Edição 13
A seguridade social: anistia imprópria
5 de março de 2001
Ney Moreira da Fonseca Desembargador Federal aposentado
A humanidade e composta de homens, jovens e velhos, pessoas saudaveis e pessoas doentes. Uma nação só adquire respeitabilidade e dignidade social quando estabelece, com clareza, regras de preservação da vida e de respeito aos valores fundamentais da pessoa humana, razao de ser da própria sociedade.
A Constituição Federal estabelece como um dos fundamentos do Pais, como Estado Democratico de Direito, logo no seu artigo primeiro, inciso III, o respeito à dignidade da pessoa humana, fixando como um dos objetivos fundamentais da nação a constituição de uma sociedade livre, justa, solidaria e a erradicação da pobreza, da marginalização, com redução de desigualdades sociais e regionais.
A Seguridade Social e o instrumento basico desses desideratos constitucionais.
Em seu art. 194, a Constituição Federal define a Seguridade Social como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes publicos e da sociedade, destinadas a assegurar direitos relativos à saude, à previdencia e à assistencia social, estabelecendo, no artigo seguinte, que ela, a Seguridade Social, sera financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da Uniao, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municipios e das contribuições sociais advindas de empregadores, incidentes sobre folha de salarios, faturamento e o lucro, bem como de descontos nos salarios de trabalhadores e sobre receita de concursos de prognósticos.
Por esse simples enfoque constitucional verifica-se a importancia social da previdencia publica como instrumento de realização da politica social do Pais, sua espinha dorsal, um de seus mais importantes pilares de sustentação.
Com a preocupação de garantir a realização desses recursos, a Lei Federal 8.212, de 24 de julho de 1991, em seu art. 95, alinea d, instituiu um tipo especial de crime omissivo no fato de deixar de recoIher, na epoca própria, a contribuiçao devida à Previdencia Social, arrecadada dos segurados ou do publico, estabelecendo como sujeitos ativos do tipo penal o titular da firma individual, os sócios solidarios, gerentes, diretores ou administradores das empresas incluidas no regime da lei, punindo-os com a pena de reclusao de dois a seis anos e multa.
Sempre tive grande antipatia profissional pelas legislações extravagantes em materia penal, porque situadas fora do contexto filosófico e da sistematica do Código Penal. Inegavel, entretanto, o caráter utilitario da sanção penal como instrumento de desencorajamento da pratica ilegal, e infelizmente nao rara, da autentica apropriação indebita dos recursos destinados à manutenção da Previdencia Social por administradores inidôneos de empresas, firmas e ate agentes politicos, tais como, v.g. os prefeitos e dirigentes de entidades integrantes da administração indireta da Uniao, Estados e Municípios, tais como empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações instituídas e mantidas com recursos públicos. Incontaveis sao os processos criminais existentes na Justiça Federal dessa natureza.
A Lei 9.639/98 deu reda9ao nova à alinea d do art. 95 da precitada Lei 8.212/91, determinando o arquivamento do processo criminal quando o crédito da previdencia fosse pago pelos denunciados antes do recebimento das denuncias oferecidas pelo Ministerio Publico Federal, deixando claro, ainda outra vez, o proposito de preservação do mandamento constitucional da manutenção da Previdencia Social.
Nao sao poucos os casos de responsabilidade de prefeitos, principalmente de municipios menores.
Com o proposito, a meu juizo pouco procede, de retira-Ios da abrangencia penal, foi editada a Medida Provisoria 1.608, de 28 de abril de 1998. Quando ja em sua 14a renovação, foi convertida na Lei 9.639, de 25 de maio de 1998, publicada no Diario Oficial da Uniao do dia seguinte.
Na Medida Provisoria eram excluidos da sançao penal, por anistia, apenas os agentes politicos. Estranhamente, no texto da lei, obtida por transformação da referida Medida Provisoria, aparece a inclusao de um paragrafo unico no seu art. 11 estendendo a anistia a todas as demais pessoas que haviam sido responsabilizadas pelos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei 8.212/91 e no art. 86 da Lei 3.807/60.
Comprovada e denunciada a fraude, no dia seguinte foi republicada a Lei 9.639 no Diario Oficial do dia 27 de maio de 1998, sem o malsinado paragrafo unico do art. 11, de pai desconhecido. Alias, afirma a sabedoria popular que patinho feio nao tem pai.
Essa situação vem ensejando nos julgamentos da Justiça Federal dois tipos de questionamentos:
1 ° Vigorou e produziu efeitos juridicos o paragrafo unico do art. 11, que estendeu a todos os infratores a anistia da Lei 9.639/98?
2° Pode ser aprovada anistia por lei resultante de transformação de Medida Provisoria?
Há sentenças entendendo que a publicação da extensao da anistia, concedida pelo paragrafo unico do art. 11, produziu efeitos juridicos porque a Lei 9.639 entrou em vigor na data de sua publicação e a sua correção se fez por lei nova, vigendo a anterior ate a sua revogação, a teor do art. 1 ° § 4°, da lei de Introdução ao Codigo Civil (Decreto-Lei 4.657, de 04.09.42): “§ 4°As correções a texto de lei ja em vigor consideram-se lei nova”. Por essa interpretação, estariam anistiados todos os acusados com processo penal em curso, um numero seguramente grande e significativo. Os adeptos dessa mesma corrente entendem correta a anistia, mesmo que consectária de transformação de Medida Provisoria, porque a lei existe e a propria medida provisoria, ex vi legis, tem força de lei.
Ja outra corrente, na qual me incluo, entende de modo diametralmente oposto: a uma porque em verdade a extensao da anistia preconizada no famigerado paragrafo unico foi obtida mediante fraude, procedimento ilegal e ate criminoso, como ficou amplamente comprovado por declarações oficiais do Congresso Nacional. Inexistente, pois, de fato, a extensao do beneficio foi em verdade um simulacro, um nada juridico. Nao se pode corrigir o que nao existe validamente. So se pode corrigir o que existe e o paragrafo inexistiu de direito, ja que inserido com fraude.
Valido embora o principio normativo insculpido no § 4° do art. 1 ° da Lei de Introdução ao Codigo Civil, so se aplica a normas existentes e nao a que, da otica da validade juridica, inexistiu, ja que nascida de ato ilegal, de comprovada fraude.
Improcedente, por igual, outro argumento que se ve estampado em decisoes que justificam a aplicaçao ampla da anistia, qual seja a da isonomia, sabido que é ser perfeitamente valida a anistia parcial. o que em verdade estabeleceu a Lei 9.639/ 98, no seu artigo 11, caput, resultante da Medida Provisoria 1.604, foi a anistia restrita aos agentes politicos na pratica dos crimes dos arts. 95, alinea d, da Lei 8.212/ 91, e § 2°, II, da Lei 8.173/90, nao ensejando extensoes improprias sob o palio da isonomia constitucional.
Outro aspecto da questao, mais amplo e ate mais importante, e a propria anistia concedida por lei resultante de transformaçao de Medida Provisoria.
A precitada Lei 9.639/98 como ja vimos nao e lei em sentido formal, ja que resultante de mera conversao de Medida Provisoria.
A lei em sentido formal e resultante do procedimento legislativo proprio, com oferecimento de projeto de lei, com regular tramitação no Congresso Nacional, previa exame obrigatorio de suas comissões legislativas, dupla aprovação na Camara e no Senado e posterior sanção do Presidente da Republica, nada tendo a ver com a simples conversao das Medidas Provisorias.
A Constituição Federal para concessão de anistia exige aprovação de lei formal, como se vê do art. 48 e inc. VIII, verbis:
“Art. 48 – Cabe ao Congresso Nacional com a sanção do Presidente da Republica, nao exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as materias de competencia da Uniao, especialmente sobre:
VIII – concessao de anistia.”
A meu sentir nao so nao tem aplicação o absurdo paragrafo unico, sorrateiramente introduzido no art. 11 da lei 9.639/98, como a propria lei, vale dizer, nao tem idoneidade jurídica a anistia por ela concedida.
A Medida Provisoria nao se presta, ademais, para a concessão de anistia, como no caso vertente, por Ihe faltarem as condições constitucionais que Ihe dão existencia, quais sejam a relevancia e a urgencia, nos termos do art. 62 da Constituição Federal.
Trata-se de mau exemplo a concessao de anistia, ainda que restrita a agentes politicos, por ser forma indesejada de estímulo a descumprimento de obrigação constitucional, ja que a mantença da Previdencia Social e obrigaçao da sociedade como um todo. Os agentes politicos, devem, numa sociedade que se quer justa, serem os primeiros a cumprir esse importante mandamento constitucional, insculpido no art. 195 da Carta Magna. Ou sera que essa obrigaçao constitucional nao e para valer?
É preciso que sejam garantidos os recursos financeiros legalmente destinados ao custeio da previdencia social para que o INSS possa desempenhar suas finaIidades assistenciais e deixe de uma vez de ficar, com artificios cerebrinos, frustrando a sua obrigaçao de prestar a assistencia devida a seus segurados, sem defasar -Ihes, como habitualmente faz, os beneficios financeiros, que sao, como de comum sabença, de natureza alimentar.