Agravos à Advocacia

11 de agosto de 2014

Compartilhe:

Tecio-Lins-e-SilvaO presidente do IAB, Técio Lins e Silva, critica a pressão cada vez maior para que os advogados delatem seus clientes e defende atualização do Código de Ética para punir maus profissionais

A advocacia vive um momento crucial, avalia o criminalista Técio Lins e Silva, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) – entidade tradicional da categoria, com 171 anos de existência. Em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, ele criticou com veemência a pressão que os causídicos cada vez mais vêm sofrendo para que passem a delatar aqueles que os contratam para defendê-los. “O exemplo mais recente é este inspirado na legislação americana antiterrorista, da lei e da ordem, do medo e do terror, que estabelece limitações ao exercício da advocacia ao obrigar os advogados a delatarem seus clientes se tomarem conhecimento de que eles cometeram atos de improbidade ou que contrariam as leis. Então, o advogado passa a ser cúmplice e protagonista da acusação, o que desvirtua absoluta e inteiramente o sentido e a sacralidade do direito de defesa”, denunciou.

No mês do advogado, com a celebração da carreirra no dia 11 de agosto, o presidente do IAB aproveitou para criticar o posicionamento cada vez mais frequente da sociedade – e pior, também entre os que atuam junto ao Poder Judiciário – de igualar o advogado ao acusado que ele defende. “Hoje, o advogado que defende um criminoso acaba a ele sendo equiparado. O advogado não defende o crime, mas o criminoso. É como o cristão que odeia o pecado, mas ama o pecador. Não há incompatibilidade em se defender os direitos que o acusado tem. Isso não quer dizer que os advogados estão a defender crimes”, destacou.

Na avaliação de Técio, o momento é de a advocacia se unir para combater as restrições que a categoria vem sofrendo. Nesse sentido, ele conta que o IAB tem muito a contribuir. O criminalista afirmou que vai fomentar a participação do Instituto no campo Legislativo, por meio de estudos e da elaboração de pareceres técnicos a serem remetidos ao Congresso Nacional sobre os mais diversos projetos de lei em tramitação. “O IAB tem tradição centenária e positiva de contribuição para a vida jurídica do País. Não foi criado para defender privilégios, mas, sim, para defender a ordem jurídica, trabalhando com o que há de mais amplo, e não com a perspectiva de defender corporações”, ressaltou.

Técio Lins e Silva assumiu a presidência do IAB no último dia 9 de maio, em uma prestigiada cerimônia que reuniu mais de 700 convidados, de membros da advocacia a ministros dos tribunais superiores. À Revista JC ele contou como têm sido esses primeiros meses à frente da entidade e seus planos para a instituição até o fim de seu mandato. Confira na íntegra da entrevista.

Revista Justiça & Cidadania – Como presidente de uma das mais tradicionais entidades de advogados, que análise o senhor faz da advocacia atualmente no Brasil?

Técio Lins e Silva – Vivemos um momento crucial e fundamental, que eu considero como um divisor de águas. A advocacia tradicional, transformada no período da ditadura em uma advocacia de coragem, conseguiu, com sua tenacidade e bravura, fazer que a Justiça Militar cumprisse o papel de não permitir que o País tivesse uma Justiça de exceção. É importante enfatizar: a Justiça Militar teve papel muito importante, diria até garantista e inesperado aos olhos da nação, que tinha tudo para pensar que ela capitularia e seria a Justiça do Poder. A Justiça Militar assegurou o mínimo de respeito aos perseguidos políticos; muita gente foi absolvida. A Justiça Militar concedeu centenas de habeas corpus, trancando processos ou anulando-os por inépcia da denúncia. Tanto que o Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, suspendeu os habeas corpus para os presos políticos. Esse depoimento que presto é unânime entre os advogados que viveram nessa época. Mas, em 1988, veio a nova Constituição Federal e um novo tempo foi inaugurado. Assistimos ao processo de democratização, que recompôs as instituições e dotou o País de um Estado Democrático de Direito que não existia no período militar. Nesses últimos 25 anos, inauguramos tempos modernos, com eleições livres e diretas para presidente da República e a permanente construção da democracia. Entretanto, apesar desse panorama extremamente favorável, a advocacia brasileira tem sofrido agravos violentíssimos.

Que agravos são esses?

– O exemplo mais recente é este inspirado na legislação americana antiterrorista, da lei e da ordem, do medo e do terror, que estabelece limitações ao exercício da advocacia ao obrigar os advogados a delatarem seus clientes se tomarem conhecimento de que eles cometeram atos de improbidade ou que contrariam as leis. O advogado passa a ser, então, um cúmplice e protagonista da acusação, o que desvirtua absoluta e inteiramente o sentido e a sacralidade do direito de defesa. Sim, contraria tudo aquilo que é representado pela figura de Jesus Cristo nos tribunais e que não tem nada a ver com a Igreja Católica. A figura de Cristo em todos os tribunais do País e no plenário da Corte Suprema é para nos lembrar do primeiro erro judiciário da história da humanidade. Cristo, que não teve acesso ao direito de defesa, que foi julgado da forma que foi e crucificado. As pessoas que não têm a compreensão dessa grandeza histórica e humanitária, erroneamente, requerem a retirada da imagem de Cristo dos tribunais sob o fundamento de que o Estado é laico. O Estado é laico, mas a imagem de Cristo não tem nada a ver com religião. Como eu disse, é para lembrar os juízes do primeiro erro judiciário…

Então, estamos sendo satanizados, e muito por influência dos países que têm predominância econômica no mundo e estão impondo – e o Brasil está cedendo a ele – um comportamento à advocacia que é inaceitável. É preciso que os advogados reajam. Essas questões não são passíveis de regulamentação. São cláusulas pétreas da advocacia. São, portanto, questões inegociáveis. A advocacia tem de ser livre e independente. Não pode estar submetida, absolutamente, a esses controles da economia mundial.

Mas como balizar, por exemplo, a atuação do advogado na defesa do cliente com o que vemos, em algumas notícias, de advogados que se associaram aos clientes na prática criminosa?

– Isso se resolve com o Código de Ética profissional. Há um debate posto pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para a atualização das regras deontológicas. Temos mesmo que atualizar o Código de Ética e estabelecer mecanismos que funcionem, para impor o comportamento ético e punir o advogado que se acumplicia ao cliente. O problema, contudo, é a satanização que tem sofrido o advogado na defesa dos seus clientes. Hoje, o advogado que defende um criminoso acaba a ele sendo equiparado. O advogado não defende o crime, mas o criminoso. É como o cristão que odeia o pecado, mas ama o pecador. Não há incompatibilidade em se defendem os direitos do acusado. Isso não quer dizer que os advogados estão a defender crimes. Uma vez fui despachar um habeas corpus com um juiz, e ele me perguntou qual era o crime. Eu disse: – Estelionato. Ele retrucou: – Não gosto de estelionato, ao que respondi: – E de qual crime o senhor gosta? De crime contra os costumes, estupro, sedução? Sim, qual é o crime que lhe agrada? Eu também não gosto de estelionato. Não gosto de nenhum crime. Não estava ali para defender o estelionato, mas o acusado de estelionato, em uma perspectiva de que ele era inocente e tinha direitos que deveriam ser reconhecidos. Veja, ouvi isso de um juiz de uma corte superior. Essa confusão existe e temos de lutar contra isso.

O advogado dos tempos modernos sofre. Ele é confundido com a acusação de seu cliente, ou seja, a acusação também lhe é estendida e ele passa a ser cúmplice do ato criminoso ou eticamente reprovável. Hoje, diria que o advogado sofre também outro tipo de constrangimento. Por exemplo, essa pressão internacional e que envolve a questão do compliance, ou seja, da obrigação do advogado de ter de delatar seu cliente, sob a pena de ele próprio incorrer em prática criminosa. Esse é um aspecto gravíssimo desse século.

Há outros aspectos igualmente graves, que se repetem no dia a dia do advogado. Exemplo é a incapacidade da Justiça para resolver a questão do volume de trabalho. Os juízes vivem soterrados de processos e cada vez mais dependentes das assessorias porque não podem, humanamente, dar conta do volume do trabalho que têm sozinhos. E aí sofre mais uma vez o advogado, que tem dificuldade de acesso aos juízes para levar seus pleitos e discutir suas causas. Eles são impedidos no seu cotidiano e encontram dificuldade de cumprir o mandamento constitucional, previsto no artigo 133, que diz que o advogado é indispensável à administração da Justiça. Esquecem-se os protagonistas do Poder Judiciário que sem o advogado não existe administração da Justiça. E essa é uma questão importantíssima para o exercício livre da advocacia. É importante para a liberdade da Justiça porque a Constituição, ao eleger o advogado como elemento indispensável à administração da Justiça, não o fez em um enunciado vazio. Isso é algo a ser cumprido e respeitado. E se não é cumprido nem respeitado, desmorona-se a ideia de Justiça livre e democrática.

Mas a advocacia já não participa da administração da Justiça ao ter assento e voz, assim como representantes, no Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, órgão de planejamento estratégico do Poder Judiciário e do qual, inclusive, o senhor já foi integrante?

– O Conselho Federal da OAB, órgão máximo da advocacia, tem assento no Conselho Nacional do Ministério Público e no Conselho Nacional de Justiça. Além disso, os advogados brasileiros têm presença importante no Legislativo, onde atuam e participam nas principais questões. Porém, me refiro ao dia a dia do advogado, que sai com sua pasta cheia de documentos para representar o cliente nos tribunais ou nas repartições, enfim nos lugares onde ele é indispensável como representante da parte interessada. Somos importantes porque temos o monopólio da representação judicial. Somente o advogado tem o poder de levar o conflito, assim também como a proposta de solução, à justiça e ao juiz. Esse monopólio da representação foi dado ao advogado pela Constituição. O advogado é também representante da cidadania e do cidadão. Ele é quem, por lei, pode orientar. E, além de tudo isso, o advogado é elemento indispensável à administração da Justiça. Então quando a Justiça, os juízes ou os órgãos do Poder Judiciário impõem limitações ao advogado, estão impondo limitações ao funcionamento da Justiça e ao Estado de Direito Democrático. Isso é muito grave. É fundamental que os administradores da Justiça, além dos membros do Poder Judiciário, tenham consciência do papel dos advogados, da razão de ser e da existência desses profissionais e procedam de acordo com esse entendimento para que eles possam atuar de forma livre. Com isso estaremos tornando a sociedade e a Justiça livres, estaremos fortalecendo a democracia. O Instituto dos Advogados não tem a função de defender as prerrogativas da advocacia. Essa é uma função corporativa, portanto, da OAB. Mas o Instituto tem interesse absoluto no respeito das prerrogativas e vai lutar por elas.

Como o Instituto pode, então, colaborar para a defesa das prerrogativas?

– Por exemplo, nesse mês de maio foi apresentado um projeto de lei na Câmara dos Deputados que criminaliza a violação das prerrogativas dos advogados. Isto quer dizer que a autoridade pública que desrespeitar e não permitir que o advogado exerça com liberdade as suas prerrogativas, que são as prerrogativas da lei, em favor do cidadão que representa, estará sujeita a ser processada e julgada criminalmente. O Instituto dos Advogados debateu esse tema e apresentou um parecer com os fundamentos históricos, legais, éticos e políticos para a aprovação desse projeto, de forma a ajudar o Congresso Nacional a decidir. Esse é o trabalho do IAB: no sentido de a academia fornecer ao Congresso Nacional e às autoridades do País orientação e esclarecimento sobre as questões vinculadas ao Direito e sobre como essas questões devem, no entender do Instituto, ser compreendidas no âmbito do aperfeiçoamento da legislação.

Ao tomar posse como presidente do IAB, o senhor afirmou que irá fomentar a interação do Instituto com os demais poderes, sobretudo o Legislativo. Quais são os projetos em curso no Congresso que mais interessam à entidade?

– Antes de responder, destaco que quero trabalhar em consonância e em parceria absoluta com a OAB, em todos os níveis, ou seja, com as ordens estaduais, porque o Instituto é nacional, e com o Conselho Federal, junto às comissões que atuam no acompanhamento legislativo e na formulação de pareceres sobre os projetos de lei. Então, a premissa é estabelecer uma parceria com as seccionais e com o Conselho Federal. Essa é a questão. Posto isso, no Congresso Nacional, estão questões fundamentais para a ordem jurídica. O Código Comercial, por exemplo, encontra-se em debate. Essa lei está em vigor desde 1850. O projeto que lhe deu origem foi submetido ao imperador Dom Pedro II e transformado em lei por inspiração e debate do Instituto dos Advogados Brasileiros. Veja, então, a força dessa lei que varou os séculos e está há 164 anos em vigor. É claro que necessita ser reformada, e nós temos o dever histórico, e até da paternidade, de socorrer essa reforma, justamente para que seja tão boa como foi originalmente e a lei possa assim persistir por mais 164 anos.

Outro projeto que também destaco é o Código Penal, instrumento fundamental da cidadania. O Código Penal Brasileiro, que estabelece crimes e penas, também vai ser debatido na próxima legislatura. Além disso, há o Código Eleitoral, o Código de Processo Penal, o Código de Processo Civil, a Lei de Execução Penal, as leis de Mediação e Arbitragem, e vários projetos de leis que influem na ordem jurídica brasileira.

Advogado da área criminal, como o senhor avalia a reforma das leis penais brasileiras, tendo em vista a realidade carcerária do País?

– Qualquer interferência desastrosa em relação ao sistema penitenciário pode produzir prejuízos incalculáveis para o País e para a Justiça criminal. Por isso, essas questões nos interessam do ponto de vista acadêmico e do funcionamento do Judiciário e das instituições. O Instituto dos Advogados Brasileiros é uma espécie de guardião da cidadania e da ordem jurídica. Para isso que foi criado, ainda no Império. Na época, era frequentado por Dom Pedro II, que buscava se orientar para a regência e a administração do império brasileiro. O IAB tem uma tradição centenária e positiva de contribuição para a vida jurídica do País. Não foi criado para defender privilégios, mas, sim, para defender a ordem jurídica, trabalhando com o que há de mais amplo e não com a perspectiva de defender corporações. O compromisso do IAB é com a ordem jurídica brasileira.

No seu discurso de posse, o senhor disse que pretende ampliar a vocação acadêmica do Instituto. Nesse sentido, verifica-se em curso uma parceria com a Universidade de Coimbra. O que o senhor pode adiantar sobre isso?

– O primeiro presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, que era um gênio, mudou seu nome de Francisco Gomes Brandão para Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, porque queria destacar suas origens indígenas. Ele, que foi presidente do Banco do Brasil, era versado em Economia. Constituinte em 1823, tinha um conhecimento eclético, havia morado na Europa; enfim, teve uma vida riquíssima. Foi um dos fundadores do IAB, mas não se formou no Brasil, porque não havia no País faculdades de Direito. Ele se formou em Portugal, na Universidade de Coimbra. Coimbra, então, é nosso berço. Foi dali que vieram os primeiros ensinamentos do Direito. Temos, portanto, uma vinculação muito estreita com os portugueses e com Coimbra, que é um centro universitário de excelência. Estamos, por isso, em conversas para realizarmos cursos, mestrados e doutorados. Queremos ter um entendimento acadêmico com a Universidade de Coimbra, assim como queremos ter também com outras entidades de excelência, como a Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, com quem também teremos parcerias importantes.

Como têm sido esses primeiros dias à frente do IAB?

– Estou ainda tomando pé das questões do Instituto. A ideia é organizar e fortalecer a administração. Temos a diretoria estatutária, mas criamos também uma diretoria executiva, com 15 diretorias voltadas para os mais variados assuntos e cujos diretores já estão tocando seus projetos com liberdade, justamente para que possamos atuar em diversas áreas, em expressão plural da ação dos advogados brasileiros. Também, nesse momento, estamos voltados para a organização física do IAB. Vamos receber a biblioteca da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio. Sim, a Seccional, em expressão à vocação acadêmica do Instituto, vai nos entregar a administração da sua biblioteca. Então, precisamos adequar o local. Essa organização física e interna tem de ser feita porque teremos muito trabalho pela frente. Quero que tudo isso seja um marco histórico para o IAB e para o Brasil.