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A seguridade social: anistia imprópria

5 de março de 2001

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A humanidade e composta de ho­mens, jovens e velhos, pessoas saudaveis e pessoas doentes. Uma nação só adquire respeitabilidade e dignidade social quando estabelece, com clareza, regras de preser­vação da vida e de respeito aos valores fundamentais da pessoa humana, razao de ser da própria sociedade.

A Constituição Federal estabelece como um dos fundamentos do Pais, como Estado Democratico de Direito, logo no seu artigo primeiro, inciso III, o respeito à dig­nidade da pessoa humana, fixando como um dos objetivos fundamentais da nação a constituição de uma sociedade livre, jus­ta, solidaria e a erradicação da pobreza, da marginalização, com redução de desigual­dades sociais e regionais.

A Seguridade Social e o instrumento basico desses desideratos constitucionais.

Em seu art. 194, a Constituição Fe­deral define a Seguridade Social como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes publicos e da sociedade, destinadas a assegurar direitos relativos à saude, à previdencia e à assistencia so­cial, estabelecendo, no artigo seguinte, que ela, a Seguridade Social, sera finan­ciada por toda a sociedade, de forma di­reta e indireta, mediante recursos prove­nientes dos orçamentos da Uniao, dos Es­tados, do Distrito Federal, dos Municipios e das contribuições sociais advindas de empregadores, incidentes sobre folha de salarios, faturamento e o lucro, bem como de descontos nos salarios de trabalhado­res e sobre receita de concursos de prog­nósticos.

Por esse simples enfoque constituci­onal verifica-se a importancia social da previdencia publica como instrumento de realização da politica social do Pais, sua espinha dorsal, um de seus mais importantes pilares de sustentação.

Com a preocupação de garantir a rea­lização desses recursos, a Lei Federal 8.212, de 24 de julho de 1991, em seu art. 95, alinea d, instituiu um tipo especial de crime omissivo no fato de deixar de recoIher, na epoca própria, a contribuiçao devi­da à Previdencia Social, arrecadada dos segurados ou do publico, estabelecendo como sujeitos ativos do tipo penal o titular da firma individual, os sócios solidarios, gerentes, diretores ou administradores das empresas incluidas no regime da lei, pu­nindo-os com a pena de reclusao de dois a seis anos e multa.

Sempre tive grande antipatia profissional pelas legislações extra­vagantes em ma­teria penal, porque situadas fora do contexto filosófico e da sistematica do Código Penal. Inegavel, entre­tanto, o caráter utilitario da sanção penal como instrumento de desencorajamen­to da pratica ile­gal, e infelizmen­te nao rara, da au­tentica apropria­ção indebita dos recursos destina­dos à manutenção da Previdencia Social por admi­nistradores inidô­neos de empre­sas, firmas e ate agentes politicos, tais como, v.g. os prefeitos e dirigentes de entidades inte­grantes da administração indireta da Uniao, Estados e Municípios, tais como empresas públicas, sociedades de eco­nomia mista e fundações instituídas e mantidas com recursos públicos. Incontaveis sao os processos criminais exis­tentes na Justiça Federal dessa natureza.

A Lei 9.639/98 deu reda9ao nova à ali­nea d do art. 95 da precitada Lei 8.212/91, determinando o arquivamento do processo criminal quando o crédito da previdencia fosse pago pelos denunciados antes do recebimento das denuncias oferecidas pelo Ministerio Publico Federal, deixando cla­ro, ainda outra vez, o proposito de preser­vação do mandamento constitucional da manutenção da Previdencia Social.

Nao sao poucos os casos de respon­sabilidade de prefeitos, principalmente de municipios menores.

Com o proposito, a meu juizo pouco procede, de retira-Ios da abrangencia pe­nal, foi editada a Medida Provisoria 1.608, de 28 de abril de 1998. Quando ja em sua 14a renovação, foi convertida na Lei 9.639, de 25 de maio de 1998, publicada no Diario Oficial da Uniao do dia seguinte.

Na Medida Provisoria eram excluidos da sançao penal, por anistia, apenas os agentes politicos. Estranhamente, no texto da lei, obtida por transformação da referida Medida Provisoria, aparece a inclusao de um paragrafo unico no seu art. 11 estenden­do a anistia a todas as demais pessoas que haviam sido responsabilizadas pelos cri­mes previstos na alínea d do art. 95 da Lei 8.212/91 e no art. 86 da Lei 3.807/60.

Comprovada e denunciada a fraude, no dia seguinte foi republicada a Lei 9.639 no Diario Oficial do dia 27 de maio de 1998, sem o malsinado paragrafo unico do art. 11, de pai desconhecido. Alias, afirma a sabedoria popular que patinho feio nao tem pai.

Essa situação vem ensejando nos jul­gamentos da Justiça Federal dois tipos de questionamentos:

1 ° Vigorou e produziu efeitos juridi­cos o paragrafo unico do art. 11, que es­tendeu a todos os infratores a anistia da Lei 9.639/98?

2° Pode ser aprovada anistia por lei resultante de transformação de Medida Pro­visoria?

Há sentenças entendendo que a pu­blicação da extensao da anistia, concedi­da pelo paragrafo unico do art. 11, produ­ziu efeitos juridicos porque a Lei 9.639 en­trou em vigor na data de sua publicação e a sua correção se fez por lei nova, vigen­do a anterior ate a sua revogação, a teor do art. 1 ° § 4°, da lei de Introdução ao Codigo Civil (Decreto-Lei 4.657, de 04.09.42): “§ 4°As correções a texto de lei ja em vigor consideram-se lei nova”. Por essa interpretação, estariam anistiados todos os acusados com processo penal em curso, um numero seguramente grande e significativo. Os adeptos dessa mesma corrente entendem correta a anis­tia, mesmo que consectária de transfor­mação de Medida Provisoria, porque a lei existe e a propria medida provisoria, ex vi legis, tem força de lei.

Ja outra corrente, na qual me incluo, entende de modo diametralmente oposto: a uma porque em verdade a extensao da anistia preconizada no famigerado para­grafo unico foi obtida mediante fraude, procedimento ilegal e ate criminoso, como ficou amplamente comprovado por decla­rações oficiais do Congresso Nacional. Inexistente, pois, de fato, a extensao do beneficio foi em verdade um simulacro, um nada juridico. Nao se pode corrigir o que nao existe validamente. So se pode corrigir o que existe e o paragrafo inexis­tiu de direito, ja que inserido com fraude.

Valido embora o principio normativo insculpido no § 4° do art. 1 ° da Lei de In­trodução ao Codigo Civil, so se aplica a normas existentes e nao a que, da otica da validade juridica, inexistiu, ja que nascida de ato ilegal, de comprovada fraude.

Improcedente, por igual, outro argu­mento que se ve estampado em decisoes que justificam a aplicaçao ampla da anis­tia, qual seja a da isonomia, sabido que é ser perfeitamente valida a anistia parcial. o que em verdade estabeleceu a Lei 9.639/ 98, no seu artigo 11, caput, resultante da Medida Provisoria 1.604, foi a anistia res­trita aos agentes politicos na pratica dos crimes dos arts. 95, alinea d, da Lei 8.212/ 91, e § 2°, II, da Lei 8.173/90, nao ensejan­do extensoes improprias sob o palio da iso­nomia constitucional.

Outro aspecto da questao, mais am­plo e ate mais importante, e a propria anis­tia concedida por lei resultante de transfor­maçao de Medida Provisoria.

A precitada Lei 9.639/98 como ja vi­mos nao e lei em sentido formal, ja que resultante de mera conversao de Medida Provisoria.

A lei em sentido formal e resultante do procedimento legislativo proprio, com oferecimento de projeto de lei, com regu­lar tramitação no Congresso Nacional, previa exame obrigatorio de suas comis­sões legislativas, dupla aprovação na Ca­mara e no Senado e posterior sanção do Presidente da Republica, nada tendo a ver com a simples conversao das Medidas Provisorias.

A Constituição Federal para con­cessão de anistia exige aprovação de lei formal, como se vê do art. 48 e inc. VIII, verbis:

“Art. 48 – Cabe ao Congresso Nacio­nal com a sanção do Presidente da Repu­blica, nao exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as materias de competencia da Uniao, espe­cialmente sobre:

VIII – concessao de anistia.”

A meu sentir nao so nao tem aplica­ção o absurdo paragrafo unico, sorratei­ramente introduzido no art. 11 da lei 9.639/98, como a propria lei, vale dizer, nao tem idoneidade jurídica a anistia por ela concedida.

A Medida Provisoria nao se presta, ademais, para a concessão de anistia, como no caso vertente, por Ihe faltarem as condições constitucionais que Ihe dão exis­tencia, quais sejam a relevancia e a ur­gencia, nos termos do art. 62 da Constitui­ção Federal.

Trata-se de mau exemplo a conces­sao de anistia, ainda que restrita a agentes politicos, por ser forma indesejada de estí­mulo a descumprimento de obrigação cons­titucional, ja que a mantença da Previden­cia Social e obrigaçao da sociedade como um todo. Os agentes politicos, devem, numa sociedade que se quer justa, serem os pri­meiros a cumprir esse importante manda­mento constitucional, insculpido no art. 195 da Carta Magna. Ou sera que essa obriga­çao constitucional nao e para valer?

É preciso que sejam garantidos os recursos financeiros legalmente destina­dos ao custeio da previdencia social para que o INSS possa desempenhar suas fina­Iidades assistenciais e deixe de uma vez de ficar, com artificios cerebrinos, frustran­do a sua obrigaçao de prestar a assisten­cia devida a seus segurados, sem defa­sar -Ihes, como habitualmente faz, os be­neficios financeiros, que sao, como de co­mum sabença, de natureza alimentar.