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A Venezuela e o Mercosul

31 de março de 2010

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O Mercosul que emerge do Tratado de Assunção é, em essência, uma União Aduaneira na qual, no seu interior, se pratica o livre comércio e uma política comercial comum. Não cabe aqui reconstituir todo o histórico das negociações consubstanciado em Tratados que,  a partir da Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC), desaguaram no Mercosul. Mas cabe, sim, indagar se este é o melhor momento para o ingresso da Venezuela nessa União Aduaneira.
Como é sabido, a Venezuela postulava sua entrada no Mercosul desde 2006, o que dependia da aprovação dos Congressos Nacionais dos países membros. O Senado Federal brasileiro aprovou, recentemente, a pretensão venezuelana, sendo oportuno lembrar o argumento lançado pelo Senador Pedro Simon, uma das melhores presenças naquela Casa do Congresso, qual seja o de que tal aprovação tinha o condão de não isolar a Venezuela do resto do subcontinente. Resta, contudo, para que o ingresso desse país no Mercosul se efetive, a aprovação do Paraguai.
A indagação se justifica pela clara deterioração da situação econômica da Venezuela, refletida na taxa de inflação de 25%, a mais alta dentre os países da América do Sul, combinada com um retrocesso no PIB de 2,5%. Com uma balança comercial comprometida pela má condução da política econômica, Hugo Chávez recorre agora a um sistema dual de taxas de câmbio, na esperança de uma correção de rumo. A relação bolívar/dólar passa de 2,15 para 2,60, significando uma desvalorização de 17%, para os bens considerados essenciais, e um dólar passará, numa desvalorização de 50%, para 4,30, no caso dos bens supérfluos. O impacto dessas medidas terá um efeito mediato sobre a balança comercial, mas o efeito imediato será,  certamente, inflação ainda mais alta do que a atual.
Hugo Chávez pretende colocar a “tropa nas ruas”, para evitar que os empresários se aproveitem da situação, remarcando o preço das mercadorias compradas antes da desvalorização. É o velho argumento da realização de lucros abusivos, no desconhecimento de que a reposição dos estoques terá de ser feita a preços novos, em bolívares, que terão de incorporar a desvalorização, para que não haja desabastecimento.
Inevitavelmente, a experiência venezuelana de hoje traz à nossa memória o sistema de taxas múltiplas de câmbio, adotado no Brasil, em 1953, como resposta a uma intensa crise cambial, quando Oswaldo Aranha era Ministro da Fazenda e Marcos Souza Dantas, Diretor da Superintendência da Moeda e Crédito (SUMOC). Na famosa Instrução 70, havia cinco categorias de taxas, determinadas em função da essencialidade dos bens, e a compra da moeda estran­geira se realizava na Bolsa de Valores. Vale notar que, contrastando com a experiência venezuelana de hoje, no caso brasileiro o procedimento era um simulacro de regime de mercado, na medida em que as taxas das diferentes cate­gorias resultavam, a cada leilão, de um jogo de oferta e procura por moeda estran­geira. Nosso sistema de taxas múltiplas durou oito anos e em­bora tenha representado, através dos ágios dos leilões, alen­tada contribuição à receita fiscal, nem por isso manteve as contas públicas em boa ordem.
A nova política cambial da Venezuela remete-nos ao passado, mas os tempos atuais são de prevalência do regime de taxas flutuantes de câmbio, ainda que os Bancos Centrais possam interferir na flutuação, refletindo um sistema conhecido como “dirty float”. O regime dual de taxas, em vigor na Venezuela, contraria a tendência mundial, na direção da liberdade do mercado de câmbio.
O balanço de comércio, entre Brasil e Venezuela, foi, em 2009, amplamente favorável ao nosso país. Dos 2,7 bilhões de dólares exportados, menos de 20% foram usados para importações de origem venezuelana. Neste ano, a pauta brasileira de exportação ficará mais restrita e, em contraposição, derivados do petróleo serão importados a melhores preços, cotados em dólar.
Em resumo: a reforma cambial da Venezuela resulta das distorções na administração dos abundantes recursos gerados
pelo petróleo, que poderiam ter prevenido o descontrole do balanço de comércio e das contas públicas. Os onze anos de Hugo Chávez no poder resultam numa queda de 90% no valor da moeda nacional, embora nesse período o preço do petróleo tenha aumentado oito vezes. Com o alto preço do petróleo, foi possível ao Governo da Venezuela manter elevados gastos sociais, mas insuficientes para resolver questões básicas do abastecimento e da oferta de energia elétrica, assim como a deficiência nos transportes e noutros serviços essenciais. Fica patente como a desvalorização está em descompasso com um mínimo de harmonização, que é o pressuposto do Mercosul, como União Aduaneira.