Aristóteles estava certo

16 de março de 2004

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O presidente da República. O presidente da OAB, o ministro Nelson Jobim, futuro presidente do STF, o igualmente futuro presidente do STJ, ministro Edson Vidigal, são a favor do controle externo do judiciário. É verdade que aquele suplente se senador, um tal de Calixto, com direitos políticos cassados pela Justiça marotamente enganou todo mundo e tomou posse no Senado. Ato nulo. Mas aproveitou para dar entrevista e defender o controle externo, com um gostinho de vingança contra o juiz que cassou seus direitos. Foi o gato que entrou na tuba baixando a qualidade da banda.

Com tantos presidentes e um gato de tuba a favor do controle externo, o Congresso resistirá? É preciso refletir e com calma. Primeiro vamos entender o que é controle interno. A constituição de 1988 estabeleceu que os tribunais poderiam, não propriamente punir, mas remover, colocar em disponibilidade ou aposentar magistrado por interesse público e pelo voto de dois terços do respectivo tribunal em processo administrativo. O quorum de dois terços era altíssimo. Difícil de ser alcançado, sobretudo nos estados, não todos, onde a política apadrinha e desvirtua a vida da Justiça, não pelo controle, mas pela influência externa. E mais: força o julgamento secreto, porque, se um juiz recebesse contra ele os votos da maioria, embora moralmente condenado, estaria tecnicamente e absolvido e continuaria no posto. Logo ninguém pode ficar sabendo que o meritíssimo foi condenado apenas simbolicamente, isto é, de mentirinha. Continuaria merecendo o tratamento de Vossa Excelência.

Houve uma reforma constitucional, também de mentirinha, e reduziu-se o quorum de dois terços para maioria absoluta. O problema continuou igual. Se condenado por maioria simples, o juiz está absolvido. Por isso o processo continua secreto. E continuam os apadrinhamentos, o jeitinho, tudo muito obscuro como convém a julgamentos secretos. Claro, insisto: há honrosas exceções, que são honrosas precisamente por serem exceções.

Surgiu a idéia de se constituir o Conselho Nacional de Justiça, com posição hierárquica superior a todos os órgãos estaduais e federais do judiciário, isto é, o julgamento disciplinar dos magistrados não se fará somente dentro dos tribunais, mas e também pelo órgão superior, o controle é externo, atribuído ao juiz de fora, coisa que os mineiros conhecem muito bem. Até aí tudo bem, tudo muito bem. De fora, mas juiz.

Porém (há sempre um, porém!) na redação do projeto de reforma constitucional, aproveitaram para enfiar dentro do Conselho membros mais externos do que o próprio controle imaginado: advogados, Ministério Público (estes já controlam os juízes diariamente pelo exercício de suas profissões) e representantes da cidadania, que nada tem que ver com a magistratura. A meta é criar empregos. E entre os membros magistrados, autorizaram a nomeação de juiz de primeiro grau que vai julgar seus superiores no tribunal a que pertence, e que, por sua vez, são competentes para julgar. Enfim, enfiaram leigos e sargentos na corte marcial para julgarem generais, que podem julgar o sargento. Vai bagunçar, tudo em nome da democracia.

Ora quem inventou a democracia foram os gregos. Entre os gregos, o maior filósofo político foi Aristóteles, ainda hoje insuperado. É dele a seguinte lição sobre eleição de membros de órgãos profissionais, que ele chama de representação ocupacional, anotem por favor: “O governo é uma coisa complexa demais para que seus problemas sejam decididos por muitos, quando problemas menores são reservados à sabedoria e capacidade de poucos. Assim como médico  deve ser julgado pelo médico assim também devem os homens em geral ser julgados pelos seus pares. E não deverá esse mesmo princípio ser aplicado às eleições?Pois uma eleição certa só pode ser feita por pessoas capazes: um geômetra, por exemplo, fará a escolha certa em assuntos de geometria; ou um piloto em assuntos de navegação. De modo que nem a eleição de magistrados nem sua convocação para a prestação de contas deverá ser confiada a muitos.”

Dirão que Aristóteles não conheceu os estudos do Dr. Sérgio Renault, jovem jurista que orienta o governo atual em assuntos de controle externo do judiciário.Seus trabalhos, que são de boa qualidade, mas sem grande experiência, ainda não desmentem Aristóteles. O principal estilo do Dr. Renault foi uma minuciosa análise do Poder Judiciário da Bahia. Mas passou batido. Na boa terra já houve controle externo e os resultados não foram animadores. Notem que foi exercido durante anos, e pessoalmente, pelo Senador Antônio Carlos Magalhães, que é médico. Não deu certo.

Se um juiz pratica corrupção do tipo grosseiro, isto é, leva dinheiro, vende sentença, a polícia pode resolver. O difícil é controlar o exercício malandro da função jurisdicional que, em geral, faz-se sub-repticiamente em misteriosas e complexas formas de conduzir processos ou decidir questões intricadas. O que farão, nesses casos os representantes da cidadania, que não sabem o que é cidadania, que não sabem o que é anticrese, condomínio edilício, comandita por ações ou eleição de cabecel? Como um membro leigo do Conselho nacional de Justiça vai tocar rabecão sem saber música?  Vai incomodar os demais membros da orquestra por ser um estranho no ninho. E desafinado.

Não deu certo na França, que reformou a composição do órgão controlador e hoje somente admite magistrados, reconhecendo, afinal, que Aristóteles estava certo. É isso tudo sem discutir a separação de poderes, principio constitucional que, no Brasil, é clausula pétrea e na França não existe. Creio que o congresso Nacional, com um pouquinho de reflexão, pode aperfeiçoar o projeto permitindo que advogados e membros do Ministério público oficiem no Conselhão porque são vocacionados para tanto, mas que os julgamentos dos processos seja de competência exclusiva de quem sabe julgar, de quem foi preparado profissionalmente, para julgar seus pares, isto é, juízes.

Preserva-se a separação, a independência, a soberania constitucional dos poderes, o que é de bom juízo. É simples. Ou Aristóteles estava errado?