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A validade das cláusulas limitativas nos contratos de saúde

23 de julho de 2012

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Com a positivação dos princípios pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, o ordenamento jurídico aos poucos vem sendo modificado, havendo evidente constitucionalização do Direito, inclusive no que tange aos contratos, os quais passaram a ser regidos pelo princípio geral da função social, aliando-se aos já prefalados princípios da boa-fé e do equilíbrio econômico entre as prestações.

Além destes princípios norteadores, conformam-se a eles em âmbito privado, o princípio da autonomia da vontade, da intangibilidade do conteúdo do contrato e da relatividade de seus efeitos.

Ditos princípios soam até mesmo antagônicos. Afinal, como se pode sopesar o que é mais relevante: a autonomia da vontade ou os valores gerais do Direito? Quando o particular não se preocupa em aliar os seus interesses com os gerais e isto causar prejuízo a quaisquer das partes, infringindo a sua dignidade ou a outrem, esta atribuição cabe ao Poder Judiciário no momento em que instado a fazê-lo. A Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi sintetizou brilhantemente que “O exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário, para que ele construa soluções justas, rente a realidade da vida, prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis, harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento jurídico, como a autonomia da vontade”1.

Assim, diante da realidade legislativa atual, tem-se que os contratos em geral, que originariamente permitiam aos contratantes ampla liberdade de negociação, com a criação de obrigações recíprocas – ínsitas ao princípio da autonomia contratual – sofreram forte influência principiológica com o advento do Código Civil de 2002, o qual positivou no artigo 4212 o princípio da função social do contrato, permitindo a flexibilização dos termos ajustados, quando presentes interesses metaindividuais ou individuais relativos à dignidade da pessoa humana.

A CRFB/88, no seu art. 1963,assegurou à população o direito à saúde de maneira integral pelo Estado. O ponto de partida que deve ser visto é que os planos de saúde existem para suprir uma carência do Estado, que vem enfrentando dificuldades em atender às necessidades da população no que tange a um atendimento médico adequado, exames, internações, etc.

É nesse contexto que os planos de saúde se inserem, oferecendo no mercado uma gama de serviços e pondo à disposição do consumidor a utilização dos melhores hospitais, bem como recursos tecnológicos e profissionais, mediante a celebração de contrato em que são estipuladas a abrangência dos serviços e os valores para tanto.

Quando um consumidor contrata determinado plano, opta pelo serviço que melhor lhe atende ou pelo que pode pagar. Por óbvio, quanto maior e melhor a rede credenciada, o gabarito dos profissionais, a quantidade e evolução tecnológica dos procedimentos, maior será o valor da contraprestação. Daí advém a necessidade de se ter um contrato específico para cada classe de serviço, contrato este cujo teor intrínseca e inevitavelmente contém cláusulas limitativas ou restritivas, já que não se pode perder de vista a liberdade de contratar.

Tais cláusulas, por sua vez, não visam suprimir qualquer direito ou ludibriar o consumidor, mas apenas explicitar os limites do que efetivamente será oferecido no plano escolhido/contratado.

As empresas de planos de saúde têm aprimorado os seus contratos, através da simplificação da linguagem escrita e de destaques nas cláusulas limitativas, a fim de que no ato da contratação o consumidor tenha a exata noção do que possui à sua disposição.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ tem ratificado o posicionamento de que não se configuram como abusivas as cláusulas limitativas, desde que tenham sido estipuladas de forma clara, ainda que em contrato de adesão. Por isso, importante é a compreensão da distinção entre cláusula limitativa e cláusula abusiva, esta última sim de cunho reprovável.

As cláusulas abusivas importam em onerosidade excessi­va ao consumidor, causando-lhe prejuízo ou manifesta desvantagem, enquanto que as cláusulas restritivas apenas visam delimitar a real abrangência do contrato, de forma que ambos os integrantes da relação conheçam e até mesmo exijam, ainda que pela via judicial, o cumprimento da avença, ou seja, do que está escrito, e não do que se pretende ver tutelado fruto de presunção. Aqui, não se confunda o conceito de função social do contrato com a sobreposição indiscriminada de obrigação não ajustada pelas partes.

Destaque-se que a principal diferença entre a cláusula limitativa do risco e a cláusula abusiva está que a primeira tem por finalidade restringir obrigação assumida pelo segurador, enquanto que a segunda objetiva restringir ou excluir a responsabilidade decorrente do descumprimento de uma obrigação regularmente assumida pelo segurador, ou, ainda, visa obter proveito sem causa5.

O STJ foi desafiado a julgar uma delicada situação, em que um consumidor de plano de saúde pretendia ver coberta uma cirurgia de transplante heterólogo, a qual estava expressamente excluída do contrato firmado. O entendimento predominante foi de que a cláusula de restrição não podia ser considerada como abusiva, já que redigida de forma a ser facilmente compreendida pelo homem médio, não se podendo impor ao plano o custeio de procedimento não coberto6.

O TJ/RJ também em recentes decisões acompanhou a mesma linha de pensamento 7.

Note-se que o objeto mediato destes contratos não é um bem jurídico comum, mas um dos maiores e mais bem amparados pelo Direito: a vida. Diariamente objetivamos mostrar ao Poder Judiciário que não pode ser imputada a uma empresa de direito privado uma responsabilidade inerente ao Estado, de garantir de forma irrestrita e integral o oferecimento de procedimentos e serviços que não estão abarcados no negócio jurídico firmado, sob pena de gerar evidente desequilíbrio ao particular.

Inúmeras liminares são concedidas diariamente, mesmo diante de situações com déficit probatório, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista que a preservação da vida, ante o risco de morte se sobreporia a qualquer outro, inclusive aos requisitos processuais para o deferimento de tutelas de urgência.

Esta ponderação de princípios e interesses, que se faz necessária caso a caso, geralmente tende a favorecer a parte aparentemente hipossuficiente, o consumidor, mesmo imputando-se ao prestador do serviço um ônus não previsto e, na maioria das vezes, extremamente oneroso.

A propósito, com as previsões dos arts. 468, 479, inciso IV, do artigo 5110 e 5411 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, as contratações deste tipo de seguro-saúde vêm sendo realizadas de maneira ordinária, já que não é difícil obter a tutela jurisdicional para garantir além do que os contratos prevêem, dado o aspecto público e social do vínculo, prevalecendo os interesses coletivos sobre os individuais, bem como a preservação de direitos fundamentais da pessoa humana, dentre os quais estão o direito à vida e à saúde, previstos no art. 5o, caput, da CRFB/8812.

A atividade ofertada pelos planos de saúde não é um serviço público, mas de cunho eminentemente empresarial, que tem por objetivo a obtenção de lucro, não possuindo o dever de garantir a saúde de forma integral, ilimitada, universal.

Não se pretende trazer que a vida e a saúde não mereçam amparo, mas que de forma indireta os ônus que são incutidos às empresas serão repassados aos consumidores de forma geral.

Deverá o julgador perceber que o direito não pode pretender exercer uma ação social afastando-se das previsões contratuais e muita das vezes do parco conjunto probatório, mas deve sim aplicar as disposições legais, inclusive consumeiristas, de maneira a não comprometer a atividade das empresas que atuam no ramo dos planos de saúde e se preocupam em atender ao maior número de pessoas ao oferecer serviços cada vez mais acessíveis, que só serão mantidos se for possível assegurar a vigência dos contratos firmados, sem qualquer excesso.

Além disso, os efeitos econômicos que poderão advir dessa concessão desenfreada de liminares são desastrosos, na medida em que podem ocasionar um dano social muito maior do que o prejuízo que pretendia evitar.

A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é a manutenção do equilíbrio econômico das prestações, sob pena de inviabilizar a própria atividade.

Os riscos dos contratos de saúde, como em todos os outros de qualquer atividade, são previamente calculados, de modo a assegurar às partes contratantes um perfeito ajuste entre o oferecimento do serviço e a sua contraprestação, porém, ao passo que o objeto é a posteriori aumentado/modificado sem a devida adequação financeira, o prejuízo é certo e quem paga essa conta é o consumidor final.

Notas _____________________________

1 (STJ – 3 T., REsp 972.436, Min. Nancy Andrighi, j. 17.3.9, DJ 12.6.9).

2 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

3 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

5 Cavalieri Filho, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. – 3. Reimpr. – São Paulo: Atlas, 2007.

6 EREsp 378.863.

7 APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. CONTRATO. CLÁUSULA QUE EXPRESSAMENTE AFASTA A COBERTURA DE ATENDIMENTO DOMICILIAR (HOME CARE). POSSIBILIDADE DE LIMITAÇÃO DOS RISCOS COBERTOS PELA APÓLICE. VALIDADE DA CLÁUSULA LIMITATIVA, CONSOANTE O PERMISSIVO DA LEI No LEI 8.078/90 (ART. 54, § 4o). A cláusula contratual limitativa de cobertura é válida, tendo em vista que há apenas exclusão de risco e não de responsabilidade do fornecedor de serviços. Sentença reformada. Dado provimento ao recurso do réu para julgar improcedente o pedido autoral, ficando prejudicado o recurso do autor. (Apelação Cível no 0107886-07.2010.8.19.0001. Rel. Des. CLEBER GHELFENSTEIN – Julgamento: 11/01/2012 – Décima Quarta Câmara Cível).

Cível. Consumidor. Plano de saúde. Negativa de fornecimento de transporte aeromédico. Ausência de cobertura na localidade de Teresópolis. Pretensão indenizatória por danos morais. Procedência do pedido. Apelo da parte ré e recurso adesivo pela parte autora. Serviço de Transporte Aeromédico que, por sua própria natureza, diz respeito a casos de atendimento médico que, simultaneamente impliquem em: (1) urgência e/ou emergência; (2) ocorram aonde não haja possibilidade deste atendimento. Prova dos autos que não informa, senão uma alteração de pressão da autora, que poderia, perfeitamente, ser atendida na cidade de Teresópolis. Meio de remoção excepcional que se restringe a casos graves e em localidades não atendidas pela rede credenciada. Inexistência de falha na prestação dos serviços que desautoriza a pretensão reparatória por danos morais por ausência de ato ilícito pela operadora de plano de saúde ré. Inversão das verbas de sucumbência e fixação dos honorários advocatícios em 10% do valor da causa, nos termos do que dispõe o artigo 20, §3o, do CPC. Ressalva inserta no artigo 12 da Lei no 1.060/50 que se aplica à hipótese por ser a autora beneficiária da gratuidade de justiça. Provimento do recurso principal, tendo-se por prejudicado o apelo adesivo. Decisão liminar e monocrática, nos termo do artigo 557,§1º-A, do CPC. (Apelação Cível no 0055474-73.2009.8.19.0021. Rel. Des. Pedro Freire Raguenet – Julgamento: 13/1/2012 – Sexta Câmara Cível).

8 Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

9 Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

10 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as clausulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

11 Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

12 Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes: