A urgência do debate sobre o Estatuto da Vítima

29 de junho de 2024

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A vítima de crime no Brasil, apesar de ser a principal atingida pelo delito, não está no centro do processo judicial dele decorrente – o que, além de dificultar a assistência por parte do Estado, prejudica a própria reparação do dano. Por essa razão é importantíssimo o avanço, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei no 3.890 de 2020, que institui o Estatuto da Vítima. Mais do que uma adequação do regramento jurídico a parâmetros em voga internacionalmente, a proposição, se aprovada, contribuirá para a efetividade da distribuição de Justiça. 

Na América Latina, podemos citar como modelo a ser analisado, a Ley General de Víctimas, do México – publicada em 9 de janeiro de 2013, com 180 artigos –, cujos impactos deixam entrever o que pode ocorrer em solo tupiniquim. Tanto a estrutura quanto o conteúdo da legislação devem servir de parâmetros para o debate, que já se revela urgente: afinal, enquanto o modelo atual permanece em vigor, o fim do suplício de milhões de pessoas segue distante.

É evidente que também por aqui há um clamor social pelo aperfeiçoamento das regras. Basta verificarmos os dados do 17o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Nacional de Segurança Pública (FBSP), divulgado no ano passado: aumento de 6,1% nos crimes de feminicídio, 8,2% nos crimes de violência sexual e 27% nos crimes de estelionato (entre 2021 e 2022), entre outras estatísticas alarmantes – sem mencionar as diversas campanhas de conscientização que, felizmente, multiplicaram-se nos últimos anos. 

Como exemplo a perseguir, vejamos o artigo 42 da lei mexicana: 

As autoridades da ordem federal, dos entes federativos e dos municípios fornecerão de imediato às vítimas informações e assessoria completa e clara sobre recursos e procedimentos judiciais, administrativos ou de outra natureza, os quais tenham direito para a melhor defesa de seus interesses e satisfação de suas necessidades, bem como sobre o conjunto de direitos daqueles que são titulares em sua condição de vítima. O Comitê Executivo garantirá o disposto neste artigo por meio do Departamento Jurídico Federal ou dos estados, nos termos do título correspondente. 

Em suma, a lei mexicana prevê a entrega de ajuda, assistência, compensação e presunção de boa-fé para a vítima – e garante dignidade e cuidado especializado, com uma rede de suporte que facilita o acesso ao Poder Judiciário. Uma iniciativa marcante prevista na lei mexicana é a instituição do Sistema Nacional de Atenção à Vítima, que disponibiliza assessoria jurídica, registro de ocorrências e um fundo para a recomposição de perdas.

No livro Aprobación de la Ley de Víctimas, de 2020, Eduardo Vazques narrou o caso de uma estudante da Universidade de Guadalajara que acompanhava vítimas que militavam a favor da aprovação da lei: ela contou não ter percebido alegria no momento do anúncio.

A contribuição mais valiosa do movimento (…) é que, com sua ação, é provável que, um dia, algumas delas encontrem Justiça. Tratam-se de vidas partidas, de tragédias sem consolo, que, apesar da dor que carregam, ajudam o país a refletir sobre a guerra e a deter a violência.

No Brasil, embora haja avanços legislativos recentes, como as Leis no 9.099, de 26 de setembro de 1995, e no 13.964, de 24 de dezembro de 2019, o tratamento vigente é limitado, sobretudo no âmbito penal, em que a vítima com frequência é afastada da resolução do conflito. O caminho para a implementação do novo arcabouço deve ser pautado pela construção de um marco legal abrangente – que contemple, ainda, a prevenção contínua, refletindo um compromisso real com os Direitos Humanos.

Nesse prisma, o Ministério Público nas mais diversas unidades tem realizado projetos e iniciativas a fim de especializar com maior intensidade o atendimento às vítimas e com isso ver garantido o valor fundante da dignidade da pessoa humana, desta feita de todas as pessoas que sofram no seu cotidiano agressões, violências ou ameaças de toda e qualquer ordem.

É chegada a hora da centralidade do processo penal e da Justiça ser direcionada à vítima e não preponderantemente ao réu. A centralização da figura da vítima no processo judicial, requer, acima de tudo, proteção e amparo. Novos olhares e novas atitudes trabalhadas e efetivadas.

São inaceitáveis medidas que aprofundem o sofrimento da vítima e de seus familiares ou os deixem vulneráveis ao agressor (ou a quaisquer outras eventualidades). Da mesma forma, são necessárias ferramentas que permitam a recuperação do estado de coisas anterior ao ato lesivo; do contrário, a prestação jurisdicional é incompleta – e falha, portanto, a intervenção do Poder Público. A Justiça, para ser completa, deve garantir ao réu um julgamento com respeito aos direitos fundamentais, mas deve, principalmente, assegurar à vítima o seu constitucional direito de ser vista e resguardada nesse mesmo julgamento, sob pena de ela ser duplamente punida ou revitimizada.

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