A trajetória de um vencedor

5 de março de 2004

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O novo Presidente do STJ, Ministro Edson Vidigal, conhece, como ele mesmo destaca, “todas as margens do rio”. Assim define sua experiência no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, sendo que deste último, anota, “conheço os dois lados do balcão, primeiro trabalhei como advogado; agora como Juiz. Dessa experiência tenho me servido muito como Magistrado”.

Edson Carvalho Vidigal, 59 anos, invoca, ainda, a infância humilde na pobreza do interior do Maranhão e a adolescência em que viveu metido no sofrimento das perseguições por sua militância desassombrada nos movimentos de oposição política em seu Estado. “Mas não é só aí que me inspiro”, explica.

Entre as suas leituras diárias estão Gonçalves Dias, o poeta dos timbiras, (“a vida é combate / que aos fracos abate…”) e Maimônides, o hermeneuta judeu, que também recomenda entre os autores preferenciais aos seus alunos de Direito na UNB. As outras leituras de toda hora são os processos de sua jurisdição, que lhe chegam às centenas, que os lê inteiramente e decide com simplicidade de estilo, quase saboreando. “Cada processo desses tem histórias de vidas, histórias  inimagináveis. Como Juiz tenho que buscar em cada enredo o direito mais humano; ver as pessoas como gente, vítimas de um sistema perverso, que privilegia o Estado, o poder, os poderosos, em detrimento do contribuinte, da maioria dos cidadãos”. Fala isto quase recitando, sem alterar o tom de voz.

Gosta quando alguns colegas, antes de o isolarem como voto-vencido, o classificam de muito humanista.  De fato, prefere citar poetas e filósofos do que brocardos jurídicos latinos ou jurisconsultos famosos por estarem há muito tempo nas prateleiras. Diz que prefere Fernando Pessoa, por exemplo – “O mundo é para quem nasce para o conquistar / e não para quem sonha em poder conquistá-lo / ainda que tenha razão”. Outro, também português, Almada Negreiros – “Quando cheguei devia ser tarde / porque já haviam dividido tudo / entre os outros e seus descendentes”. De Drummond, Edson Vidigal já leu tudo. Dos seus contemporâneos no Maranhão, destaca dois – Bandeira Tribuzi, seu companheiro de militância política e colega de prisão nos porões da ditadura militar (“não quero ser guardado numa antologia. / Ó que Deus me guarde de ficar fechado numa antologia. / Quero que meus versos teçam a alegria e corram nas ruas como pão da vida. / (…) Não quero meus versos numa antologia. / Quero-os rolando caminhos e dias na boca do povo: rosa da esperança / vermelha e florida) e José Chagas (“Ponte, ponte inaugurada / quando tu ainda não éras / por ti já muito passavam / de um lado ao outro da vida”. É de um poema enorme sobre corrupção política com dinheiro público no Maranhão. “E corrupção por lá nunca coube num soneto, só em poema e dos enormes”.-

Perguntado se não lia Dwoekin, Perman, Kelsen, Cabral de Moncada, Canotilho, esse pessoal do direito puro, respondeu:

– Sim, todo mundo lê, eu também. Mas prefiro a lógica de Pontes de Miranda e a simplicidade coerente de Jorge Miranda, por quem tenho, pessoalmente muito respeito. Difícil ver um homem do nível intelectual dele, que não tenha uma ponta de pedantismo. Jorge Miranda, não. É um sábio e como todo sábio é uma pessoa simples.

Para Edson Vidigal, “o problema é que a operação do direito, numa sociedade injusta como a nossa, não pode se limitar à sofisticação dos eruditos, dos exegetas. O volume é tão grande que nem há tempo para isso. Não podemos perder de vista a sociedade,  as pessoas comuns. O Juiz no Brasil precisa ter pele, beliscar-se a todo instante e conferir que também é gente, que também faz parte dessa sociedade injusta, excludente, que mantém um Estado caríssimo; um Estado que, na contrapartida, não retribui à população, em serviços públicos, o mínimo correspondente ao que arrecada em impostos.”

“Então, aduz Edson Vidigal, convocar teorias para penalizar ainda mais as pessoas comuns, os que não podem pagar advogados caros, não é justo. Lógico que isso não é direito achado na rua; isso é busca da Justiça. É preciso nunca perder de vista as pessoas simples, as que não têm malícia nem colarinho algum. Cadeia neste País é campo de concentração, é escola de crime. Temos que ler mais a Constituição, os Federalistas, Thomas Jefferson, Henry Thoreau (teórico da desobediência civil), Rosseau, (O Contrato Social), Voltaire (Tratado sobre a Tolerância),  Maimônides (613 Mandamentos), Bobbio. Erudição jurídica em excesso faz mal à democracia, ao País. Nunca esquecer que as mais perversas ditaduras também se montaram em estados de direito só que nunca democráticos. É preciso temperar esse excesso de sapiência reinante em nossas praias, nossas academias e tribunais, com leituras dos filósofos e poetas como Pessoa, Almada, Drummond e Castro Alves e também dos jornais,  suas páginas de economia e de polícia.

Edson Vidigal graduou-se em direito na Universidade de Brasília, onde agregou outros cursos à sua formação acadêmica e onde é Professor de Direito Penal e de Direito Eleitoral. Na Universidade Federal da Bahia foi Professor de Direito Eleitoral, na Pós-Graduação.  Nos anos 60 (sessenta) quando morava no Maranhão, foi Vice-Presidente da União Estadual dos Estudantes e, ao mesmo tempo, Vereador líder da Oposição na Câmara Municipal de Caxias. Não completara 20 (vinte) anos de idade quando o golpe militar o colheu, sendo cassado e preso. (“Eu devia ser muito perigoso porque o primeiro mandato cassado no Maranhão foi o meu”.)

O decreto de sua prisão preventiva (“um primor em falta de fundamentação”) ele o mantém, orgulhosamente, emoldurado em seu Gabinete de trabalho no STJ. Sempre que aparece um advogado pedindo urgência num “habeas corpus”, Edson Vidigal aponta para o quadro na parede. “Ninguém mais que eu sabe a importância de um “habeas corpus”; eu fui solto, por excesso de prazo, por uma ordem de “habeas corpus” do Superior Tribunal Militar”.

Cassado da militância política, dedicou-se ao jornalismo. Selecionado num concurso nacional  para integrar a equipe pioneira da revista “Veja”, sob a direção de Mino Carta, mudou-se para  S.Paulo, em 1968. Antes, em 1964, estivera lá, para não ser preso pela terceira vez, freqüentando como bolsista um curso sobre Direito Social, dirigido pelo Professor Cesarino Junior, na USP. Voltando ao Maranhão, em dezembro de 64 e procurado outra vez pelos militares em razão de novo decreto de prisão preventiva, ficou mais de um mês escondido na casa de um colega de escola, Marconi Caldas, cujo pai, o Desembargador Tácito Caldas, orientou-o nos procedimentos de defesa. (“O Desembargador que me deu proteção foi cassado depois pelo AI-5”.)

Depois da “Veja” Edson Vidigal trabalhou em “O Globo”, no “Jornal do Brasil” (sucursal de Brasília) e no “Correio Braziliense” e neste, além de redator, também  como advogado na equipe do Professor Pires de Saboia,  recrutada  á época  para salvar o patrimônio da empresa contra as centenas de execuções trabalhistas oriundas de outras empresas do grupo “associado”, em outros Estados.

Voltando ao Maranhão, em 1978, candidatou-se a Deputado Federal, sendo o 6º mais votado entre os 14 eleitos. No Congresso Nacional, juntou-se a Franco Montoro, Paulo Brossard, Itamar Franco, Marcos Freire, Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e outros na luta pelas eleições diretas, tendo publicado, a propósito da emenda que apresentou e defendeu, o livro “As Trombetas do Amém”.

Na Câmara, foi Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia e depois da Comissão de Comunicações; relator da CPI dos Juros; relator das investigações sobre o Projeto Jari, na Amazônia; Presidente do 1o Simpósio Sobre o Inventor Nacional, quando se discutiu pela primeira vez a informatização das eleições no País; Presidente do 1o Simpósio sobre Direito Autoral e Presidente do 1o Seminário sobre Informática, quando se discutiu, também, pela primeira vez, a quebra da reserva de mercado para a informática que, no entender de Edson Vidigal, atrapalhava mais do que ajudava a pesquisa científica no Brasil. Pelo programa “líderes do futuro” visitou os Estados Unidos, a convite, tendo sido debatedor no Seminário sobre as relações bilaterais Brasil/Estados Unidos, na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes.

Prefaciando seu livro “A Coragem de Resistir”, escreveu Tancredo Neves sobre o então Deputado Edson Vidigal:

É um denodado democrata como poucos tem sido entre nós. Não compreende a vida pública a não ser nos parâmetros da democracia. Fora dela, está convencido, não há salvação, porque, em seu lugar, surgem sempre, com maior ou menor intensidade, os regimes autoritários, intrinsecamente perversos pelos malefícios que geram e disseminam, desfibrando as instituições mais veneráveis, conspurcando os princípios consagrados e degenerando o caráter dos povos.

Diante destas perspectivas, o seu patriotismo não se cala; ao contrário, se inflama na objurgatória, sua eloqüência se acende no clamor e a sua palavra adquire profundas ressonâncias emanadas dos mais fervorosos sentimentos da alma nacional.

“O talento oratório, a coragem nas denúncias, a segurança de sua dialética, aliados à elegância de um estilo todo pessoal, na pureza do vernáculo e na originalidade de suas frases construídas com gosto e arte, fazem dos seus pronunciamentos  peças dignas de serem lidas e por todos meditadas.

“Feliz o Estado que pode contar na sua representação política com um parlamentar do estofo  moral e cultural de Edson Vidigal. É a inteligência, o desassombro e a dignidade sem tréguas ao serviço do seu povo que ele ama, admira e enaltece com uma dedicação infinita e um extremado senso de desprendimento e sacrifícios”.

Delegado do PMDB no Tribunal Superior Eleitoral, quando da transição do regime militar para um governo civil, Edson Vidigal foi convocado por Tancredo Neves e José Sarney para assessorar os dissidentes do PDS, então partido oficial, na desobediência rumo ao Colégio Eleitoral. É dele o primeiro parecer sobre a inaplicabilidade da fidelidade partidária no Colégio Eleitoral e sustentando a elegibilidade de Sarney como Vice-Presidente na chapa de Tancredo. Ainda nessa época redigiu os atos constitutivos do Partido da Frente Liberal.

Morto Tancredo, Sarney convocou Edson Vidigal para ser o Assessor da Presidência da República para os assuntos do Judiciário e do Ministério Público. Já trabalhara com ele antes, em 1966, aos 22 (vinte e dois) anos de idade, no Governo do Maranhão. Quando, em 1987, pediu para deixar o cargo no Planalto voltando à advocacia, foi surpreendido com o convite do Presidente para ocupar, em vaga de advogado, o cargo de Ministro no Tribunal Federal de Recursos. “Você vai ser um bom Juiz porque tem duas qualidades que faltam a muitos – bom senso e história de vida”, disse Sarney ao amigo de décadas.

Na infância, fugiu de casa e viveu por meses fazendo biscates, como menino de rua, dormindo em banco de praça, até ser reconhecido, pego pela polícia de menores e mandado de volta para casa, no interior. Em nova e definitiva fuga, empregou-se como garçom de botequim em São Luís e depois foi ser jornaleiro até passar no exame de admissão ao ginásio, sem ter concluído o curso primário e a partir daí despontar na militância política e como repórter policial do “Jornal Pequeno”.

Edson Vidigal tem marcado sua atuação como Juiz humanista, às vezes polêmico, sem medo de desafiar normas que considera injustas, sustentando que a função da lei, como expressão formal da vontade da maioria da sociedade, é a de apenas orientar  a realização da Justiça, esta, sim, a finalidade maior a ser alcançada em favor da condição humana,  num estado de direito democrático.

Reforma do Estado

Discute-se muito, mas não se avança, na prática, com as reformas políticas. Estou com os que querem o voto distrital misto, a cláusula de barreira para o funcionamento parlamentar dos partidos, a redução dos limites máximos para a composição de todas as casas legislativas, inclusive o Senado que só deveria ter dois Senadores por Estados e com mandato de apenas seis anos; sou pela ampliação das dificuldades para a criação de novos Municípios (e extinção de mais de uma centena deles), dentre outras medidas que reclamam urgência.

Mas enquanto isso, enquanto o tempo da legislatura federal se exaure nas propostas de reformas da área econômica, que não se realizam, não se abre uma estrada, até porque o dinheiro nem dá para tapar todos os buracos das que já existem.

Não se melhora as condições das escolas, paga-se salários indecentes aos professores. Não se faz da educação um corajoso investimento social, e não se faz porque o sistema de ensino vai ser reformado; um dia vai ser reformado…

Receita e Despesa

O País tem perdido muito com a evasão fiscal. No combate a essa evasão, no entanto, direitos constitucionais individuais têm sido, muitas vezes, desrespeitados. A ordem jurídica não é um estoque de lâminas com as quais o Estado vá se armando para intimidar cidadãos ou até para feri-los em seus direitos, conforme cada situação. Realmente, no caso brasileiro, já estamos com uma carga tributária equivalente a 33% (trinta e três por cento) do PIB/Produto Interno Bruto. E o retorno em benefícios à sociedade?  Desperdiça-se muito e não se cobra eficazmente de quem lucrando mais (ou sonegando mais) pode pagar. O direito penal não serve para resolver os problemas de caixa do executivo.

A fome, a miséria, o analfabetismo, as enfermidades e os déficits estão aí mesmo, amontoados. Bertrand Russel já dizia – “é o medo que põe os homens em atraso”.

Quando existem os déficits é porque o consumo ultrapassa a produção; e quando a produção é inferior ao consumo, há, naturalmente, poucos produzindo e muitos consumindo. Vemos quase o contrário. Muitos são os que produzem e poucos os que consomem mas é que os poucos consomem mais do que produzem os muitos. Conclui-se que se gasta mais do que se arrecada. E no entanto não se vêem obras públicas, a infância sadia e alfabetizada, a população satisfeita.

O que vai resolver aqui não será a promulgação diária de leis e sim o cumprimento cotidiano das leis sábias, porque as leis diárias prejudicam as leis sábias e as leis superficiais prejudicam as leis fundamentais.

Democracia e Liberdade

Estamos com a democracia porque repudiávamos a ditadura, que ignora a comunidade, que se arroga de uma independência total, que não possui regras permanentes e nem fundamentais, pois a sua lei é a da momento. Na democracia, a vontade do governante é o resultado do anseio coletivo. Na ditadura, a vontade do ditador é a vontade do ditador, que não se deixa pear por processos legais. Na democracia, há a autoridade e a harmonia entre os três Poderes. Na ditadura, adverte-nos o sociólogo Mac Iver, o que há é a exaltação do Executivo acima do Legislativo e a conseqüente equiparação do decreto à lei, a insistência na ortodoxia política, a supressão de todas as opiniões desfavoráveis.

Escola para todos é o único meio válido para se chegar a uma democracia, para a promoção do desenvolvimento, para a prosperidade de todos e não apenas para o enriquecimento de alguns. Negar escola à maioria é o único meio válido e mais eficaz para se retardar a democracia, assegurando-se o domínio de uma oligarquia que deve ser destruída, vez de tolerada.

Os marginais e os juízes

A força de um Juiz é a sua moral. Desmoralizado não consegue impor a ninguém a vontade da lei. Um Juiz não deve se deixar intimidar; não tem que pagar taxa de proteção. Quem não deve não teme. As garantias constitucionais das magistraturas são antes de tudo garantias da sociedade que paga a conta, que não pode ficar a mercê de Juízes acuados pela chantagem, imobilizados pelo medo.

A luta por um Judiciário forte, efetivamente independente, capaz de manter seus Juízes a salvo de investidas meliantes como as que temos vez por outra, há que ser de toda sociedade. Juiz enfraquecido é Judiciário fraco, que se traduz em sujeição da lei a caprichos dos marginais.

É uma covardia, é injusto que jurisdicionados, alguns até criminosos em potencial, tenham espaços na imprensa para, difundindo apenas sua versão, insultar Juízes que, por força da lei, em razão da dignidade do cargo, tenham que guardar silêncio para não terem que, descendo, polemizar.

Desburocratização da Justiça 

Parecemos pouco incomodados com outras armadilhas, aquelas que mais próximas, no nosso dia a dia, atormentam a vida das partes durante a tramitação e frustram, pela demora, a alegria dos vencedores, quase todos arrastados para aquela correnteza onde se debatem, quase se afogando, os que ganham, mas não levam. Refiro-me à burocracia interna, incrustada há mais de um século no cotidiano dos Juízos e Tribunais.  É essa burocracia que, reduzindo a sofridos gestos de simples mecânica o trabalho dos servidores, não só lhes tornam presas fáceis da manemolência, dificultando-lhes o crescimento profissional, como igualmente, pelas mesmas e viciadoras mesmices, vai sonegando aos Juízes o seu sublime direito de pensar.

O  triunfo da impunidade

O direito não pode ser privilégio nem de especialistas nem dos que, podendo contratar para suas demandas, na justiça estatal, os melhores causídicos, conseguem que as leis sejam interpretadas sempre a seu favor. Precisamos estar atentos para que o espírito das leis não se distancie nem se perca de sua destinação maior, que é a Justiça.

O que desqualifica hoje qualquer elogio que se queira fazer à nossa democracia é o triunfo visível da impunidade, o descaramento com que conhecidos ladrões do dinheiro público afrontam, no cotidiano, as pessoas que levam vida difícil, mas sempre honesta, que pagam impostos e que, na contrapartida, não recebem do poder público o mínimo dos serviços públicos que o Estado, por conta dos impostos que cobra, tem a obrigação de assegurar.

Quem furta o dinheiro público e, fortalecido pela impunidade, continua furtando, não apenas propaga seu mau exemplo. Dissemina a injustiça e daí a convocação da cidadania para a mesma luta pela afirmação do direito. O direito é um estado de democracia, no sentido de que as normas legais destinam-se à proteção da pessoa humana.

Eleições vencidas a qualquer custo

Numa democracia ninguém chega a cargo eletivo sem ter sido antes candidato. Essa palavra candidato é de origem latina. Na Roma antiga, as pessoas que pleiteavam cargo público, mediante eleição, saiam às ruas vestindo uma túnica branca e brilhante, chamada de toga cândida. Era a forma de se mostrarem que eram limpas para o exercício do cargo. Quantos poderíamos ver hoje, saídos desses partidos políticos, quase todos marcas de fantasia, vestindo a toga cândida e, assim, se diferenciando dos outros concorrentes?

A enganação política, que privilegia o marketing em detrimento do trabalho sério; a mentira das eleições vencidas a qualquer custo, sem respeito ao princípio da igualdade na disputa; a passividade com que setores mais esclarecidos, incluindo aí intelectuais, vêem e fingem não ver tantas agressões não só ao erário como também à boa fé e à inteligência das pessoas, isso tudo é fermento de realidades injustas. A tolerância não pode ser um pacto de cumplicidade entre os meliantes e suas vítimas. Devemos ser tolerantes, sim, com a diversidade de idéias, de opiniões, de religiões, de filosofias, de ideologias, de crenças. É dever de toda pessoa civilizada respeitar o outro por mais que não admita comungar de suas opiniões. Devemos ser intolerantes, sim, com o bandalho, com o crime, com o opróbrio, com a injustiça, em quaisquer de suas formas.

Condenados à incompreensão

Temos sido acusados de não resolvermos tudo ao tempo de cada espera. E a condenação que nos pesa não é só essa aos trabalhos forçados nessa pedreira das centenas de processos a todo dia. Somos condenados também à incompreensão, à injúria de quantos só nos imaginam como monitores de circunstâncias, gerentes de conveniências, cavalgando leis que só existem, quando existem, para protegerem os poderosos, os ricos, os espertos de todo gênero.

Aos olhos de muitos somos vistos com inveja, como se todos aqui fossemos genros da coisa pública, daqueles que não se importam com nada. E não é nada disso.

Quem aceitou ser Juiz no Superior Tribunal de Justiça, de certo, que já sabia disto. Por isso, falo estas coisas mais como uma homenagem aos meus colegas do que como desabafo. Se eu tivesse que desabafar diria apenas, como já disse uma vez, um fugitivo sem  identidade: “Quereria poder partir livre, sem passado, renascer sem presente partir e voar. Quereria poder sumir entre as ondas, ou entre as nuvens, ou entre as montanhas, ou entre os lírios, ou no verde da cerca viva. Quereria sumir para poder viver”.

Prioridade do Direito Eleitoral

Queremos que a vontade do poder, de qualquer um dos três Poderes da União Federal, seja a expressão da vontade do Povo, por seus representantes legitimamente eleitos ou na forma direta por meio de plebiscito, referendo ou iniciativa popular. Por isso, o Direito Eleitoral desponta como o primeiro Direito num Estado Democrático de Direito. Sem eleições livres e limpas não há democracia e sem democracia nenhum outro Direito é possível.

Os desvios para os caminhos do mal são incontáveis quando o Estado é apenas de direito formal, sem compromissos com a pluralidade política, com a diversidade de idéias mobilizadoras para a formação de oposições vigilantes e atuantes.

A oposição, numa democracia, não pode ser apenas consentida. No Estado onde a oposição não tem espaços, ou porque não é tolerada, ou porque é apenas  consentida, não há Governo legítimo. Há, sim, uma camarilha aboletada rateando entre si os dividendos do Poder.

Reforma do Estado, eleições legitimadas

Eleições que antes eram fraudadas no ato de votar ou nas apurações e que agora são fraudadas no atacado porque, com a predominância do circo eletrônico, frauda-se a consciência coletiva mediante pesquisas enganosas que, alardeando tendências, apenas tendências, na verdade induzem a maioria, que é de incautos, a acolher como salvadores da Pátria muitos que pouco depois se constata que são de fato bons salvadores, mas salvadores, sim, dos seus próprios interesses.

Eleições que trazem entre os eleitos também aqueles que, pelas ações seguintes, logo se vê, não respeitam o dinheiro público, desdenham do Povo, debocham da Justiça, esnobam o Ministério Público e desacatam as leis.

Tudo porque só acreditam no dinheiro que furtaram ou ainda vão furtar e porque julgando-se imunes a tudo, acima do bem e até do mal, só prestam devoção aos demônios da impunidade. Eleições manchadas assim são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Por isso a necessidade urgente de reformas no Estado. Reformas políticas, a começar pelas leis eleitorais e pela Justiça Eleitoral. No plano das leis, precisamos de normas mais severas e sumárias contra os abusos  do dinheiro e do poder político nas eleições. Como no Direito Penal, o Direito Eleitoral deveria prever também causas interruptivas da prescrição nos ilícitos que, pela lei das inelegibilidades, por exemplo, são facilmente prescritíveis. Isto porque a pena de suspensão de direitos políticos, nesses casos, é de apenas de três anos contados da data do fato e não da data em que a representação foi julgada procedente.

Judiciário, o mais vulnerável dos Três Poderes

O Judiciário, com seus dogmas e liturgias, operando leis arcaicas e recheado pelo conservadorismo burocrático de considerável parte dos seus juízes, engolfados no dia a dia com milhares de processos e, ainda, inertes diante de suas ilhas de nepotismo e matriarcados, continua sendo o mais vulnerável dos Três Poderes. Os números da Justiça espantam a quem os vê pela primeira vez. A Justiça comum de primeiro grau em todo o País, por exemplo, recebeu em 1990, de acordo com o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, 3 milhões 617 mil e 64 processos. Naquele ano, segundo o IBGE, a população brasileira era de 144 milhões 764 mil e 945 habitantes. Na média, em 1990, um em cada 40 brasileiros procurava a Justiça.

Na média, oito anos mais tarde, um a cada 21 brasileiros clamava por Justiça. E com todas as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário, esse clamor não foi em vão. A Justiça Comum, que em 1990 conseguiu atingir a marca de 2 milhões 441 mil 847 julgados, em 1998 julgou 4 milhões 938 mil 803 processos. Ou seja, enquanto a população brasileira, nesses oito anos, cresceu 11,33%, a esperança na Justiça aumentou 106,44%.

O fortalecimento da democracia nesse período trouxe para a população brasileira o sentimento de cidadania e, com ele, a consciência dos direitos individuais e coletivos.

A resposta da Justiça à nova realidade social brasileira foi feita com muito esforço e sem um tostão. É importante saber que foi assim e está sendo assim. São de uma contundência inoxidável os números do Orçamento da União. A disparidade entre os orçamentos de cada um dos Poderes é impressionante.

Mudanças estruturais e mudança de Governo

A mudança de mentalidade não se altera com a mudança de governo. A mudança do governo pode alterar uma mudança de enfoque, de leitura. Contudo, mudando a maneira de ver já leva um passo à frente, porque mudando os plantonistas nos vamos ter uma mudança de enfoque. Aí é possível que mudando o enfoque se tenha espaço para novas discussões. Então, eu espero é que a gente consiga aprofundar a discussão da reforma do estado, que tem que passar obrigatoriamente pela reforma política. É onde tudo começa e onde tudo acaba. A democracia se firma em instituições políticas e se acaba pelo fracasso destas instituições.

Então em primeiro plano é a reforma política. A reforma política dentro do formato, dentro do contexto da reforma do estado. Temos que repensar o custo disto tudo. Têm questões aí que ninguém faz questão de ver: como as campanhas eleitorais têm tanto dinheiro? Não há uma lei dispondo claramente sobre a origem e aplicação dos recursos e financiamento de campanha.

Então porque não se discute isso claramente, numa mesa que seja de vidro para que todo mundo possa ver o que há por baixo, não é? Por que os institutos de pesquisa decidem quando serão realizadas as convenções e depois eles decidem as eleições? Então nós temos muitas questões aí para discutir, para poder chegar na questão dos peritos da Polícia Federal, da criação das cinco mil novas varas da Justiça Federal, mas quem vai pagar a conta?

Segredo de Justiça ou censura ao debate

A Constituição diz: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrentes de sua violação”. Também diz: “é livre a expressão da atividade de comunicação, intelectual, artística, científica e de comunicação”; aqui tenho, portanto, o princípio basilar chamado liberdade de imprensa.

O regime constitucional em que nós vivemos é o regime de liberdades democráticas e quanto aos abusos nós temos instrumentos para repreendê-los. Agora, eu tenho que ter muito cuidado para não confundir ação preventiva de defesa da intimidade desses “valores” tutelados com censura prévia. Eu tenho que ter muito cuidado para não estar praticando a censura. Acho que tem que examinar caso a caso; eu contaria até mil, depois mais mil novamente, antes de me convencer assim.

Julgamento de ações judiciais em tempo real

Sou francamente favorável ao julgamento de ações judiciais em tempo real. O Judiciário tem padecido muitas incompreensões da sociedade, por ser, exatamente, o poder ainda mais apegado à monarquia do que à República com seus ritos, o pior, apegado àquilo que as monarquias decadentes tiveram e que as monarquias mais modernas não têm. O Judiciário ainda tem muita coisa das monarquias decadentes e, por conta disso, precisa abrir-se mais à sociedade. É importante que nós compreendamos que trabalhamos para um empregador só. Tanto o Presidente da República, os senadores, os deputados, os ministros de Estado, ministros de tribunais, juízes e servidores, todos trabalham para um mesmo empregador, que se chama povo brasileiro.