Edição 191
A verdade necessária sobre as violações de direitos humanos e a CNV
20 de julho de 2016
Reis Friede Desembargador Federal
Enquanto se consumiram, e em muitos aspectos continuam a se consumir, mesmo após a conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), elevados recursos, tempo e mobilizações nos âmbitos federal, estadual e municipal para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas há quase meio século e, portanto, pertinentes ao âmbito exclusivamente histórico, muito mais graves (até porque atuais) violações de direitos humanos continuam a ser, sistematicamente, perpetradas no Brasil nos mais variados setores da sociedade civil. A contínua perseguição de minorias, como os negros, homossexuais, indígenas, dentre outros, além da manutenção do preconceito de gênero e das violentas ações de intolerância religiosa continua pesando negativamente nas estatísticas do País. No que se refere aos pejorativamente denominados “gays”, o Escritório Nacional de Direitos Humanos recebeu mais de três mil denúncias de violência em 2012, o que representou um crescimento de 166% em relação a 2011 e, ainda, segundo relatórios do Grupo Gay da Bahia (GGB), mais de 600 homossexuais foram assassinados nos últimos dois anos. Por outro prisma, é cediço reconhecer que as violentas ações de intolerância religiosa vis-à-vis com a escandalosa omissão das autoridades também se somam a desafiar a frágil qualificação “democrática” do atual Estado de Direito brasileiro.
A tal consolidação da democracia brasileira é uma história da carochinha, um conto pra boi dormir. A intolerância e as tendências autoritárias perpassam com vigor a sociedade brasileira. Querem dados? As taxas de homicídio, as de estupro, inclusive de crianças, as de violência policial, a vigência de uma assustadora homofobia, a prática disseminada da tortura e sua aceitação por amplos segmentos da sociedade. (REIS FILHO, Daniel Aarão. Revista Época, 31 Mar 2014).
Seguindo adiante, de extrema gravidade são também as constatações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no que concerne a situação das instituições prisionais brasileiras, que permitem a absoluta e recorrente degradação da dignidade humana. Tal como no passado, agentes do Estado Oficial ignoram os mais elementares direitos constitucionais expressos e legitimamente assegurados para todo o povo brasileiro. Estes, quer por atos comissivos, quer por simples omissões, perpetram as mais bárbaras ações, conforme constatou o CNJ: pessoas que, após simples interrogatório, encontram-se ilegalmente presas por mais de seis anos, muitas algemadas por mais de 30 dias nos corredores das cadeias, sem banho ou visitas e, pasmem, defecando sobre seus próprios pés.
Na era da “consagração dos direitos humanos”, essa realidade se configura como paradoxal, não parecendo, de fato, diversa das encontradas nas masmorras medievais e nas fortalezas construídas no início do século XIX, em que muros, células, ferrolhos e castigos visavam “modelar” os indivíduos desviantes das “normas e condutas”, muitos destes encarcerados pelo simples fato de serem diferentes. Consoante dados do sistema de Informações Penitenciárias, a taxa de encarceramento do País aumentou quase 30% nos últimos cinco anos. A população adulta em prisões já passa de meio milhão de pessoas, o que excede em 43% a capacidade das penitenciárias.
O Relatório Mundial de Direitos Humanos, edição de 2014, elaborado pela ONG Human Rights Watch, apresenta os desafios que o País ainda precisa enfrentar, como a violência policial, o uso da tortura e a superlotação das prisões. Além do número excedente de presos por espaço e das más condições das cadeias, a tortura – não a pretérita, mas a presente nos dias atuais –, foi classificada pela ONG como um problema crônico nas delegacias de polícia e nas prisões brasileiras. As práticas abusivas de policiais, iguais às perpetuadas, com a repulsiva tolerância do Estado, por parte de muitos chefes de facções, são motivos de preocupação da instituição, porque tanto os agentes da lei que cometem abusos contra os presos como os agentes do denominado Estado Paralelo raramente respondem judicialmente pelos crimes.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também mostram que 1.890 pessoas morreram em operações policiais no Brasil em 2012, uma média de cinco pessoas por dia. Enquanto nas cidades a preocupação é com a ação das polícias e dos denominados “milicianos”, no campo, os conflitos de terra levam a uma verdadeira batalha entre ativistas rurais e indígenas e donos de terra. Consoante informações da Comissão Pastoral da Terra, em 2012, 36 pessoas envolvidas em conflitos de terra foram mortas e 77 foram vítimas de tentativa de homicídio em todo o país.
Insta salientar que somente entre 2009 e 2011, o CNJ registrou a existência de 180 cadáveres cujas mortes simplesmente “não possuem causa”, o que, estatisticamente, é um número proporcionalmente muito superior – e verdadeiramente estarrecedor – em relação aos mortos e desaparecidos em torturas durante todos os 20 anos de vigência do chamado Regime Militar, e, o que é mais grave, estão ocorrendo no presente, não representando meras ilações históricas.
Ante toda essa sorte de violências e atrocidades acima mencionada, constata-se que, da mesma forma que o Presidente Figueiredo, no exercício de seu governo, perdeu a oportunidade histórica de investigar e punir os crimes perpetrados pelos radicais de direita após a edição da Lei de Anistia (v. g. atentado ao Riocentro, entre outros), hoje prescritos, inclusive por reconhecimento judicial, a CNV igualmente perdeu a idêntica oportunidade de contribuir efetivamente para o fortalecimento do respeito aos direitos humanos no País.
Frise-se: não se está questionando a necessidade e a oportunidade de esclarecer a verdadeira – e, portanto, isenta – história dos horrores perpetrados tanto pela direita radical torturadora como pela esquerda radical terrorista; o problema verificado é que a busca por esta verdade ocorreu através de uma apuração visivelmente contaminada ideologicamente. Ora, se não traz a verdade imparcial – que poderia contribuir para o respeito aos direitos humanos pelas gerações atual e futuras –, esta busca representa um gasto desnecessário do erário, dinheiro este que poderia estar sendo direcionado para o combate às correntes violações aqui mencionadas.
Se a pretensão da Comissão da Verdade era reproduzir os fatos ocorridos durante o regime militar “em sua plenitude, sem ocultamentos”, como disse a presidente Dilma Rousseff ao instalá-la, há dois anos e sete meses, esse objetivo não foi atingido. (Editorial do jornal O Estado de São Paulo, 11 Dez 2014, p. A3).
Deve ser consignado, em tom de sublime advertência, que a apuração restringiu-se às violações cometidas pelos agentes do Estado, limitação esta que não estava prevista na lei que criou a Comissão.
Dessa feita, assim como não se pode deixar de reconhecer a importância do Governo Geisel para a abertura política, do Governo Figueiredo para a consolidação desta mesma distensão político-ideológica, do Governo Sarney para a efetivação da democracia política, do Governo Fernando Henrique Cardoso para a estabilidade econômica e do Governo Lula para a inclusão social, é hora do Governo Dilma Rousseff, em resposta ao clamor popular que a elegeu para dois mandatos presidenciais, estabelecer-se como o governo dos direitos humanos, resgatando o nosso país das trevas que muito comprometem a respeitabilidade com que tanto sonhamos.
Portanto, resta urgente que providências efetivas sejam tomadas, notadamente pelo Executivo, sendo certo que é hora de nossa capitã-mor deslocar a lanterna da popa, redirecionando-a para a proa do navio, escrevendo o seu importante legado na área de direitos humanos para as atuais e futuras gerações, que clamam por um novo Brasil mais digno e humano, sem deixar de buscar a verdade histórica, e não apenas uma versão unilateral da história, como bem adverte, em brilhante ensaio, o insuspeito historiador Marco Antonio Villa (Os gigolôs da memória, O Globo, Rio de Janeiro, 8 ago. 2014, p. 18).