Essa imposição constitucional, a despeito dos esforços políticos dos últimos anos nesse sentido, ainda não está sendo cumprida plenamente. O ensino médio no Brasil ainda é precário e esse, sim, deveria ser o foco prioritário de todos aqueles que criticam a falta de oportunidades às minorias étnicas.
Há, inegavelmente, menos médicos negros do que brancos, mas se afiguraria teratológico atribuir diplomas de medicina a profissional sem a adequada qualificação, simplesmente em função de sua cor. Mutatis mutandi, alçar um aluno despreparado ao estudo universitário é igualmente inconcebível, porque se ele carece de conhecimentos básicos, aferidos no vestibular, como se poderia forjar um futuro profissional de qualidade, se desprovido de adequada formação básica?
E o sistema de cotas tende a ser perverso aos seus próprios beneficiários. Os profissionais oriundos de cotas raciais, submetidos ao mercado, sofrerão inevitável e previsível idiossincrasias. Em qualquer seleção para a contratação de profissionais, o que se busca, perdoe-se a obviedade, são aqueles mais qualificados. Os egressos do sistema de cotas geram a suspeita de que, se não tiveram condições de ingressar na universidade pela consistência e desempenho e não competiram, em igualdade de condições, com os demais vestibulandos, seriam profissionalmente menos qualificados. Será que, nesse contexto, serão sugeridas, para todos os segmentos de mercado, também contratações em cotas?
O aproveitamento das aulas e a qualidade dos profissionais oriundos de cotas, a serem apresentados ao mercado nacional pelas universidades públicas, são preocupações pertinentes, que devem provocar a reflexão racional sobre o tema.
No ano de 2003, a título de exemplo, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, divulgou que pelo menos 643 candidatos (13% do total) conseguiram a vaga porque se declararam negros ou pardos, ou seja, eles não obteriam a vaga se não houvesse a cota racial (Fonte:  Folha de São Paulo, 15/02/2003, São Paulo SP, Antônio Gois, da Sucursal do Rio).
A experiência mostra que não se muda a realidade social por meio de leis e de regras demagógicas. E por meio de leis também não se transfere base educacional para quem não a possui. A igualdade de oportunidades só poderá ser atingida através da educação fundamental consistente, que deve ser provida pelo Estado, como determina a carta política. E é essa a providência que deveria estar sendo objeto de cobrança, pelos negros, pardos e por todos os demais segmentos da sociedade. Garantido o acesso ao adequado ensino, todos terão condições de disputar, através do sistema de vestibular, as vagas em universidade públicas.
E se o sistema de cotas raciais para ingresso em universidades públicas não atende a sua anunciada finalidade social, também afronta a Constituição da República e com ela é incompatível.
É principio constitucional, assegurado por cláusula pétrea, a igualdade de todos perante a lei (CF, art. 5º). Atribuir vagas especiais a determinado segmento da sociedade em universidades públicas representa manifesta transgressão do princípio da isonomia e configura racismo às avessas. Afinal, como se poderia compatibilizar a igualdade perante a lei com a circunstância de um candidato asiático que, embora com nota superior, tenha sido excluído de universidade pública, para dar lugar a um estudante pardo, com nota inferior, simplesmente em razão da cor? A igualdade de condições para o acesso e permanência em entidades de ensino também é garantida no art. 206, I, da Constituição da República.
Como já alertou Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao comentar o sistema de cotas raciais, “essas normas são inconstitucionais, porque violam o princípio da igualdade, que proíbe a diferenciação dos cidadãos por raça, cor, etc”. E o renomado jurista acrescenta: “Além disso, é absolutamente inexequível determinar quem pertence à raça negra. A lei só vai resultar no arbítrio.” (Fonte:  O Estado de São Paulo, 16/02/2003, São Paulo/ SP, Lourival Sant’anna).
Nem se invoque Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços, que recomenda tratar desigualmente os desiguais, na proporção de sua desigualdade. Cor da pele não configura critério definidor de desigualdade, ainda mais em um país de intensa miscigenação como o Brasil. E a discriminação ou preconceito de raça é repudiada pelo art. 4º, VIII, da Constituição da República e configura crime inafiançável, de acordo com o seu art. 5º, XLII.
Não se contesta que é possível distinguir pessoas e situações para o fim de dar a elas tratamento jurídico diferenciado; faz-se impositivo, entretanto, determinar os critérios que permitirão identificar as hipóteses em que essa distinção será juridicamente possível. Há quem sustente, em favor das cotas étnicas, o fato de a Constituição da República, em seu art. 37, VIII, estipular reserva de vagas para deficientes físicos no ingresso de empregos públicos. Esse argumento, entretanto, não se justifica. Limitações físicas são restrições objetivas que, de fato, poderiam repercutir na execução de atividades laborativas. Nesse caso, o legislador constituinte, por reconhecer as restrições de mercado a esse segmento da população, assegurou-lhes vagas no serviço público, como forma de inseri-los no mercado de trabalho. Mas raça não é, obviamente, deficiência, nem dela pode decorrer incapacidade, seja intelectual, seja laborativa. E afirmar o contrário representa reprovável iniciativa de descriminação racial, reprimida pela carta política e pela Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.
Não se rejeita, neste artigo, iniciativas e ideias inovadoras para a correção de desigualdades, que são profícuas e desejáveis. Mas a desigualdade que precisa ser reparada é de natureza social, e não racial. Nesse contexto, se comprovada e confirmada a eficácia do sistema de cotas, através de estudos profundos de suas repercussões, ele deveria ter por objeto a principal causa do problema, sem estrabismos: a desigualdade social e a deficiência do ensino médio no Brasil.
É irreprochável a opinião manifestada por Walter Williams, professor de Economia da Universidade George Manson, Virgínia: “Cotas raciais no Brasil, um país mais miscigenado que os Estados Unidos, são um despropósito. Além disso, forçam uma identificação racial que não faz parte da cultura brasileira. Forçar a classificação racial é mau caminho”.
Por essas razões e pelas repercussões deletérias que o sistema de cotas poderá infringir ao País, se forem declaradas constitucionais as leis que o prevêem, espera-se que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República, reconheça a inconstitucionalidade dessas iniciativas discriminatórias.